Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
34/14.8TBAVV.G1
Relator: ESPINHEIRA BALTAR
Descritores: ARRENDAMENTO DE ESPAÇOS NÃO HABITÁVEIS
FIM CONTRATUAL
COMÉRCIO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/21/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1. O contrato de arrendamento de parte de um prédio, para armazém, de apoio a uma actividade comercial da arrendatária, tem como finalidade acessória e complementar o comércio e deve seguir o regime jurídico deste.
2. O artigo 5.º n.º 2 al. e) do RAU é uma norma inovadora, abarcando os arrendamentos de espaços não habitacionais para afixação de publicidade, armazenagem, parqueamento de viaturas que não tenham conexão com a actividade habitacional, comercial, industrial, liberal etc…
3. Aos contratos não habitacionais celebrados antes do DL. 257/95 de 30 de Setembro aplica-se o regime transitório previsto no artigo 27 e 28 da Lei 6/2006 de 27/02, com as alterações introduzidas pela Lei 31/2012 de 14/08, em conjugação com a norma de aplicação no tempo, artigo 59 n.º 1, que entrou em vigor a 14 de Novembro, que não permite a denúncia injustificada.
Decisão Texto Integral: Acordam em Conferência na Secção Cível da Relação de Guimarães

M… demandou J..., Lda formulando os seguintes pedidos:
a) se declare que o Autor é dono e legítimo proprietário do prédio urbano identificado no artigo 1º da petição inicial;
b) seja a Ré obrigada a reconhecer o direito de propriedade do Autor sobre o mencionado prédio e a proceder à entrega imediata, livre e em bom estado de conservação, da parte da cave que vem ocupando, utilizando e usufruindo de forma intitulada e ilegítima;
c) seja a Ré obrigada a pagar ao Autor uma indemnização equivalente ao montante ajustado pelo uso e ocupação da parte do prédio (cave), que vem usufruindo, até à data da sua efectiva restituição ao Autor;
d) se condene a Ré a pagar ao Autor uma indemnização não inferior a € 25,00 por dia, a título de contrapartida pela ocupação do imóvel (cave), até ao dia em que esta proceda à efectiva restituição do imóvel ao Autor;
e) Se condene a Ré a pagar as custas.
Subsidiariamente,
f) no caso de se entender que existe contrato de arrendamento, seja o mesmo declarado nulo por vício de forma, tudo com as legais consequências;
Subsidiariamente ainda,
g) no pressuposto de se vir a considerar existir contrato de arrendamento, seja a Ré condenada despejar, imediatamente, a cave do imóvel melhor identificado em 1º da petição inicial, entregando-o livre de pessoas e bens ao aqui Autor, atento o disposto na artigo 1055º nº1 al. a) e/ou d) Código Civil;
h) se condene a Ré a pagar ao Autor as rendas vencidas e demais valores até à presente data, vencidas e vincendas até ao trânsito em julgado da sentença que decrete o despejo;
i) se condene a Ré a pagar ao Autor uma indemnização não inferior a € 25,00 por dia, a título de contrapartida pela ocupação do imóvel (cave), até ao dia em que esta proceda à efectiva restituição do imóvel ao Autor.
j) se condene a Ré a pagar as custas.
Alegou, em síntese, a aquisição da propriedade de um prédio urbano por via translativa e originária por usucapião, que está a ser ocupado, sem título, pela ré, uma vez que denunciou, validamente, um contrato de arrendamento para armazém que é nulo por vício de forma.

A ré defendeu-se por impugnação e alegou factos no sentido de que o contrato em causa foi celebrado para apoio á sua actividade comercial, onde deposita a maioria das mercadorias que vende no prédio onde tem a sua sede, havendo conexão com a actividade comercial que exerce. E conclui que o contrato é válido e a denúncia ilegal.

Efectuado despacho saneador, fixado o objecto do litígio e da prova, foi realizado julgamento e proferida sentença que julgou parcialmente procedente a acção quanto ao pedido do reconhecimento do direito de propriedade do prédio por parte da ré, e no mais absolveu a ré dos pedidos formulados.

