Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
62/12.8TCGMR.G1
Relator: MANSO RAÍNHO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SEGURO AUTOMÓVEL
RESERVA DE PROPRIEDADE
TOMADOR
DANO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/14/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I - Contendo o contrato de seguro de danos ressalva de direitos de terceiro, na circunstância um credor hipotecário e titular do direito de reserva de propriedade sobre o veículo automóvel seguro, não tem o tomador do seguro direito a reclamar para si a indemnização pelo dano ocorrido em tal veículo.
II - Tal direito pertence ao credor, de modo que só pode ser exercido para a sua esfera jurídica deste ou com seu consentimento.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

A… demandou, pelas Varas Mistas de Guimarães e em autos de ação declarativa com processo na forma ordinária, B… - Companhia de Seguros, peticionando a condenação desta no pagamento da quantia de €35.341,12, acrescida de juros.
Alegou para o efeito, em síntese, que celebrou com a Ré um contrato de seguro, cobrindo furto ou roubo e prejuízos adicionais, relativo a veículo automóvel que o Autor havia comprado (mas de que ficara reservada a propriedade a favor da entidade que financiou tal aquisição). Sucede que o veículo veio a ser furtado. Recuperado, constatou-se que sofrera perda total. Competia assim à Ré pagar ao Autor a diferença entre o valor do veículo e o dos salvados (€21.291,12), o que a Ré não fez. Por outro lado, o Autor ficou privado da viatura, tendo por isso direito a ver o correspetivo prejuízo reparado com a indemnização de €14.000,00. Mais gastou o Autor a quantia de €50,00 no reboque do veículo, quantia esta que à Ré compete, igualmente, pagar ao Autor.
Contestou a Ré, concluindo pela improcedência da ação.
Seguindo o processo seus termos, veio a final a ser proferida sentença que, em procedência parcial da ação, condenou a Ré a pagar ao Autor a quantia de €20.351,12, acrescida de juros.

Inconformada com o assim decidido, apela a Ré.

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Da respectiva alegação extrai as seguintes conclusões:

I. Em contrato de seguro de danos próprios constituída reserva de propriedade, sobre o veículo automóvel seguro a favor de terceiro que, naquele contrato assume ainda a posição de credor hipotecário, o capital seguro deverá ser pago a este terceiro e não ao tomador e segurado no mesmo contrato, que não poderá pedir esse pagamento para si próprio mas apenas para aqueloutro.
II. Deverá, como tal, a apelante ser absolvida de pagar o dito capital seguro ao apelado.
III. A sentença recorrida, ao condenar a apelante a pagar ao apelado o capital seguro fez, salvo o devido respeito, uma errada aplicação do previsto nos artºs 692º/1 do Código Civil e nos artºs 43º/1, 102º/1 e 103º do RJCS, devendo, como tal, ser revogada e substituída por outra decisão que absolva a apelante do pedido.

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A parte contrária não contra-alegou.

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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir, tendo-se sempre presentes as seguintes coordenadas:
- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;
- Há que conhecer de questões, e não das razões ou fundamentos que às questões subjazam;
- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.

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É questão a conhecer:
- A de saber se o Autor goza do direito a receber da Ré indemnização pelo dano decorrente do furto do veículo.

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Estão provados os fatos seguintes:

