Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
134/12.9TAPVL.G1
Relator: FERNANDO MONTERROSO
Descritores: BURLA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/04/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO IMPROCEDENTE
Sumário: I – O crime de burla implica o emprego de um meio enganoso que seja a causa da prática, pelo burlado, dos atos de que resulta o prejuízo patrimonial. É incompatível com o uso de tal meio o facto das entregas de dinheiro se deverem a uma situação de constrangimento do queixoso, por ter receio de não vir a receber outras quantias já anteriormente emprestadas.
II – No crime de burla, o enriquecimento do agente tem de ser ilegítimo. Para se determinar se o aumento no seu património constituiu enriquecimento ilegítimo, há que atender ao conceito civilístico de enriquecimento sem justa causa. Não basta o enriquecimento ter sido “imoral” ou “injusto”, segundo critérios do senso comum.
III – Estando em causa entregas de dinheiro feitas pelo queixoso ao arguido, a título de “empréstimos”, para que se conclua pela prática de um crime de burla é necessário que os factos, de forma inequívoca, permitam a formulação do juízo de que não se está perante o mero não cumprimento por parte do arguido de contratos de mútuo validamente celebrados.
IV – No âmbito da obtenção de empréstimos pelo arguido, é requisito da condenação por crime de burla que se alegue na acusação que ele atuou com a intenção de não pagar as quantias que lhe foram sendo entregues. Não é suficiente a alegação de que o arguido apresentou pretextos falsos para conseguir os empréstimos.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
No Tribunal Judicial da Póvoa de Lanhoso, em processo comum com intervenção do tribunal singular (Proc.nº 134/12.9TAPVL), foi proferida sentença que:
1 - Condenou a arguida Maria P... como autora de um crime de burla qualificada p. e p. pelos arts. 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 2 alínea a) do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, subordinada ao dever de pagar ao lesado, a quantia de € 40.000 (quarenta mil Euros), entregando a quantia de € 10.000 em cada seis meses a contar do trânsito em julgado ou garantir o seu pagamento total por meio de caução idónea, no prazo de seis meses a contar do trânsito em julgado.
2 – Declarou perdido a favor do Estado o veículo apreendido nos autos, matrícula 75-...-81, por o mesmo ter sido adquirido pela arguida e representar uma vantagem patrimonial ilícita, por ter sido obtido através da prática da burla – artigo 111.º, n.º 2 do Código Penal.
*
A arguida Maria P... e o assistente Joaquim V... interpuseram recurso desta sentença.
A arguida Maria P... suscitou as seguintes questões:
- impugna a decisão sobre a matéria de facto, visando, alterada esta, ser absolvida;
- invoca os vícios do erro notório na apreciação da prova e da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
- não atou com dolo mas com negligência;
- subsidiariamente, a pena deverá ser fixada no mínimo legal, suspensa na sua execução por igual período, não sedo subordinada a qualquer entrega de dinheiro ao ofendido.
O assistente Joaquim V... suscitou as seguintes questões:
- os € 2.825,00 apreendidos nos autos devem ser entregues ao assistente, como parte do ressarcimento dos danos sofridos; ou, subsidiariamente,
- devem ser convertidos em caução económica, nos termos do disposto no art. 227 nº 2 do CPP;
- deve ser imposto à arguida, como condição de suspensão da execução da prisão, a obrigação de pagar ao assistente a quantia de € 120.000,00;
- deve ser ordenada a entrega ao assistente do veículo apreendido nos autos, ou subsidiariamente, a entrega ao assistente do produto que vier a resultar da venda do mesmo.
*
Respondendo, a magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido defendeu a improcedência do recurso da arguida e a procedência parcial do recurso do assistente (na parte relativa à perda a favor do Estado do veículo apreendido)
Nesta instância o sr. procurador geral adjunto emitiu parecer no mesmo sentido da magistrada do MP junto do tribunal recorrido.
Cumpriu-se o disposto no art. 417 nº 2 do CPP.
Colhidos os vistos cumpre decidir.