Inconformado com o decidido, o autor interpôs recurso de apelação, formulando conclusões.
Houve contra-alegações que pugnaram pelo decidido.
Das conclusões do recurso ressaltam as seguintes questões, a saber:
1 Impugnação na vertente do facto.
1.1 Se os factos alegados nos artigos 9, 12 e 16 da petição inicial deveriam ter sido dados como provados nos termos em foram alegados, porque foram aceites nos termos do artigo 1.º da contestação.
2 Impugnação na vertente do direito
2.1 Se é válida a denúncia do contrato de arrendamento deduzida pelo autor com todas as suas consequências.

Vamos conhecer das questões enunciadas.
1.1 O apelante, na sua conclusão 4.ª, questiona a prova dos factos articulados nos artigos 9, 12 e 16 da petição inicial, que não foram dados como assentes nos mesmos termos em que foram alegados, e deveriam tê-lo sido porque houve confissão, face ao disposto no artigo 1.º da petição inicial. O certo é que a matéria de facto relevante dos aludidos artigos, para efeitos da decisão em causa, foi consignada nos pontos de facto 5, 6 e 20 da decisão recorrida, onde o tribunal especifica o artigo 9.º, 12.º e 16.º da petição, para esclarecer que a matéria de facto em causa corresponde a esses articulados. E se fizermos a comparação do teor dos artigos da petição inicial com os pontos de facto da decisão recorrida constata-se que correspondem ao seu conteúdo, onde está em causa uma cave sita num prédio que os antecessores do autor deram de arrendamento à ré, para armazém, na década de 70, do século XX, que hoje está a pagar 58,61€ como contrapartida da sua utilização, onde são armazenados vários artigos com arames, motosserras máquinas cortar relva, máquinas de sulfatar, rolos de tapetes etc…Daí que julgamos que o tribunal fixou a matéria de facto dos artigos questionados nos pontos de facto indicados, pelo que não há nada a alterar.