1- Por contrato celebrado em Novembro de 2009, o Autor declarou comprar o veículo automóvel de matrícula …-…-PI, marca Mercedes-Benz, modelo S 320 CDI, pelo preço de € 27.500,00 - resposta ao quesito 1.º da Base Instrutória.
2- Aquando do negócio referido em 1, o Autor solicitou e obteve um financiamento de € 16.650,00 para aquisição do automóvel - resposta ao quesito 2.º da Base Instrutória.
3- Por contrato titulado pela apólice n.º 008410340226 o Autor declarou transferir para a Ré, que declarou assumir, com início em 11.02.2011, a responsabilidade, entre outros, pelo risco de danos próprios do veículo com a matrícula …-…-PI, nomeadamente decorrentes de furto ou roubo e de prejuízos adicionais - alínea A) dos Factos Assentes.
4- O contrato referido em 3 previa uma franquia de € 940,00 por sinistro - alínea E) dos Factos Assentes.
5- A Ré fixou em € 23.500,00 o valor seguro para o automóvel - resposta ao quesito 3.º da Base Instrutória.
6- No artigo 2.º do ponto 06 das condições especiais do contrato referido em 3, sob a epígrafe “Exclusões”, o Autor e a Ré estipularam que “Para além das exclusões previstas no Art.º 6.º das Condições Gerais para as Condições Especiais, ficam ainda excluídos do âmbito desta Condição Especial, os danos: a) que se traduzam em lucros cessantes de qualquer natureza e gastos de substituição ou depreciação do veículo seguro, em resultado do sinistro - resposta ao quesito 17.º da Base Instrutória.
7- No dia 4 de Março de 2011, cerca das 19.00 horas, o Autor estacionou o automóvel …-…-PI junto ao seu local de trabalho, na Zona Industrial de Pocinhos, Oliveira de São Mateus, V. N. de Famalicão - resposta ao quesito 4.º da Base Instrutória.
8- No dia seguinte, pela manhã, verificou o desaparecimento da viatura - resposta ao quesito 5.º da Base Instrutória.
9- A viatura foi recuperada num local escondido no meio de uma zona arborizada, no Monte de Stª Tecla, Oliveira Santa Maria, Vila Nova de Famalicão - resposta ao quesito 6.º da Base Instrutória.
10- A viatura foi encontrada com vários danos e com falta de componentes e peças essenciais ao seu funcionamento - alínea B) dos Factos Assentes.
11- Entre outras, desapareceram algumas peças do motor e da caixa de velocidades, os pára-choques frontal e traseiro, as ópticas, o capot, o tablier, o rádio e a ignição - alínea C) dos Factos Assentes.
12- Em 25.03.2011, a Ré concluiu tratar-se de um sinistro abrangido pelo conceito de “perda total” - resposta ao quesito 7.º da Base Instrutória.
13- Em 25.03.2011 a Ré atribuiu à viatura o valor venal de €21.291,12, depois de deduzido o valor do salvado, no montante de €550,00 - alínea D) dos Factos Assentes.
14- O Autor utilizava diariamente a sua viatura para cumprimento de obrigações profissionais e ainda em deslocações de natureza pessoal e familiar – Cfr., resposta ao quesito 8.º da Base Instrutória.
15- O Autor ficou privado do uso da viatura e das suas utilidades desde a data do seu desaparecimento - resposta ao quesito 9.º da Base Instrutória.
16- Em parte desse tempo, o Autor teve de recorrer a outros veículos automóveis - resposta ao quesito 10.º da Base Instrutória.
17- E sofreu os inerentes incómodos - resposta ao quesito 11.º da Base Instrutória.
18- Esta situação tem-se protelado até hoje - resposta ao quesito 12.º da Base Instrutória.
19- A Ré não disponibilizou ao Autor o montante correspondente ao valor venal da viatura - resposta ao quesito 13.º da Base Instrutória.
20- O Autor despendeu o montante de € 50,00 com o reboque do veículo do Monte de St. Tecla para as instalações indicadas pela GNR - resposta ao quesito 15.º da Base Instrutória.