*

I – Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1. A arguida Maria P... inscreveu-se na agência matrimonial “Gente G...”, com sede na cidade do Porto, utilizando dois nomes distintos, o de Paula C..., no qual indicava o número de telemóvel 916132... como contacto e o de Ana L..., com uma fotografia a cores sua, no qual indicava o número de telemóvel de contacto 962265....
2. Em inícios de 2010 o ofendido Joaquim V..., viu um anúncio nas páginas dos classificados de um jornal da agência matrimonial, “Amore N...”, e em meados do ano de 2010, o ofendido deslocou-se à citada agência, no Porto, tendo-lhe sido fornecido o nome de Paula C..., bem como o seu contacto telefónico.
3. Nesse mesmo dia, o ofendido contactou telefonicamente com a suposta Paula C..., vindo a encontrar-se poucas horas depois num local próximo da estação de comboios de Ermesinde.
4. Neste primeiro encontro, a arguida, utilizando o nome de Paula C..., disse ao ofendido que tratava de idosos e nos encontros seguintes foi referindo que estes lhe deixariam a herança que possuíam mas que, para isso, precisava da ajuda do ofendido para pagar os impostos que estavam em atraso e para pagar dívidas pessoais suas relativas a execuções.
5. Nas semanas seguintes, iniciaram uma relação de namoro, havendo a promessa de vida futura em comum, quando a arguida resolvesse os problemas da herança, que seria para os dois, pedindo-lhe sempre quantias em dinheiro aquando dos seus encontros, logrando manter esta situação até à sua detenção.
6. Neste tempo, a arguida foi pedindo dinheiro, alegando sempre o mesmo propósito, ou seja, o pagamento de dívidas fiscais e legalização de bens imóveis, tendo o ofendido feito depósitos/transferências bancárias, entregando quantias que variaram entre € 300 e € 2.000 (28/06/2010, depósito efectuado em conta € 800; 30/06/2010, depósito efectuado em conta € 1300, 06/07/2010: depósito efectuado em conta € 400, 07/07/2010, depósito efectuado em conta € 600, 09/07/2010, depósito efectuado em conta € 300; 14/07/2010, depósitos efectuados em conta € 2000 + € 500; 15/07/2010, depósito efectuado em conta € 300).
7. Em Julho de 2010 as poupanças do ofendido acabaram, pelo que negou-se a emprestar mais dinheiro à arguida. Perante tal recusa, esta terá dito que se o ofendido não quisesse perder todo o dinheiro que lhe havia emprestado até ali, teria de lhe emprestar mais dinheiro, pelo que o mesmo decidiu retirar o dinheiro da conta bancária de que era co-titular juntamente com o seu filho, sendo que o dinheiro que estava nessa conta seria exclusivamente do seu filho, no montante de cerca de €43.000,00.
8. Assim, retirou o dinheiro dessa conta e entregou o mesmo à arguida ao longo dos 2 últimos anos, sendo que esta sempre lhe disse que reporia o dinheiro logo que tivesse a sua situação resolvida, o que nunca sucedeu, pelo que além de ter ficado sem as suas poupanças, sem o dinheiro (cerca de 43.000,00€) que pertencia ao seu filho, ainda pediu emprestado a amigos e familiares.
9. Estas quantias foram depositadas na conta bancária n.º 0035 058503862... (em nome de Maria P...), conta esta indicada pela própria, num montante que ascendeu, pelo menos, a € 79.709 (setenta e nove mil Euros setecentos e nove Euros).
10. Entregou ainda o ofendido à arguida um montante não concretamente apurado de numerário, para as despesas relativas à marcação da escritura.
11. Por último, no mesmo período de tempo, foi contactado telefonicamente por diversas pessoas que se foram identificando ora como familiares da Paula C..., ora como pretensos advogados, a mando da mesma, pressionando-o a entregar dinheiro.