Vamos fixar a matéria de facto consignada na decisão recorrida, que passamos a transcrever,
1) Mostra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Arcos de Valdevez, sob o número…, freguesia de Arcos de Valdevez (Salvador), um prédio urbano, sito na Rua…, freguesia de Arcos de Valdevez, composto de casa, de cave, rés-do-chão e primeiro andar, com a área coberta de 110 m2, inscrito na respectiva matriz sob o artigo…, da freguesia de Arcos de Valdevez, que corresponde ao Artigo… da Extinta freguesia de Arcos de Valdevez (Salvador). (artigo 1º da petição inicial)
2) O prédio urbano identificado no facto anterior encontra-se inscrito na Conservatória do Registo Predial dos Arcos de Valdevez, a favor do Autor, pela inscrição Ap. 1 de 2001/10/16. (artigo 2º da petição inicial)
3) O supra referido prédio urbano veio à posse do Autor, por o mesmo lhe ter sido doado por sua avó, M…. (artigo 4º da petição inicial)
4) Por si e seus antecessores, o Autor encontra-se na posse, uso e fruição do
mesmo, pelo menos desde 1957, data da sua inscrição na matriz, zelando-o, fazendo obras de reparação e conservação, colhendo frutos, em suma exercendo sobre ele todos os poderes de facto inerentes ao direito de propriedade, na qualidade de seu legítimo proprietário, na convicção de exercer um direito próprio, pagando os respectivos impostos, e contribuições, usufruindo de todas as utilidade por ele proporcionadas, em nome próprio, sem interrupção e oposição de ninguém, à vista e com o conhecimento de toda a gente. (artigos 5º a 7º da petição inicial)
5) Em finais da década de 70 do século XX, os antecessores do Autor deram de
arrendamento à Ré, para armazém, a cave do prédio melhor identificado em 1). (artigo 9º da petição inicial)
6) Como contrapartida da utilização dessa cave a Ré paga a quantia de € 58,61. (artigo 16º da petição inicial)
7) Esse contrato não foi reduzido a escrito. (artigo 11º da petição inicial)
8) Há cerca de trinta e cinco anos que a Ré utiliza a cave do referido prédio como armazém de apoio a Drogaria e Loja de Ferragens, de que a Ré é titular, na Rua…, Loja 80 e Loja 82 nos Arcos de Valdevez. (artigo 10º da petição inicial)
9) Essa cave tem acesso através de uma porta com o número de polícia 74, uma outra porta com o número 76, e uma janela com o número 72. (artigo 13º da petição inicial)
10) Nenhum dos supra referidos vãos (portas ou janelas) se encontram abertos ao público. (artigo 14º da petição inicial)
11) Com data de 14 de Maio de 2013, o Autor enviou à Ré uma carta registada com aviso de recepção, cujo assunto era Oposição à Renovação, com o seguinte teor:
“Exmos. Senhores:
Na qualidade de proprietário, vimos por este meio comunicar a V. Exas., que ao abrigo do disposto na alínea b) do Artigo 1097º do Código Civil, denunciamos, através de oposição à renovação, do contrato de arrendamento respeitante a parte do prédio urbano (cave) sob o artigo … da freguesia de Arcos de Valdevez Salvador, concelho de Arcos de Valdevez sito na Rua … e com entrada pela Rua de…, o qual se encontra dado de arrendamento a essa sociedade para fins de armazém.
Este tipo de contratos de arrendamento, dado o fim a que se destinam (armazém), são, eram no domínio da anterior legislação, de denúncia livre.
Pelo que nos termos do preceituado no normativo supra mencionado, o período de pré-aviso é de cento e vinte dias, assim, nesse pressuposto deverão V. Exas., proceder à entrega do arrendado devoluto de pessoas e bens até ao dia 17 de Setembro de 2013
Ao vosso dispor para qualquer esclarecimento.
Com os melhores cumprimentos.” (artigo 22º da petição inicial)
12) A referida carta registada foi recepcionada pela Ré no dia 15 de Maio de 2013. (artigo 23º da petição inicial)
13) Com data de 10 de Setembro de 2013, e em jeito de resposta, a Ré enviou ao Autor, também uma carta registada, com o seguinte teor:
“Exmo. Sr.
Acusa-se a recepção da missiva enviada por V. Exa., requerendo a entrega do arrendado (supra identificado) devoluto de pessoas e bens até ao dia 17 de Setembro de 2013, baseando a v/ pretensão no artigo 1097º alínea b) do Código Civil, pela redação que lhe foi dada pela Lei 31/2012 de 14 de Agosto.
Sucede que a aplicabilidade deste preceito se restringe apenas aos contratos de duração limitada (na nova redacção legislativa designados por “contratos com prazo certo) e não aos contratos, como o que esta em causa, sem duração limitada (denominados de duração indeterminada”, pelo nova redacção legislativa).
Assim, e pela extensibilidade do artigo invocado por V. Exas., a situação in casu considera-se, salvo melhor opinião, permanecer a relação jurídica arrendatícia inalterada.” (artigo 24º da petição inicial)
14) À supra mencionada carta registada, enviada pela Ré, respondeu o Autor,
enviando-lhe uma nova carta registada, datada de 26 de Setembro de 2013, com o seguinte teor:
Assunto: Entrega do Arrendado
“Exmos. Senhores:
