Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
147/10.5TABRG-A.G1
Relator: TOMÉ BRANCO
Descritores: SIGILO PROFISSIONAL
ADVOGADO
QUEBRA DE SIGILO PROFISSIONAL
MANDATO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/10/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: QUEBRA DE SIGILO
Decisão: DISPENSADO PARCIALMENTE
Sumário: I- A obrigação de segredo profissional só excepcionalmente deverá cessar, e na medida em que seja "absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente

II- Saber a data de início do mandato, mais não é do que a revelação de um acto de natureza fiscal pois que o mandato forense não constitui uma liberalidade em favor de outrem é um contrato oneroso estando sujeito a tributação. Aliás, este apuramento mais não é do que corolário da existência do que é afirmado pelo advogado e que fundamenta a invocação da sua escusa. Portanto, neste particular, não há lugar a dever de sigilo
Decisão Texto Integral: Acordam, precedendo conferência, na Relação de Guimarães:

I)
Investiga-se nestes autos a prática dum crime de casamento de conveniência p. e p. nos termos do art. 1865 da Lei 23/2007 de 04/07, investigação que está a ser realizada pelo SEF, sendo já neles arguidos L…, M… e J…...

O órgão de policial criminal citado representou como necessário a inquirição de R…, advogado e mandatário da mencionada arguida L…. Especificamente pretende que ao mesmo sejam colocadas as seguintes questões:
Proceder ao reconhecimento de fotogramas constante dos autos;
Saber se a 21/12/2009 e 13/01/2010 esteve na Conservatória do Registo Civil de Braga acompanhando algum dos arguidos;
Se representou a arguida na organização do processo de casamento civil em causa nos autos;
Se sabe das razões porque a arguida L… não esteve presente no Registo Civil e das razões porque foi passada uma procuração pela mesma em favor do arguido M…
Saber as datas em que a L… o constitui seu mandatário, se frequentou a casa daquela, se os nubentes se deslocaram ao seu escritório para tratar do casamento e
Saber se confirma a formulação de convite seu à testemunha D… para ser testemunha nesse casamento.

O causídico referido negou-se a prestar depoimento quando confrontado com a situação escusando-se a prestar depoimento sob invocação de sigilo profissional nos termos do art. 135 do CPPenal. Nesse depoimento tornou claro que "na altura dos factos" representou a cidadã brasileira L… -. Vd. fls. 18 destes autos. Ou seja, confirmou a existência de um mandato forense com a citada.
Colocada a questão ao M.mo Juiz, por ele foi obtida a posição da Ordem dos Advogados sobre o assunto - vd. fls. 34, tendo esta emitido parecer no sentido da legitimidade da escusa por parte do mencionado advogado - vd. fls. 39.
Foi, então, proferido despacho pelo senhor Juiz a quo, no qual depois de considerar legítima a escusa, suscitou a intervenção deste Tribunal da Relação para que seja decidido o incidente, nos termos do artº 135, nº 3 do CPP – Cfr. fls. 40.

Nesta instância o Exmº Procurador Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual conclui “Na ponderação dos interesses conflituantes, somos de parecer que a quebra do dever de sigilo profissional apenas se justifica na parte em que no inquérito em causa se pretende saber do advogado, mandatário da arguida, a data em que foi firmado o respectivo mandato forense já que a existência deste contrato não está abrangido por este, indeferindo-se, por isso, o pedido de levantamento do sigilo quanto às demais questões atinentes ao conteúdo desse mandato, não obstando a tal a eventual constituição de arguido do advogado escusante”.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

Fundamentação
A questão trazida à apreciação desta Relação é a de saber se perante o circunstancialismo invocado nos autos se verificam os requisitos ou pressupostos que permitam decidir pela pretendida quebra de sigilo profissional.
E avançando desde já a solução, diremos que a resposta à questão em apreciação não pode deixar de ser senão aquela que vem defendida pelo Exmº PGA no seu parecer.
Assim sendo, e porque este Tribunal adere a toda a argumentação e, à solução preconizada no referido parecer, sem que nada mais se nos ofereça acrescentar, vamos limitar-nos a transcrever o referido parecer:

“2. Pressupostos de direito
O art. 135º do CPPenal, ao aludir ao "segredo Profissional" no seu n°1, prevê que
“ ... os advogados (…) podem escusar-se a depor sobre os factos abrangidos por aquele segredo",
Dizendo o n°3 do mesmo normativo que a intervenção do "tribunal imediatamente superior àquele onde o incidente se tiver suscitado", é suscitada "pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento".
In casu, conforme se viu, a intervenção do Tribunal da Relação foi suscitada a pedido do M°P°.
O mesmo n°3 estabelece que aquele referido Tribunal hierarquicamente imediatamente superior
“… pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante”.
Significa o acabado de citar que o dever de segredo profissional não é um dever absoluto, isto é, não prevalece sempre sobre qualquer outro dever que com ele entre em conflito.

