Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
140/11.0GDGMR-B.G1
Relator: FERNANDO CHAVES
Descritores: DESOBEDIÊNCIA
PROIBIÇÃO DE CONDUZIR VEÍCULO MOTORIZADO
NÃO ENTREGA DE CARTA DE CONDUÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/26/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I- A falta de cumprimento do dever de entrega da carta de condução previsto no n.º 3 do artigo 69.º do Código Penal e no n.º 2 do artigo 500.º do Código de Processo Penal integra um crime de desobediência previsto e punido nos termos das disposições conjugadas dos artigos 348.º, n.º 1, a) do Código Penal e 160.º, nºs 1 e 3 do Código da Estrada.
II- Destarte, assiste ao Tribunal que condenou o arguido na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados por determinado período legitimidade substancial para, na sentença condenatória, adverti-lo de que, se não proceder à entrega do seu título de condução, no prazo e termos fixados, incorrerá na prática do crime de desobediência.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório
Nos autos de processo sumário n.º 140/11.0GDGMR, a correr seus termos no 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Guimarães, foi proferida sentença que decidiu condenar o arguido Fernando R..., já melhor identificado nos autos, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 95 (noventa e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete euros), o que perfaz a multa de € 665,00 (seiscentos e sessenta e cinco euros), assim como na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados, prevista e punida pelo artigo 69.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, pelo período de 7 (sete) meses.
Mais se ordenou a notificação do arguido para, no prazo de 10 dias, após o trânsito em julgado da sentença, proceder à entrega da respectiva carta de condução sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência.
Inconformado com a decisão na parte em que se fez acompanhar a ordem de entrega da carta de condução da cominação de desobediência, o Ministério Público dela interpôs recurso, concluindo a sua motivação nos termos seguintes (transcrição):
“1 - Vem o presente recurso da decisão constante no dispositivo da sentença proferida nos autos em que, determinando-se a notificação do arguido para, no prazo de dez dias após o trânsito da sentença, entregar a sua carta de condução para efeito de cumprimento da pena acessória aplicada, se determina e surge realizada pelo Mm.º Juiz a advertência e cominação que a falta de entrega da carta de condução naquele prazo o faz incorrer na prática de um crime de desobediência.
2 - A discordância sobre tal procedimento e a razão de ser do presente recurso, centra-se e funda-se no facto de se considerar que tal ordem “não pode constar da sentença mas sim de decisão posterior ao momento a que alude o artigo 500.º, n.º 2 do C.P.P.,” sendo por isso ilegítima a cominação efectuada naquele momento processual pelo tribunal.
3 - Com efeito, das normas do artigo 69.º, n.º 2 do Código Penal e 500.º, n.º 2 e 3 do Código de Processo Penal, não decorre qualquer admissibilidade de anúncio ou de cominação inicial do crime de desobediência para o incumprimento da ordem de entrega da licença de condução;
4 - Como tal, fica afastada a prática, nesse momento, do crime de desobediência previsto e punível pelo artigo 348.º, nº 1, alínea b) do Código Penal, porque se abre essa situação de incumprimento, uma fase de cumprimento coercivo, através da apreensão;
5 - Só no âmbito do procedimento coercivo da apreensão, sendo aplicável o estatuído no artigo 160.º, n.º 1 e 3 do Código da Estrada, poderá ser, então, cominada a prática do crime de desobediência, caso o título de condução não seja entregue, sendo que, se estará então presente o tipo incriminador do artigo 348.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, uma vez que a disposição legal que a comina é a do artigo 160.º, n.º 3 do Código da Estrada;
6 - Assim visto, a ordem cominatória determinada no dispositivo da sentença proferida nos autos é ilegal, tendo violado o disposto nos artigos 348.º e 69.º, n.º 2 do Código Penal e artigo 500.º n.º 2 e 3 do Código de Processo Penal.
Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente, e, em consequência, revogar-se a decisão constante no dispositivo da douta sentença proferida nos autos, declarando ineficaz ou inoperante a advertência cominatória de crime de desobediência para o caso da não entrega da carta de condução no prazo de 10 dias após o trânsito da sentença.
Assim farão Vossas Excelências,
Senhores Desembargadores do Tribunal da Relação de Guimarães
como sempre,
JUSTIÇA”
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Não foi apresentada qualquer resposta ao recurso interposto pelo Ministério Público.