Como é do vosso conhecimento com data de 14 de Maio de 2013, envie a V. Exas. carta registada com aviso de recepção, onde efectuavamos a denúncia do contrato de arrendamento, respeitante, a parte do prédio urbano (cave), inscrito na respectiva matriz sob o artigo …, freguesia de concelho de Arcos de Valdevez, o qual se encontrava dado de arrendamento a essa sociedade para fins de armazém, e nos devia ser entregue devoluto de pessoas e bens, até ao dia 17 de Setembro de 2013.
A nossa carta registada, foi recebida por V. Exas. em 15 de Maio de 2013, conforme melhor se retira do aviso de recepção.
Apenas, com data de 10 de Setembro de 2013, responderam V. Exas., alegando a inaplicabilidade do Art. 1097º alínea b) do Código Civil, pela redacção que lhe foi dada pela Lei 31/2012 de 14 de Agosto, aos contratos de duração indeterminada.
Salvo o devido respeito, V. Exas. estão a laborar em completo erro de raciocínio, pois não atenderam ao fim do contrato, pois esse tipo de arrendamentos, estão sujeitos ao regime geral da locação civil, e não sujeitos a um regime imperativamente vinculístico.
Na verdade, quer face a anterior lei, quer face ao Novo Regime do Arrendamento Urbano, os contratos para armazém, sempre foram de denúncia livre, vigorando e aplicando-se o regime geral da locação previsto no Artigos 1022º a 1063º do Código Civil, com aplicabilidade neste particular a alínea A) do Artigo 1055º do Código Civil.
Da conjugação das nomas do Artigo 1055º a) e do Artigo 1097º b) não restam dúvidas que o contrato de arrendamento para armazém deve ter-se por denunciado, com efeitos a partir do dia 17 de Setembro de 2013.
Uma vez que foi respeitado pela nossa parte o período de pré-aviso, deviam V. Exa., em conformidade proceder a entrega do arrendado, até ao pretérito dia 17 de Setembro de 2013.
Lamentavelmente, verificamos nesta data, V. Exas., ainda não procederam a entrega do arrendado.
Assim sendo e uma vez que V. Exas. não tem título válido para continuar a ocupar parte do prédio (cave), estão a incorrer em responsabilidade civil.
Assim, vimos mais uma vez informar V. Exas., que se o arrendado não nos for entregue até ao final do corrente mês de Setembro de 2013, iremos de imediato intentar as competentes acções judiciais, ficando V. Exas., responsáveis por todos os prejuízos que nos estão a ser causados.
Ao vosso dispor para qualquer esclarecimento.
Com os melhores cumprimentos.” (artigo 25º da petição inicial)
15) A carta supra referida foi recepcionada pela Ré em 30 de Setembro de 2013. (artigo 26º da petição inicial)
16) A Ré não entregou a parte do prédio (cave) que ocupa, ao Autor, no dia 17 de Setembro de 2013, nem posteriormente. (artigos 28º e 29º da petição inicial)
17) A Ré J…., Lda. dedica-se, desde há mais de trinta anos, à actividade de comércio de ferro, ferragens, drogaria, adubos, móveis, materiais de construção e artigos afins deste ramo. (artigo 4º da contestação)
18) O estabelecimento comercial situa-se, desde sempre, na Rua …, freguesia de Arcos de Valdevez – Salvador, concelho de Arcos de Valdevez. (artigo 5º da
contestação)
19) O espaço onde se verifica o atendimento e venda ao público é exíguo,
permitindo apenas albergar pequenas ferramentas e acessórios ou, ainda, relativamente a certos artigos, pequenas unidades de amostra. (artigos 7º, 8º e 12º da contestação)
20) Todo o restante artigo, designadamente, diversos tipos de arames, motosserras, máquinas de cortar relva, máquinas de sulfatar, rolos de tapetes, alfaias agrícolas, rolos de rede e outros elementos de grande porte e stock encontra-se armazenado no prédio identificado em 1). (artigos 12º da petição inicial e 9º da contestação)
21) Desde essa altura até aos dias de hoje que o imóvel em causa vem sendo usado como local de apoio ao sobredito estabelecimento comercial. (artigo 6º da contestação)
22) Onde se deslocam, quer os sócios gerentes da empresa, quer os seus
funcionários, diversas vezes ao longo do dia de trabalho, para recolher/colocar as mercadorias do seu comércio, aí recolhidas ou armazenadas, e por vezes até clientes a acompanhar os funcionários (artigos 15º da petição inicial e 10º da contestação, com aditamento de facto instrumental)
23) Entre um local (estabelecimento comercial) e outro (armazém) situa-se apenas a via pública. (artigo 11º da contestação)
24) O sobredito armazém desde sempre foi usado com essa função, considerando-se como uma parte integrante do estabelecimento – quer pela clientela, quer pelos fornecedores. (artigo 13º da contestação)
25) Com o intuito de proceder ao pagamento da renda referente ao mês de
Setembro de 2013, a Ré dirigiu-se, como sempre fez, ao estabelecimento comercial do Autor, tendo este recebimento sido recusado. (artigo 27º da contestação)
26) Nessa sequência, enviou carta registada com data de 10 de Setembro de 2013 onde expôs a sua posição relativamente à potencial desocupação do locado. (artigo 28º da contestação)
27) Aguardou resposta, que ocorreu a 30 de Setembro de 2013, onde o Autor
marcou o seu propósito de seguir com os intentos da desocupação, alegando motivos de facto e de direito. (artigo 29º da contestação)
28) A Ré procedeu, no dia 9 de Outubro de 2013, ao depósito das duas rendas em simultâneo (Setembro e Outubro de 2013) pela via da consignação em depósito. (artigo 30º da contestação)