12. No dia 27 de Setembro de 2012, cerca das 19:30 horas, a arguida contactou telefonicamente o ofendido, dizendo-lhe para comparecer no dia 2 de Outubro de 2012, por volta das 08:30 horas, frente à C... de Ermesinde, para que o ofendido lhe fizesse a entrega do montante de 1.000,00 Euros, para a realização da escritura da quinta, já marcada no notário da Rua Sá da Bandeira, Porto, às 10:30 horas do mesmo dia.
13. Não existia nenhuma marcação de escritura na data referida pela arguida ou em qualquer outra data no cartório notarial sito na rua Sá da Bandeira, na cidade do Porto.
14. A arguida conhecia perfeitamente a falsidade do rosário de mentiras que foi desfiando, com a intenção de, com esse artifício, iludir o ofendido, convencendo o mesmo, recorrendo a uma identidade falsa, a entregar-lhe aquela quantia em dinheiro, consciente de que, sem essa encenação, nunca lhe seriam confiadas.
15. A arguida agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei e punida criminalmente.
Mais resultou provado:
16. A arguida não declara rendimentos desde, pelo menos, 2008, apresentando como último desconto com atividade independente o mês de Junho de 2007; a arguida não tem qualquer bem imóvel em seu nome, referindo que reside em casa oferecida por anterior namorado; a arguida adquiriu o veículo automóvel matrícula 75-...-81, a 27 de Setembro de 2012, com o dinheiro recebido do ofendido.
17. A arguida está desempregada, vive com amiga e uma filha; tinha um salão de massagens em Paredes, que consta nos documentos oficiais como sua residência.
18. O ofendido ficou sem as economias de uma vida, perdendo a casa em acção executiva, e teve de suportar empréstimo para pagar as dívidas em que incorreu, sofrendo grande vergonha e desgosto pelo sucedido.
19. A arguida tem como antecedentes criminais averbados as seguintes condenações:
- Por sentença transitada em julgado a 16-09-2002, proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca do Porto, foi a arguida condenada pela prática, a 21 de Outubro de 2007, do crime de abuso de cartão, na forma continuada, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de € 7;

- Por sentença transitada em julgado a 12-06-2006, proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Paredes, foi a arguida condenada pela prática, a 03 de Janeiro de 2002, do crime de apropriação ilegítima, na pena de 9 meses de prisão, suspensa na execução, na condição de proceder ao pagamento de € 3600 de indemnização no prazo de 1 ano.


Factos não provados
Com interesse para a boa decisão da causa não se provaram outros factos para além dos supra referidos ou que com estes estejam em contradição, sendo que resultaram provados todos os factos constantes da acusação, com excepção da entrega em numerário de € 10.000 em Abril/Maio de 2010.

Transcreve-se igualmente a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto
A convicção do Tribunal baseou-se na apreciação crítica e global de toda a prova produzida, à luz das regras da experiência, nomeadamente, na admissão geral dos factos pela arguida, confirmando o teor dos documentos juntos aos autos – inscrições na agência matrimonial de fls. 178 e 179 e contrato do ofendido de fls. 183, cópias das transferências bancárias de fl. 21 a 61 e cadernetas onde constam essas transferências, e corroborados pelo depoimento claro, sincero e pesado do ofendido, que se nos afigurou como credível.
