Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1/12.6TBMNC.G1
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: CASO JULGADO
CAUSA DE PEDIR
PEDIDO
ACIDENTE DE TRABALHO
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/10/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: No âmbito da excepção de caso julgado, a circunstância de numa "acção se pretende[r] obter (…) a responsabilização" de uma sociedade pelo "pagamento de uma indemnização" é, por si só, claramente insuficiente para se poder concluir que, por num outro processo já se ter pretendido responsabilizar essa mesma pessoa colectiva, há uma identidade de pedidos entre uma e outra causa.
E a existência de factos comuns em duas lides não implica, necessariamente, que na segunda se repete a causa de pedir da primeira.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I
A… instaurou, na comarca de Monção, a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra M…, L.da, A… e M…, pedindo a condenação solidária dos réus no pagamento de € 399 727,20, acrescidos de juros vincendos.
Alegou, em síntese, que em Maio de 2008 o seu marido trabalhava para a ré M…, L.da, da qual é sócio e gerente o réu A… e sócio o réu M…, quando foi vítima de um acidente que lhe causou a morte. Esse acidente resultou do comportamento negligente dos réus. Pretende ser indemnizada pelo dano morte e pelo dano que resulta de ter deixado de receber do seu marido uma parte do salário que ele ganhava e que lhe entregava para "governo da casa".
Os réus contestaram deduzindo, designadamente, a excepção de caso julgado, por nesta acção as partes, o pedido e a causa de pedir serem as mesmas do processo 294/08.3TTVCT do Tribunal do Trabalho de Viana do Castelo.
A autora replicou afirmando não ocorrer o alegado caso julgado.
Foi proferido despacho saneador em que se julgou "procedente a excepção dilatória de caso julgado suscitada pelos RR. e absolvem-se os mesmos da presente instância."
Inconformada com esta decisão, a autora dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação e com efeito devolutivo, findando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:
1- A excepção de caso julgado verifica-se quando há em duas acções a tripla identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir.
2- Só há caso julgado quando tais identidades são concomitantes.
3- No caso vertente não há identidade de sujeitos nem de causa de pedir e nem mesmo de pedido.
4- Violou a sentença de que se recorre o disposto no art.º 478.º do Código Civil e o disposto no arte 497.º do Código do Processo Civil.
Os réus não contra-alegaram.
As conclusões das alegações de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir consiste em saber se deve ser julgada procedente ou improcedente a excepção dilatória de caso julgado deduzida pela ré na sua contestação.
II
1.º
Para a apreciação da questão suscitada importa ter presente os seguintes factos:
1. Na sua petição inicial a autora alega, em síntese, que:
- A 7 de Maio de 2008 faleceu o seu marido M…;
- Nesse dia, M…, após ter parado o camião que conduzia, accionou o mecanismo que faz levantar a báscula para proceder à descarga do carregamento que trazia de tout-venant numa Estrada Municipal no lugar de Santiago, freguesia de Barbeita, concelho de Monção;
- Depois desceu da cabine do veículo e foi entregar ao encarregado da obra a guia de transporte do material que descarregava;
- No momento em que, fora do camião, M… entregava a guia de transporte, o veículo começou a tombar sobre o seu lado esquerdo;
- Na tentativa de salvar a carga e evitar os danos para o veículo, M… correu e tentou entrar na cabine do camião;
- Nesse momento o veículo tombou e colheu M… esmagando-o entre a cabine e o solo.
- O veículo não estava homologado em Portugal para bascular reboques, já que não vinha equipado para tal de fábrica, funcionando ilegalmente ao fazê-lo;
- M… era trabalhador da ré M..., L.da, o réu A… era seu sócio-gerente e o réu M… era sócio dessa sociedade;
- "Não estando a viatura apta a circular é grave culpa dos Réus colocar nas mãos do seu trabalhador este veículo já que não estava capacitado para aquele tipo de trabalho";
- "Considerando (…) as dores, os sofrimentos, o desconforto e a angústia que a Autora sente deverão os Réus ser condenados a pagar à Autora pelo ressarcimento do dano da perda de vida" uma indemnização;
- "Sofreu danos patrimoniais porquanto uma parte significativa do salário de seu defunto marido era entregue à Autora para a "governo" da casa", sendo de € 10 824,24 o salário anual.