2.1 O tribunal recorrido considerou, na fundamentação da sua decisão, que o contrato em discussão nos autos, apesar de ter por objecto mediato uma cave para armazém, foi celebrado com a fim comercial, tendo uma ligação directa com a actividade comercial da ré, desde o seu início, pelo que não era denunciável para o fim do prazo da renovação, como o defende o autor na sua petição inicial, antes se aplicando as regras do regime vinculístico, uma vez que se aplicam ao caso, os artigos 1095 do C. Civil e os artigos 26 n.º 4 e 28 da Lei 6/2006 de 27/02, não sendo livremente denunciável pelo senhorio, uma vez que se não aplica o artigo 1101 al c) do C. Civil.

O apelante insurge-se contra estes fundamentos, pondo em destaque os recibos juntos aos autos que demonstram que o contrato em causa foi para armazenagem e não para a actividade comercial, a caderneta predial que indica o destino da cave – arrecadação - não tendo sido licenciado para esse fim. E conclui que ao caso se aplica o disposto no artigo 5.ºn.2 al e) do RAU, que em conjugação com o artigo 59 n.º 3 da Lei 6/2006 é um contrato de arrendamento enquadrável na locação em geral, sendo denunciável nos termos do artigo 1055 do C. Civil.
Para sabermos se a denúncia é válida teremos de analisar a constituição do contrato e todo o seu percurso, desde a década de 70 do século XX até ao momento da sua denúncia, por parte do apelante e não aceite pela apelada.

Da matéria de facto provada nos pontos de facto 5 a 10, 17 a 24 da decisão recorrida resulta que o locado é uma cave que foi dada de arrendamento à ré, com o fim de nela armazenar mercadorias para vender na loja aberta ao público, que tinha e tem na mesma rua. E pela dimensão desta loja conclui-se que não poderia ter em exposição muitas mercadorias, principalmente volumosas. Daí que necessitasse de uma espaço que servisse de apoio logístico para o desenvolvimento do seu giro comercial na loja onde se encontra o estabelecimento de venda ao público. Assim se compreende que a ré estivesse interessada, aquando da contratação deste espaço, a afectá-lo como elemento de apoio ao seu negócio. E terá sido este desígnio que a levou a contratar, o que os antecessores do autor não desconheciam, pelo afirmado no artigo 5 da petição inicial, em que foi confessado que a cave foi arrendada para dar apoio à drogaria e loja de ferragens da ré, como armazém, onde foram colocados vários artigos.

É da conjugação dos elementos circunstanciais que envolveram o negócio e sua execução que nos permite descortinar o fim que as partes quiseram dar ao arrendado. Não há dúvida que o arrendado tinha como objectivo apoiar a actividade comercial da ré, como armazém, e foi o que as partes quiseram ao celebrar o contrato em discussão. Este desiderato enquadra-se no artigo 1112 do C. Civil vigente à data da outorga do contrato, na década de 70 do século XX, uma vez que as partes quiseram conexionar o arrendado com a actividade comercial da ré. Esta conexão funcional e até determinante para o exercício da actividade comercial da ré configura uma complementaridade ou acessoridade desta, pelo que merece a mesma protecção do regime jurídico aplicável aos arrendamentos para o comércio e indústria consagrado, de forma especial, nos artigos 1112 e seguintes do C. Civil, pelo que deve ser tratado como um contrato para o comércio.