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Nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, sufragando a posição assumida na motivação de recurso apresentada pelo Ministério Público na 1ª instância, emitiu parecer no sentido de este ser julgado procedente.
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No âmbito do disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, o arguido nada disse.
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Foram colhidos os vistos e realizou-se a conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
1. Na parte decisória da sentença proferida nos autos de processo sumário n.º 140/11.0GDGMR, do 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Guimarães, exarada em acta, consta, além do mais, o seguinte:
«Notifique, sendo o arguido com a expressa advertência de que deverá proceder à entrega da respectiva carta de condução na secretaria deste Tribunal ou em qualquer posto policial, no prazo de 10 dias, após trânsito em julgado da presente sentença, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência – cfr. 500.º, n.º 2 do Cod. de Proc. Penal –, advertindo-se ainda o arguido de que não vai receber qualquer outra notificação, nomeadamente via postal, para o efeito.»;
2) Da acta de audiência resulta que estiveram presentes na leitura da sentença, além do mais, o arguido e o seu ilustre defensor, os quais foram devidamente notificados;
3) Por termo lavrado em 28 de Março de 2011, o arguido foi ainda notificado nos seguintes termos:
«a decisão condenatória, caso não seja interposto, transita em julgado no dia 6 de Maio de 2011 pelo que a entrega do título de condução deverá ser efectuada até ao dia 16 de Maio de 2011, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática de crime de desobediência, previsto no artigo 348.º, n.º 1, al. b) do CP, punível com pena de prisão até 1 ano ou multa até 120 dias».
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2. Apreciando.
1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal( - Diploma a que se referem os demais preceitos legais citados sem menção de origem.) que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso( - Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, volume III, 2ª edição, 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 7ª edição, 107; Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17/09/1997 e de 24/03/1999, in CJ, ACSTJ, Anos V, tomo III, pág. 173 e VII, tomo I, pág. 247 respectivamente.), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso( - Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado no Diário da República, Série I-A, de 28/12/1995.).
Atentas as conclusões formuladas pelo recorrente( - Diga-se ainda que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar – Germano Marques da Silva, obra citada, pág. 335; Daí que se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões – Simas Santos e Leal Henriques, obra citada, pág. 107, nota 116.), a questão a decidir consiste em saber se é ilegal a ordem cominatória determinada no dispositivo da sentença proferida nos autos supra referenciados.
Na verdade, no presente recurso apenas é posta em causa a condenação do arguido na parte em que determinou a obrigação deste entregar a sua carta de condução, no prazo de 10 dias, após o trânsito em julgado da sentença, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência.
Segundo informa o Exmo. Procurador-Adjunto subscritor da peça recursória existe uma determinação do Exmo. Procurador da República Coordenador do Círculo Judicial de Guimarães impondo aos Magistrados afectos aos Juízos Criminais a interposição de recurso sempre que a ordem de entrega da carta de condução seja feita na sentença condenatória com a cominação de desobediência.
De acordo com o entendimento defendido pelo recorrente tal ordem “não pode constar da sentença mas sim de decisão posterior ao momento a que alude o artigo 500.º, n.º 2 do C.P.P.,” sendo por isso ilegítima a cominação efectuada naquele momento processual pelo tribunal.
Encurtando razões – atenta a urgência que os novos tempos impõem –, dir-se-á que acompanhamos a jurisprudência que defende que a falta de cumprimento do dever de entrega da carta de condução previsto no n.º 3 do artigo 69.º do Código Penal e no n.º 2 do artigo 500.º do Código de Processo Penal integra um crime de desobediência previsto e punido nos termos das disposições conjugadas dos artigos 348.º, n.º 1, a) do Código Penal e 160.º, nºs 1 e 3 do Código da Estrada( - Neste sentido, Acórdãos da Relação de Lisboa de 24/3/2010 e de 5/4/2011, da Relação do Porto de 9/6/2010, 2/3/2011 (Proc.ºs 1313/09.1TAVCD.P1 e 583/09.0TAVFR.P1) e 18/5/2011, desta Relação de 15/11/2010, da Relação de Évora de 20/5/2010 e da Relação de Lisboa de 15/12/2010, todos disponíveis em www.dgsi.pt com excepção dos últimos dois publicados na CJ, Ano XXXV, tomo III, página 266 e tomo V, página 156; Ainda Acórdãos da Relação de Lisboa de 23/9/2010 e 23/11/2010, estes sumariados in www.pgdlisboa.pt.).