Apesar da admissão dos factos, a arguida negou qualquer intenção de enganar o ofendido, referindo que deu uma identidade falsa aconselhada pela agência, mas que o ofendido soube logo o seu verdadeiro nome, que pediu dinheiro apenas porque precisava de ajuda para pagar as dívidas de imposto, que tinha várias execuções e não podia ter nada em seu nome e que nunca o enganou. No entanto, a própria arguida, no seu depoimento, tratou de se contradizer e confirmar os factos: - a iniciativa por dar um nome falso foi própria e que sempre se manteve como Paula C... para o ofendido, não tratando de o esclarecer, ainda para mais por pretender constituir uma vida em comum; - que referiu ao ofendido uma herança de uns idosos de quem tratava, sendo que, em 2010, quando conheceu o ofendido, já não tratava dos referidos idosos há uns anos e que estes nunca lhe deixaram qualquer herança; - que já em 2010 lhe falava de uma escritura de terrenos, que nunca existiram, quer terrenos, quer escritura; esclareceu que apesar das dívidas, tinha em nome dela contas bancárias (e as saídas de dinheiro são substancialmente utilizadas para compras de roupas/sapatos e outros bens digamos não essenciais e não para pagamento de dívidas, sendo que nada consta no Banco de Portugal – fls. 250) e até admitiu que o que procurava era alguém que a ajudasse – sendo que, de acordo com as declarações de rendimento às finanças de fls. 257 a 261, demonstram que não declarou rendimentos desde 2008, e que o ofendido a ajudou por “ser doido por ela” mas que o ameaçou e tratou mal para ele pagar “se não perdiam tudo”, quando não havia nada para perder.
De todos estes elementos se infere que a arguida ludibriou o ofendido, aproveitando-se da disponibilidade financeira e credulidade e ingenuidade deste e utilizando todos os seus recursos, que não seriam disponibilizados não fora toda a teia montada pela arguida.
Assim, e uma vez que relativamente ao elemento subjectivo, que pertence à vida interior de cada um, a sua apreensão resultará de ilações atendendo ao princípio da normalidade (neste sentido, Ac. Da RP de 23/02/1983, BMJ n.º 324, p. 620 apud Simas Santos e Leal-Henriques, Código Penal Anotado – 1º volume, p. 188), foram estes factos relevantes para a prova do dolo e intenção da arguida.
No que concerne aos antecedentes criminais atendeu-se ao teor do Certificado de Registo Criminal constante dos autos e quanto às condições económicas e sociais da arguida, foram tidas em conta as suas declarações e documentos juntos, bem como as declarações das testemunhas, que convivem com a arguida e que referiram que esta não trabalha, que sobrevive, além do mais, com as ajudas de terceiros.

FUNDAMENTAÇÃO
A arguida impugna a decisão sobre a matéria de facto, visando, alterada esta, ser absolvida.
Suscita-se, porém, a questão prévia de saber se os factos provados, mesmo mantendo-se, são suficientes para a condenação, nos termos decididos na primeira instância.

*
Comete o crime de burla “quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial” – art. 217 nº 1 do CPP.
Para o crime de burla “não basta o simples emprego de um meio enganoso: torna-se necessário que ele consubstancie a causa efetiva da situação de erro em que se encontra o indivíduo. Também não se mostra suficiente a simples verificação do estado de erro: requer-se, ainda, que nesse engano resida a causa da prática, pelo burlado, dos atos de que resultam os prejuízos patrimoniais” – Conimbricense, tomo II, pag.293.
Isto é, o erro há-de ser causa adequada do ato que causou prejuízo patrimonial, segundo os critérios do normal acontecer das coisas da vida.
Por outro lado, o enriquecimento tem de ser ilegítimo. Para se saber se determinado aumento no património constituiu enriquecimento ilegítimo, há que atender ao conceito civilístico de enriquecimento sem justa causa – acs. STJ de 23-1-97, BMJ 463/276 e da Rel Coimbra de 28-11-87, CJ, tomo 5, pag. 67. Não basta o enriquecimento ter sido “imoral” ou “injusto”, segundo critérios do senso comum.
Por último, é um crime doloso. Embora o dolo possa assumir as suas diversas modalidades (direto, necessário ou eventual), trata-se de um delito de intenção. Não é suficiente o dolo de causar um prejuízo patrimonial, exigindo-se que o agente tenha a “intenção” de conseguir através da conduta um enriquecimento ilegítimo – Conimbricense, tomo II, pag.309.
Estas três dimensões relevam para a análise que se passará a fazer dos factos provados que coincidem, no essencial, com os que já constavam da acusação.
*
Analisemos, então, os factos.