Com a entrada em vigor do DL. 321-B/90 de 15 de Outubro, o que ocorreu a 15 de Novembro (artigo 2.º) e a revogação dos artigos 1083 a 120 do C. Civil (artigo 3.º n.º al. a)), o contrato continuou em vigor, porque a determinação do fim é um elemento constitutivo do contrato, está conexo com a vontade dos contraentes, aplicando-se as regras existentes à data da sua outorga, nos termos do artigo 12 n.º 1 e 2 primeira parte do C. Civil. E na economia deste diploma está consagrado o arrendamento para o comércio no artigo 110 a 120, pelo que o seu regime específico lhe é aplicável.
O artigo 5.º n.º 2 al e) deste diploma é uma norma inovadora, na medida em que prevê arrendamentos cujo objecto não merece a tutela do regime vinculístico e que faz parte do estatuto do senhorio e do arrendatário, pelo que se aplica aos arrendamentos vigentes à data da sua entrada em vigor (artigo 12 n.º 2 segunda parte do C. Civil), desde que se verifiquem os seus pressupostos. São três os requisitos: 1- arrendamentos de espaços não habitáveis; 2- fins limitados especificados no contrato; 3- não realizados em conjunto com arrendamentos de locais aptos para habitação, para o exercício do comércio e também da indústria, profissões liberais ou outros fins lícitos, que, apesar destes três últimos não serem mencionados na norma, incorporam as mesmas razões da exclusão.

A doutrina está dividida quanto ao âmbito de “ espaços não habitáveis” e “fins limitados”. Mas acaba por limitá-los aos que estão consignados na lei (afixação de publicidade, armazenagem, parqueamento de viaturas) porque não há muito mais ou simplesmente existem estes, como o referem Pereira Coelho e Pinto Furtado em RLJ. Ano 125, pag. 262, e Manual Arrendamento Urbano, Livraria Almedina, 1996, pag. 129 a 133, respectivamente, em que a daquele se impõe ao frisar “ espaços não habitáveis apenas os que, dadas as suas características, não sejam minimamente aptos para uso residencial, nem tão-pouco para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal, para instalação de serviços, para exercício de actividade permanente de associações ou organizações …”.

A realização em conjunto com arrendamentos de locais aptos para habitação, comércio, indústria, profissões liberais ou outros fins lícitos, como elemento de exclusão ou negativo, não implica que o contrato tenha sido celebrado na mesma ocasião, com o mesmo senhorio ou até se exija que tenha sido celebrado outro contrato. O que interessa é que o espaço não habitável tenha sido objecto de arrendamento conexionado com o fim habitacional, do comércio, indústria, fim liberal ou outro fim lícito, que não tenha autonomia económica, seja acessório ou complemento destas actividades e não se limite à publicidade, armazenagem ou parqueamento de viaturas. Pois, os interesses que se quiseram proteger com os arrendamentos previstos no artigo 5.º n.º 2 al. e) do RAU não se compadecem com a aplicação do regime vinculístico aplicável aos outros. Daí que sejam uma excepção. E o arrendamento destes espaços, quando conexionados com a actividade comercial, industrial ou outra que mereça a tutela vinculística, deve seguir o fim da actividade a que está adstrito, merecendo uma apreciação especial os arrendamentos para armazenagem na nota 19 da RLJ. Ano 125, pag. 263, e no Manual do Arrendamento Urbano de Pinto Furtado, 1996, Almedina a fls 133 “ …os de espaços não habitáveis destinados à fixação de painéis de publicidade, a estacionamento de viaturas e a armazenagem (esta, necessariamente, quando não se inscreva numa actividade comercial, industrial ou de exercício de profissão liberal do arrendatário) ”.

No caso em apreço estamos perante um contrato que tem como objecto mediato um armazém conexionado com uma actividade comercial. Não tem autonomia económica, e, como tal, exerce uma função acessória, complementar da actividade comercial da ré, pelo que não lhe é de aplicar o disposto no artigo 5 n.º 2 al. e) do RAU. Por outro lado, como o já referimos, o fim contratual é o comércio pelas razões acima apontadas, que não pode ser alterado pela lei nova, uma vez que não se aplica aos elementos constitutivos ou efeitos dos contratos, mas apenas ao estatuto do senhorio ou arrendatário, sendo o fim um elemento constitutivo do contrato.
Com a entrada em vigor da Lei 6/2006 de 27/02 foi revogado o RAU com excepção das matérias referidas nos artigos 26 a 28 daquela (artigo 60). E esses artigos enquadram-se nas normas transitórias do diploma que têm, como finalidade, salvaguardar alguns contratos existentes da aplicação de um novo regime jurídico do arrendamento não vinculístico. E, por sua vez, temos o artigo 59 que prevê regras sobre a aplicação desta lei no tempo. O número 1 refere “ O novo regime do arrendamento urbano aplica-se aos contratos celebrados após a entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias”.