2. A autora formula o pedido de condenação solidária dos réus no pagamento de um total de € 399 727,20, sendo € 75 000,00 relativos ao "ressarcimento do dano da perda da vida" e € 324 727,20 referentes à parte do ordenado do falecido que este lhe entregava "para governo da casa" e que, por causa da sua morte, deixou de lhe ser entregue.
3. No Tribunal do Trabalho de Viana do Castelo correu o processo 294/08.3TTVCT em que era autor a aqui autora e réu a aqui ré M…, L.da, no qual foi proferida sentença que absolveu a ré "dos pedidos contra si formulados".
4. Na petição inicial dessa acção a autora alegou, em suma, que o seu marido M… era trabalhador da ré M..., L.da quando foi vítima do acidente que também descreve nos presentes autos, e que aí qualificou como sendo um acidente de trabalho, pedindo a condenação desta a realizar:
"a) O pagamento da pensão anual vitalícia no valor de €: 3.247,27, com início no dia 8 de Maio de 2008 (dia seguinte ao da morte) que, sem prejuízo das devidas actualizações será de €: 4.329,70 após a idade da reforma ou em caso de doença física ou mental que afecte sensivelmente a sua capacidade de trabalho (art.º 20.º, n.º 1, alínea a) da Lei 100/07, de 13-09 e artigo 49.º, do DL 143/99, de 30-04)
b) O pagamento de subsídio por morte no montante de €: 5.122,00
c) O pagamento do subsídio de funeral de €: 1.704,00.
d) O pagamento de €: 50,00, em despesas de deslocações obrigatórias a este Tribunal."
2.º
O n.º 1 do artigo 498.º do (anterior) Código de Processo Civil [1] estabelece que "repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir", definindo os seus n.os 2 a 4 os conceitos de identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir.
Como é sabido, o caso julgado tem como fundamentos "o prestígio dos Tribunais" e a "certeza ou segurança jurídica" [2] e destina-se "a evitar uma contradição prática de decisões, e não já a sua colisão teórica ou lógica (…), [e] pretende obstar a decisões concretamente incompatíveis (que não possam executar-se ambas em detrimento de alguma delas; a que no novo processo o juiz possa validamente estatuir de modo diverso sobre o direito, situação ou posição jurídica concreta definida por uma anterior decisão, e portanto desconhecer no todo ou em parte os bens por ela reconhecidos e tutelados." [3]
Os limites do "caso julgado são traçados pelos elementos identificadores da relação ou situação jurídica substancial definida na sentença: os sujeitos, o objecto e a fonte ou título constitutivo" [4], só actuando "quando está em causa, entre os mesmos sujeitos, o mesmo objecto do processo (…). A discussão entre sujeitos diferentes (dos vinculados pelo processo) (…) está fora está fora dos limites do caso julgado." [5]
Na situação dos autos é pacífico que a aqui autora foi quem instaurou o processo 294/08.3TTVCT, demandando (somente) a aqui ré M…, L.da. Significa isso que os aqui réus A… e M… não foram intervenientes nessa lide. Apesar disso, os réus afirmam que "as partes são as mesmas e portadoras do mesmo interesse substancial." [6]
Com o devido respeito, não se vê como se pode, quanto a estes dois réus, sustentar esta conclusão; essa realidade não emerge dos dados apurados.
Para efeitos de caso julgado, o que se verifica é que a autora e a ré M…, L.da são, efectivamente, as mesmas do processo 294/08.3TTVCT. Mas, essa identidade de sujeitos já não ocorre na relação processual que agora se estabelece entre a autora e os réus A… e M…, sabendo nós que a pessoa do sócio se não confunde com a da sociedade e que o gerente desta representa a pessoa colectiva e não ele próprio. Com estes pressupostos, não se vê como se pode entender que os réus A… e M… são aqui portadores do "mesmo interesse substancial" que a ré M…, L.da tinha na acção 294/08.3TTVCT, visto que esta foi aí demanda (exclusivamente) na sua condição de entidade patronal do seu trabalhador falecido. Nos presentes autos não se pretende responsabilizar os réus A… e M… por, alegadamente, terem o estatuto de entidade patronal do marido da autora.