Ainda que esta posição se possa defrontar com a problemática colocada quanto à referência, no citado artigo 160.º, nºs 1 e 3, à proibição de conduzir e, assim, como se de sanção administrativa se tratasse, tal preceito deve ser interpretado dentro da unidade do sistema jurídico, sem restrição substancial que inquine a sua inteira aplicação à situação em apreciação – artigo 9.º, n.º 1 do Código Civil.
Como se salienta no citado acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24/3/2010, a proibição de conduzir a que se refere o artigo 160.º do Código da Estrada não pode deixar de ser a pena acessória de natureza penal que se encontra prevista no artigo 69.º do Código Penal e que foi imposta ao arguido no caso em apreço.
A legitimidade da ordem tem de ser aferida enquanto elemento integrado na ordem jurídica no seu todo, só podendo ser reconhecida quando não a contrarie, sendo que a ordem do tribunal foi, inevitavelmente, dada por referência aos artigos 69.º, n.º 2 do Código Penal e 500.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, sem que, neste âmbito, se possa dizer que se tratou, tão-só, de uma comunicação com carácter informativo, atento o próprio conteúdo que lhe foi atribuído, ao dela ter-se feito constar uma específica cominação pelo seu incumprimento.
A finalidade de execução da pena acessória de proibição de conduzir é alcançada, quando o título de condução não esteja já apreendido nos autos ou não seja voluntariamente entregue pelo condenado, através da apreensão do mesmo, a qual, naturalmente, será determinada pela falta de entrega e posteriormente a esta, não se confundindo, pois, a decisão da pena e o efeito imediatamente atribuído mediante aquela ordem com a diligência que assegurará a execução dessa mesma pena.
A apreensão prevista no n.º 3 do artigo 500.º do Código de Processo Penal mais não é do que uma forma coerciva de fazer cumprir um dever que não foi voluntariamente cumprido, o que não impede, nem afasta, que o Juiz, na leitura da sentença, reforce a necessidade de o arguido proceder à entrega da licença de condução dentro do prazo fixado, cominando a omissão do comportamento devido com a prática do crime de desobediência( - Como se refere no Acórdão da Relação do Porto de 18/11/2009, “[o] facto de a norma (artigo 500.º do CPP) avançar com uma solução para o caso de o condenado não proceder à entrega, significa, apenas, que o sistema previu essa possibilidade e acautelou-a, estabelecendo como saída para o incumprimento a apreensão do título por parte das autoridades. Isto não retira nem acrescenta argumentos. É que se a lei não desse solução ao caso, então a recusa do arguido em entregar a carta de condução seria, eventualmente, inultrapassável” – disponível em www.dgsi.pt/jtrp. ).
Aliás, como se extraí da parte final do n.º 3 do artigo 160.º, quando esteja em causa a apreensão do título de condução para cumprimento da cassação do título, proibição ou inibição de conduzir, a notificação do condutor para entregar o título de condução deve ser efectuada com a notificação da decisão ( - No sentido de que a advertência e cominação podem ocorrer no momento da leitura da sentença – cfr. Acórdãos da Relação do Porto de 2/3/2011 (Proc.ºs 1313/09.1TAVCD.P1 e 583/09.0TAVFR.P1) e desta Relação de 15/11/2010, já citados. ).
Por outro lado, se o condutor não proceder à entrega do título de condução, a entidade competente pode determinar a sua apreensão, através da autoridade de fiscalização e seus agentes, sem prejuízo da punição por crime de desobediência, como resulta do n.º 4 do artigo 160.º.
Destarte, assiste ao Tribunal que condenou o arguido na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados por determinado período legitimidade substancial para, na sentença condenatória, adverti-lo de que, se não proceder à entrega do seu título de condução, no prazo e termos fixados, incorrerá na prática do crime de desobediência.
Improcede, portanto, o interposto recurso.

III – DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
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Sem tributação.
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(O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do CPP)
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Guimarães, 26 de Setembro de 2011