Esta lei aplica-se ao contrato em causa, com a salvaguarda das normas transitórias. Como estamos perante um contrato não habitacional celebrado antes do DL. 257/95 de 30 de Setembro (contrato de arrendamento para o comércio segundo o regime jurídico do C. Civil e não alterado pelo RAU) aplica-se ao caso o disposto nos artigos 27 e 28 da Lei 6/2006 que remetem para o artigo 26 da mesma, mais concretamente para o n.º 4, porque o contrato é sem duração limitada, a que se aplica o regime jurídico dos contratos de duração indeterminada, com as excepções especificadas nas alíneas a), b) e c). Para o que nos interessa temos a alínea c), segundo a qual não se aplica a al. c) do artigo 1101 do C. Civil, se não se verificarem os pressupostos das alíneas a) e b) do n,º 6.
A alínea c) do artigo 1101 do C. Civil diz respeito à possibilidade do senhorio denunciar o contrato sem qualquer fundamento, desde que o faça com a antecedência de 5 anos da data da cessação. Mas não pode utilizar esta faculdade, por força do artigo 26 n.º 4 al. c) conjugado com o n.º 6 als. a) e b) da referida lei, porque não houve locação ou trespasse do estabelecimento após a entrada em vigor desta lei e não houve alteração das posições sociais da empresa ré em mais de 50% após a sua entrada em vigor.
A denúncia foi enviada à ré por carta registada com aviso de recepção no dia 14 de Maio de 2013 e recepcionada a 15 do mesmo mês e ano, com vista à entrega do prédio arrendado a 17 de Setembro de 2013, estando em vigor a lei 31/2012 de 14/08, cuja vigência é de 12 de Novembro de 2012, mas que manteve, no essencial, as regras transitórias dos artigos 26 a 28 da Lei 6/2006. Continuou a proibir, para os contratos não habitacionais celebrados antes do DL. 257/95 de 3 de Setembro, a denúncia injustificada, como resulta da leitura das normas transitórias expressas nos artigos 27 e 28 da 6/2006 de 27/02, com as alterações introduzidas, em que refere, no artigo 28 n.º 2, que se não aplica o disposto na alínea c) do artigo 1101 do C. Civil, que permite a denúncia para o fim do prazo, com a antecedência de pelo menos de dois anos. O que quer dizer que a denúncia deduzida nos autos é ilegal, e, como tal, não pode produzir os efeitos pretendidos.

Concluindo: 1. O contrato de arrendamento de parte de um prédio, para armazém, de apoio a uma actividade comercial da arrendatária, tem como finalidade acessória e complementar o comércio e deve seguir o regime jurídico deste.
2. O artigo 5.º n.º 2 al. e) do RAU é uma norma inovadora, abarcando os arrendamentos de espaços não habitacionais para afixação de publicidade, armazenagem, parqueamento de viaturas que não tenham conexão com a actividade habitacional, comercial, industrial, liberal etc…
3. Aos contratos não habitacionais celebrados antes do DL. 257/95 de 30 de Setembro aplica-se o regime transitório previsto no artigo 27 e 28 da Lei 6/2006 de 27/02, com as alterações introduzidas pela Lei 31/2012 de 14/08, em conjugação com a norma de aplicação no tempo, artigo 59 n.º 1, que entrou em vigor a 14 de Novembro, que não permite a denúncia injustificada.

Decisão
Pelo exposto acordam os juízes da Relação em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmam a decisão recorrida.
Custas a cargo do apelante.
Guimarães, 21/05/2015
Espinheira Baltar
Henrique Andrade
Eva Almeida