Em resumo, começam eles por relatar que a arguida Maria P... inscreveu-se numa agência matrimonial com o falso nome de Paula C.... Em meados de 2010 o queixoso Joaquim Vaz contactou com a arguida, através daquela agência, tendo os dois iniciado uma relação de namoro, com a promessa de vida futura em comum. Pelo menos no primeiro encontro, a arguida utilizou o nome de Paula C... (factos nºs 4 e 5).
Uma primeira nota: a circunstância da arguida Maria P... usar o nome falso de Paula C... durante o namoro, constitui, naturalmente, um «engano», mas que não é criminalmente relevante para o efeito da burla. Nenhuma relação de causa-efeito pode ser estabelecida entre o facto da arguida afirmar chamar-se Paula C... e a decisão do queixoso lhe entregar quantias em dinheiro. Não se vê que o seu comportamento tivesse sido outro se soubesse o verdadeiro nome da arguida. As entregas de dinheiro não foram determinadas por esse falso convencimento. Pelo contrário, pois os depósitos eram feitos numa conta titulada pela arguida Maria P... (facto nº 9). Destinando-se o dinheiro à “Paula C...”, o facto de ser depositado numa conta da “Maria P...” poderia suscitar dúvidas ao queixoso.
*
No ponto nº 6, discriminam-se quantias em dinheiro entregues pelo queixoso à arguida durante os meses de junho e julho de 2010 – destas se tratará mais à frente.
Nos pontos nºs 7 a 9 refere-se que “em julho de 2010 as poupanças do ofendido acabaram, pelo que negou-se a emprestar mais dinheiro à arguida. Perante tal recusa, esta terá dito (?) que se o ofendido não quisesse perder todo o dinheiro que lhe havia emprestado até ali, teria de lhe emprestar mais dinheiro”. Em consequência disso, durante os dois anos seguintes, o queixoso entregou à arguida cerca de € 43.000 que retirou duma conta de que era cotitular com o seu filho.
Nesta parte, não pode ser afirmada a existência de qualquer “engano”, com as características acima referidas. A entrega do dinheiro “terá sido A redação do facto nº 7 é incorreta. Nos «factos provados» não devem ser usadas expressões que, incriminando o arguido, revelem dúvidas do julgador quanto à sua ocorrência, como foi, no caso, mencionar-se o que a arguida “terá dito” ao queixoso. Se o juiz não tem certezas deve dar o facto como «não provado», em obediência ao princípio in dubio pro reo, em vez de optar por uma redação que remete para uma mera probabilidade. Ninguém pode ser condenado por “talvez” ter praticado determinado facto. motivada pela situação de constrangimento em que o queixoso se encontrava (receio de perder o já emprestado), o que, pela própria natureza das coisas, é incompatível com a existência duma entrega por erro ou engano astuciosamente provocado.
A circunstância das entregas serem devidas a uma situação de constrangimento e não de erro ou engano do queixoso, resulta igualmente do facto nº 11: “no mesmo período de tempo, foi contactado telefonicamente por diversas pessoas que se foram identificando ora como familiares da Paula C..., ora como pretensos advogados, a mando da mesma, pressionando-o a entregar dinheiro”.
Também não se configura, nesta parte, a prática de um crime de extorsão, por ser requisito deste o uso de “violência ou de ameaça com mal importante” – cfr. art. 223 do Cod. Penal.
Ou seja, as entregas referidas nos pontos nºs 7 e 8 dos «factos provados» não podem ser atribuídas à prática de um crime de burla.
O facto nº 10 tem a seguinte redação: “Entregou ainda o ofendido à arguida um montante não concretamente apurado de numerário, para as despesas relativas à marcação da escritura”.
Trata-se de facto novo, que não constava da acusação.
Estará relacionado com os factos nºs 12 e 13, mas destes apenas resulta que os dois combinaram a realização duma escritura, que a arguida disse falsamente ao queixoso estar marcada para as 10h30m do dia 2 de outubro de 2012, tendo-lhe pedido que lhe entregasse € 1.000,00 às 8h30m desse mesmo dia.