Nos termos do art. 83.°, n.° 1, al. e), do Estatuto da Ordem dos Advogados (aprovado pelo DL n.° 84/84, de 16/3, com a rectificação publicada no D.R., 1 Série, de 31/5/84 e com as alterações que lhe foram introduzidas pelo DL n.° 119/86, de 28/5, pelo DL n.° 325/88, de 23/9 e pela Lei n.° 33/94, de 6/9), nas relações com o cliente o obrigado está obrigado a guardar segredo profissional.
Por sua vez, nos termos do art.° 81.°, n.° 1, al. a) do referido Estatuto, o advogado está obrigado a segredo profissional no que respeita a
"factos referentes a assuntos profissionais que lhe tenham sido revelados pelo cliente ou por sua ordem ou conhecidos no exercício da profissão" .
Nos termos do n.° 3 do mesmo artigo,
"o segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo."
Como se disse no Parecer n.° 110/566 do conselho Consultivo da Procuradoria Geral da Republica (BMJ, n.° 67, pág. 294),
"o exercício de certas profissões, como o funcionamento de determinados serviços, exige ou pressupõe, pela própria natureza das necessidades que tais profissões ou serviços, pela própria natureza das necessidades que tais profissões ou serviços visam satisfazer, que os indivíduos que a eles tenham de recorrer revelem factos que interessam à esfera íntima da sua personalidade, quer física, quer jurídica (…).
Quando esses serviços ou profissões são de fundamental importância colectiva, porque virtualmente todos os cidadão carecem de os utilizar, é intuitivo que a inviolabilidade dos segredos conhecidos através do seu funcionamento ou exercício constitui, como condição indispensável de confiança nessas imprescindíveis actividades, um alto interesse público."
Como salienta o Prof. Costa Andrade in Comentário Conimbricense do Código Penal, 1, 1999, pp. 795/7961,
"... há-de ter-se presente o critério material adoptado pelo legislador e segundo o qual o tribunal competente só pode impor a quebra do segredo profissional quando esta se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante. Uma fórmula que se projecta em quatro implicações normativas fundamentais:
Em primeiro lugar e por mais óbvia, avulta a intencionalidade normativa de vincular o julgador a padrões objectivos e controláveis, não cometendo a decisão à sua livre apreciação;
Em segundo lugar, resulta líquido o propósito de afastar qualquer uma de duas soluções extremadas: tanto a tese de que o dever de segredo prevalece invariavelmente sobre o dever de colaborar com a justiça penal (…) como a tese inversa, de que a prestação de testemunho perante o tribunal (penal) configura só por si e sem mais, justificação bastante da violação do segredo profissional (...);
Em terceiro lugar, o apelo ao princípio da ponderação de interesses significa o afastamento deliberado da justificação, neste contexto, a título de prossecução de interesses legítimos (...); d)
Em quarto lugar, com o regime do art. 135.° do CPP, o legislador português reconheceu à dimensão repressiva da justiça penal a idoneidade para ser levada à balança da ponderação com a violação do segredo: tudo dependerá da gravidade dos crimes a perseguir (…).
O dever de segredo profissional é geralmente estabelecido a favor da integridade e liberdade das pessoas a quem aproveita.
O caso concreto
Quid juris no caso vertente? Que interesses se confrontam?
De um lado, temos a salvaguarda do interesse, e respectiva tutela, da relação advogado/cliente, bem assim a protecção da confiança do indivíduo que recorre aos serviços do advogado, nele confiando, ao revelar-lhe factos de cariz sigiloso, que deseja se mantenham privados, fazendo-o no intuito de melhor esclarecer o advogado quanto à situação de facto existente. Contudo, a confidencialidade e o secretismo que conformam a relação advogado/cliente assumem relevância axiológica, não tanto pela salvaguarda do interesse individual de cada uma das partes contratantes, interesse que efectivamente assegura, mas sim pela garantia que aqueles valores conferem ao exercício da própria profissão da advogado. O interesse protegido pelo segredo profissional dos advogados é altamente relevante, só devendo ser quebrado em casos muito excepcionais, como resulta, aliás, do disposto no n.° 4 do art. 81.° do Estatuto da Ordem dos Advogados cujo teor é o seguinte:
"4. Cessa a obrigação de segredo profissional em tudo quanto seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho distrital respectivo, com recurso para a Ordem dos Advogados."
Como se deixou dito no acórdão da Relação de Coimbra CJ Ano 1989, T. II. pag. 76,
"ao abrir-se ao advogado porque sabe que ele não pode, de forma alguma, fazer sair do seu gabinete o que ouve de forma a prejudicá-lo, o cliente está tranquilo no sentido de que com isso, não ser cometido crime".
Assim, a obrigação de segredo profissional só excepcionalmente deverá cessar, e na medida em que seja "absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente".
Se assim é de um lado, do outro temos o interesse da boa administração da justiça penal, que se afirma através do princípio da verdade material.
No caso in judice, verifica-se que o SEF pretende do mandatário da arguida L… coisas bem distintas, umas relativas a factos eventualmente revelados pela cliente, outras atinentes a factos conhecidos no exercício da profissão, e ainda outros que anda têm a ver com estes.