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Sustenta a Ré que não podia ter sido condenada a pagar ao Autor a indemnização como foi, pois que o seguro que serve de fundamento à pretensão do Autor foi estabelecido a favor da credora hipotecária Totta Crédito Especializado IFC, S.A.
A nosso ver tem razão.
Justificando:
Está provado que o Autor adquiriu a viatura segura na Apelante mediante um financiamento que contraiu junto de C…, S.A.
Da documentação constante dos autos (fls. 199 e 201) retira-se que o Autor se vinculou - e para além de que a que a propriedade ficasse reservada a favor da entidade financiadora - a constituir hipoteca sobre o veículo adquirido em favor de tal entidade financiadora, da mesma forma que se vinculou a subscrever em benefício desta seguro relativamente à viatura. Tal vinculação do Autor corresponde, aliás, a uma prática comum em casos que tais. Diz a propósito José Vasques (Contrato de Seguro, p. 122) que “É prática comum o credor do mútuo com hipoteca exigir que o mutuário realize seguro do bem sobre que recai a hipoteca, com o objetivo de, se este se perder, deteriorar ou diminuir de valor, conservar sobre a indemnização a que haja lugar as preferências que lhe cabiam em relação à coisa onerada (art. 692º, nº 1 do Código Civil). Esta exigência do credor materializa-se na inclusão de uma cláusula declarando o interesse do credor hipotecário no contrato de seguro”.
Ora, a referida vinculação por parte do Autor ao cumprimento do mandato (pois que, no fundo, é de mandato que se trata, cfr. José Vasques, ob. cit., pp. 172 e 173) de contratar o seguro em benefício daquela entidade financiadora mostra-se cumprida através da contratação do invocado seguro de danos.
É o que se retira das condições particulares insertas na apólice (fls. 14), donde precisamente foi feita constar a credora hipotecária C…, S.A. E esta menção só pode ser interpretada como significando a ressalva dos seus direitos.
Deste modo, não pode senão concluir-se que o seguro de danos invocado pelo Autor como fundamento da sua pretensão indemnizatória contra a Ré foi feito na sequência e em decorrência do contratado, no contexto do financiamento, a título de salvaguarda dos interesses da referida credora hipotecária. Ou seja, o seguro foi feito por conta de tal credora, em benefício desta.
E, como resulta dos art.s 47º e 48º do RJCS (anexo ao DL nº 72/28), o seguro pode ser feito por conta própria (neste caso o contrato tutela o interesse próprio do tomador do seguro) ou por conta de outrem (neste caso o terceiro é que é a pessoa segura, o titular dos direitos emergentes do contrato).
Ora, sucede que nos termos da cláusula F. das cláusulas especiais do contrato de seguro em causa (foi prevista a aplicação de tal cláusula F. ao caso, como resulta das condições particulares da apólice) haverá que observar o disposto no artigo 26º das condições gerais. E este artigo dispõe que quando se verifique ressalva de direitos a favor de pessoas ou entidades indicadas nas condições particulares da apólice a liquidação de sinistros por perda total não poderá ser efetuada sem o prévio acordo dessas pessoas ou entidades.
Também, nos termos do nº 3 do art. 48º do RJCS, o tomador do seguro não pode exercer quaisquer direitos emergentes do contrato sem o consentimento da pessoa beneficiária do seguro. Concordantemente, aduz José Vasques (ob. e loc. cit.) que quando tenha sido inserta cláusula declarando o interesse do credor hipotecário no contrato de seguro,” não pode a seguradora proceder a qualquer pagamento em caso de sinistro, a qualquer alteração ou à anulação da respectiva apólice sem o seu prévio consentimento”.
E dos art.s 102º e 103º do mesmo RJCS decorre que a prestação do segurador tem de ser feita a quem for devida, sendo que o pagamento efetuado em prejuízo de direitos de terceiros de que o segurador tenha conhecimento (e a hipótese mais comum de tal conhecimento acontecer será a de ressalva expressa no texto da apólice, como aduz a Apelante [citando a propósito o entendimento de Pedro Romano Martinez e outros], e é precisamente o que sucede no caso vertente) designadamente credores preferentes, não o libera do cumprimento da sua obrigação.
Deste modo, o Autor não possui qualquer direito contratual no confronto da Ré a que esta lhe pague, para ingressar na respetiva esfera jurídica, a indemnização reclamada pelo dano da perda total do veículo em decorrência do alegado furto. Nem a Ré pode ser coagida a tal pagamento, sob pena de ter de pagar novamente (desta feita à credora ressalvada). Tal indemnização está direcionada para a esfera jurídica da pessoa beneficiária, e daqui que somente poderia ser feita valer pelo Autor para ingressar em tal esfera jurídica (mas não é assim que está formulado o pedido), da mesma forma que somente com o consentimento da beneficiária (e tal consentimento não se mostra alegado, e muito menos provado) é que o Autor poderia reclamar a indemnização.
A questão, como se vê, não é exatamente a de saber se o Autor podia ou não celebrar o contrato de seguro em causa (e foi basicamente neste sentido que se direcionou a sentença recorrida), pois que certamente que podia (como se demonstra na mesma sentença), mas sim a de saber a quem pertence o direito de indemnização decorrente do sinistro verificado.
E o que dizemos é que o direito, na forma como veio exercido, não pertence ao Autor. E daqui que a ação devesse improceder também no segmento ainda em discussão.

Procedem assim as conclusões do recurso e, com elas, a apelação.

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Decisão:

Pelo exposto acordam os juízes nesta Relação em julgar procedente a apelação e, revogando a sentença recorrida, julgam improcedente a ação (na parte ainda em questão) e absolvem a Ré do pedido.

Regime de custas:

O Autor é condenado nas custas da apelação e nas custas da ação.

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Sumário (art. 713º nº 7 do CPC):
I - Contendo o contrato de seguro de danos ressalva de direitos de terceiro, na circunstância um credor hipotecário e titular do direito de reserva de propriedade sobre o veículo automóvel seguro, não tem o tomador do seguro direito a reclamar para si a indemnização pelo dano ocorrido.
II - Tal direito pertence ao credor, de modo que só pode ser exercido para a sua esfera jurídica deste ou com seu consentimento.

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Guimarães, 14 de novembro de 2013
Manso Rainho
Carvalho Guerra
José Estelita de Mendonça