Porém, além de não estar provado que os € 1000,00 foram efetivamente entregues, não se conhecem os contornos subjacentes ao negócio. Sabe-se só que se tratava da “realização da escritura da quinta” (facto nº 12), mas os factos não concretizam qual era a “quinta”; de quem foi a iniciativa de a adquirir; em que consistiu o artifício enganoso congeminado pela arguida, na pretensa aquisição da “quinta”; quais os atos praticados pelo queixoso que causaram prejuízo ao seu património (ou de outrem); nem, finalmente, em que consistiu esse prejuízo e qual a sua dimensão.
Sem outros contornos, que a acusação também já não narrou (os factos provados sob os nºs 12 e 13 são a reprodução dos que constam nos pontos 14 e 15 da acusação), trata-se igualmente de factos criminalmente inócuos.
*
Restam, pois, as entregas do ponto nº 6 dos factos provados.
Neste ponto refere-se que o queixoso foi entregando à arguida quantias em dinheiro (entre € 300,00 e € 2.000,00), alegando esta que se destinavam ao “pagamento de dívidas fiscais e legalização de bens imóveis”.
Como acima se referiu, para se saber se determinado aumento no património constituiu enriquecimento “ilegítimo”, há que atender ao conceito civilístico de enriquecimento sem justa causa. Um dos requisitos do «enriquecimento sem causa» é não haver “razão legal que o justifique Rodrigues Bastos, volume II, em anotação ao art. 473 do CC.. “A falta de justa causa traduz-se na inexistência de uma relação ou de um facto que, à luz dos princípios, legitime o enriquecimento” – ac. STJ de 14-1-70, citado por Abílio Neto em anotação ao art. 473 do Cod. Civil.
No ponto nº 7 dos factos provados esclarece-se a que título foram feitas as entregas de dinheiro – eram “empréstimos” – o ofendido “negou-se a emprestar mais dinheiro à arguida”.
Pois bem, o destino que o mutuário dá ao dinheiro que lhe foi emprestado não é elemento essencial do contrato de mútuo (cfr. art. 1142 do Cod. Civil). A circunstância do mutuário dar ao dinheiro destino diferente daquele que indicou ao mutuante, não torna o contrato nulo, nem inexistente. O contrato de mútuo e a correspondente obrigação de restituição mantêm-se, nos precisos termos acordados, porque os motivos meramente individuais, que não fazem parte do conteúdo do negócio, não podem, em princípio, produzir a nulidade do contrato (art. 252 do Cod. Civil).
É certo que os factos provados não são suficientes para, de forma inequívoca, definir todos os contornos juridicamente relevantes dos empréstimos feitos pelo queixoso à arguida. Porém, para a condenação, seria necessário que os factos permitissem a formulação do juízo de que houve um “enriquecimento ilegítimo”, excluindo a hipótese de estarmos perante um mero não cumprimento por parte do arguido de contratos de mútuo validamente celebrados. A possibilidade de se formular esse juízo tinha já de resultar dos factos da acusação (por força do princípio da acusação), mas esta sofre das mesmas fragilidades dos factos da sentença, pois, nesta parte, os factos das duas coincidem.
Ou seja, em conclusão, face à matéria de facto do ponto nº 6, não é possível afirmar mais do que a existência de vários contratos de mútuo celebrados entre as partes.
Por outras palavras, havendo “razão legal” para a posse do dinheiro por parte da arguida, não se verifica o requisito do “enriquecimento ilegítimo” do crime de burla.
É pertinente lembrar aqui o princípio da subsidiaridade do direito penal, a que alguns atribuem dignidade constitucional, segundo o qual a intervenção do direito criminal só é legítima quando a tutela dos bens jurídicos em causa não poder ser garantida por outras vias que implicam custos menos drásticos – ac. STJ de 1-7-98 CJ stj, tomo 2, pag. 226. Os meios cíveis são o local o local adequado para as partes discutirem os exatos contornos dos negócios e acordos que celebraram, que, aliás, como se viu, não resultam totalmente claros da matéria de facto.