Concretizando.
Pretender que o advogado em causa responda à questão de saber se representou a arguida no processo de casamento da arguida é assunto já respondido por ele no depoimento já prestado pois foi esta circunstância que fundou a invocação do sigilo profissional.
Pretender saber se acompanhou algum dos intervenientes ao registo civil de Braga, saber da ausência da arguida nesse Registo e das razões que a levaram a outorgar procuração em favor de outrem, saber se frequentou o domicílio da arguida, saber se esta e demais nubentes foram ao seu escritório tratar do casamento e se para este convidou a dita testemunha, é avançar para o interior do mandato, para o campo de reserva inerente ao mesmo. O mesmo se diga no que concerne à realização dum reconhecimento de pessoas, assunto comporta uma identificação física. Um depoimento do advogado versando sobre estes assuntos, necessariamente que o colocaria na posição de ter revelar o conteúdo do assunto versado pela sua cliente, a arguida, os limites do caso, as circunstâncias em que ela pretendia realizar o seu casamento com um nacional português. Ora, um tal depoimento não significaria que com ele o advogado estivesse a defender os interesses últimos da sua cliente. Cremos, no desconhecimento de quaisquer razões ponderosas avançadas, que o seu depoimento não seria "absolutamente necessário" para a defesa da dignidade, dos direitos quer do advogado quer da sua cliente, justificando-se, deste modo, a cessação do dever de sigilo. A realização da justiça, no caso concreto, não passa por tal cessação quanto a tais factos.

Mas se em relação a esses factos assim ocorre, em nosso juízo já aparece de forma oposta quando o órgão de polícia criminal pretende do advogado a data em que foi constituído o mandato.
Saber a data de início do mandato, mais não é do que a revelação de um acto de natureza fiscal pois que o mandato forense não constitui uma liberalidade em favor de outrem é um contrato oneroso estando sujeito a tributação. Aliás, este apuramento mais não é do que corolário da existência do que é afirmado pelo advogado e que fundamenta a invocação da sua escusa.
Portanto, neste particular, não há lugar a dever de sigilo.
E quanto ao demais, necessariamente que ponderando as circunstâncias, sempre equacionará o órgão de polícia criminal em causa se relativamente às questões envoltas pelo sigilo profissional não se justificará, ao invés da sua objectivada pretensão, uma constituição de arguido daquele advogado”.
Resta decidir.
Decisão:
Nestes termos, acordam os Juízes desta Relação em deferir parcialmente a pretensão formulada e, em consequência dispensa-se o Exmº Sr. Advogado R… do sigilo a que está obrigado na parte em que no inquérito em causa se pretende saber a data em que foi firmado o respectivo mandato forense e não se dispensa quanto às demais questões atinentes ao conteúdo desse mandato.

Sem tributação.
Notifique.

Guimarães, 10 de Outubro de 2011