Finalmente, mas não menos decisivo para a sorte do processo:
O agente do crime de burla tem de agir com a intenção de obter enriquecimento ilegítimo. Constitui elemento subjetivo do tipo do crime sem o qual este não ocorre.
No âmbito da obtenção dum empréstimo, tal requisito implicava a alegação na acusação de que a arguida agiu com o propósito (ou a intenção) de não pagar as quantias que lhe foram sendo entregues. Pode alguém, para obter um empréstimo, apresentar pretextos falsos para o conseguir, mas, ainda assim, ter a intenção de o pagar – sobre caso similar, embora com contornos factícos não totalmente coincidentes, v. o já citado acórdão do ac. STJ de 1-7-98 CJ stj, tomo 2, pag. 226Não comete o crime de burla aquele que, fazendo crer a uma sociedade de locação financeira que comprava material fornecido por outra empresa, vem a conseguir o financiamento que pretendia, quando bem sabia que a empresa vendedora nada fornecia, se agiu com a intenção de vir a pagar todas as rendas…” – v. sumário deste acórdão, Maia Gonçalves, em anotação ao art. 217 do Código Penal..
A “intenção” com que o arguido atua constitui matéria de facto, que tem de constar da acusação por crime de burla, sob pena de esta decair. Trata-se de um facto do foro psicológico, mas “facto”. Os factos deste tipo são, muitas vezes, indemonstráveis de forma naturalística, mas o tribunal pode considerá-los provados, através de outros que com eles normalmente se ligam.
Pois bem, do facto provado nº 14 apenas resulta que a arguida com o “rosário de mentiras” que “desfiou” teve só a intenção convencer o queixoso a “a entregar-lhe aquela quantia em dinheiro, consciente de que, sem essa encenação, nunca lhes seriam confiadas”.
A acusação e a sentença nenhum facto contêm tendente a enquadrar o referido requisito da arguida ter atuado com a intenção de não pagar os empréstimos (dessa forma obtendo enriquecimento ilegítimo) e não apenas de se socorrer de inverdades para conseguir os empréstimos.
Não se argumente, em sentido contrário, que tal intenção resulta implícita do conjunto do comportamento da arguida.
Não deve ser confundida a exigência de alegação de todos os factos que integram o tipo de crime com a prova dos mesmos. Por exemplo, o modo como uma bofetada foi desferida pode inculcar a certeza de que houve intenção de ofender corporalmente. Porém, isso não dispensa a alegação (na acusação) dos factos que integram o dolo.
A circunstância do dolo poder ser provado (e, portanto, inferir-se) com recurso a presunções naturais ou com recurso às regras da vida não significa que fica prescindida a respetiva alegação dos factos que o integram – cfr. a tal propósito Figueiredo Dias, “Ónus de alegar e de provar em processo penal”, RLJ, 105º, nº 3473, 1972, p. 128, «uma coisa é a presunção, de iure ou iuris tantum, do dolo, absolutamente inadmissível (...) em qualquer terreno do direito penal moderno; outra coisa completamente diferente – e, esta sim, aceitável – seria a necessidade de o juiz comprovar a existência do dolo através de presunções naturais (não jurídicas) ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral ou às chamadas máximas da vida e regras da experiência».
*
Não constituindo os factos a prática de crime de burla, tem a arguida Maria P... de ser absolvida.
Em consequência, revoga-se a decisão de perda a favor do Estado do veículo apreendido.
Deverão ser restituídos à arguida todos os bens que lhe foram apreendidos, se a apreensão não interessar a outros processos.
Fica prejudicado o conhecimento das questões suscitadas no recurso do assistente Joaquim V..., que improcede, pois todas as pretensões nele deduzidas pressupõem a condenação penal da arguida.

DECISÃO
Os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães:
1 – Julgam improcedente o recurso do assistente Joaquim V...; e
2 – Absolvem a arguida Maria P..., com as consequências acima indicadas.
O assistente pagará 3 UCs de taxa de justiça.