Aliás, note-se que os próprios réus reconhecem implicitamente que não há esse "mesmo interesse substancial" quando na contestação, vêm a dizer que "a Autora não alega na P.I. porque razão os 2º e 3º Réus são demandados a título pessoal, pelo que se desconhece qual o seu interesse em contradizer a acção atenta a relação material controvertida tal como ela é configurada pela Impetrante." [7]
No que se refere aos pedidos é manifesto que nos dois processos são formuladas diferentes pretensões. A simples comparação do que se pede numa lado e no outro evidencia que não existe a identidade mencionada no n.º 3 do artigo 498.º, pois, como sabemos, em sede de identidade de pedidos "o que importa é que a segunda acção seja proposta para exercer o mesmo direito que se exerceu mediante a primeira." [8]
Ora, no processo 294/08.3TTVCT a autora exerceu o direito que entendia ter quanto ao pagamento:
- de uma pensão anual vitalícia devida pela morte de um trabalhador num acidente de trabalho;
- do subsídio por morte e do subsídio de funeral desse trabalhador;
- de despesas de deslocações obrigatórias ao tribunal do trabalho, por causa da participação do acidente de trabalho.
Na causa que temos entre mãos a autora exerce o direito que considera assistir-lhe relativamente ao "ressarcimento do dano da perda da vida" do seu marido e do dano que teve por ter deixado de receber deste uma parte do ordenado dele, que lhe era entregue "para governo da casa" (lucros cessantes).
Portanto, independentemente dos montantes em questão serem objectivamente diferentes, estamos, sem dúvida alguma, na presença de pedidos diferentes.
A circunstância de "numa e noutra acção se pretende[r] obter (…) a responsabilização da Ré M…, Lda. no pagamento de uma indemnização" [9] é, per se, claramente insuficiente para se concluir que há uma identidade de pedidos, uma vez que qualquer um pode ser responsabilizado por fundamentos diversos.
Por último, segundo o n.º 4 do artigo 498.º "há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico. (…)"
Dizem os réus que "na presente acção os factos concretos invocados pela Autora para fundamentar a sua pretensão são exactamente os mesmos aduzidos na anterior." [10] E a Meritíssima Juiz a quo considerou que há "identidade da causa de pedir, visto que a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico, mais concretamente o acidente que vitimou o sinistrado, o qual já foi dissecado naquele outro processo e caracterizado como sendo um acidente de trabalho."
Uma vez mais não podemos, de todo, acompanhar a ilustre magistrada, pois afigura-se que o cenário que temos pela frente não se traduz, de forma alguma, num pretensão que "procede do mesmo facto jurídico."
A causa de pedir é "o acto ou facto jurídico de que procede a pretensão do autor" [11] ou "o facto constitutivo da situação jurídica material que quer fazer valer" [12] ou ainda "o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido" [13], sendo "consubstanciada tão só pelos factos que preenchem a previsão da norma que concede a situação subjectiva alegada pela parte." [14] E não esqueçamos que a causa de pedir nas acções fundadas na responsabilidade civil extracontratual é complexa, o que implica, "segundo as circunstâncias, a alegação da matéria de facto relacionada com o evento, a ilicitude, a conduta culposa, ou uma situação coberta pela responsabilidade objectiva, os prejuízos e o nexo de causalidade adequado entre o evento e os danos". [15]
No caso dos autos regista-se que há um conjunto de factos que são comuns aos que se alegaram no processo 294/08.3TTVCT; os relativos ao modo como ocorreu a morte do marido da autora. Mas, a causa de pedir, num e no outro lado, não se resume a esse tronco comum.
Aqui a autora alega ainda factos que, aos seus olhos, correspondem a uma conduta ilícita e culposa dos réus, da qual resultou o dano morte e o dano (lucros cessantes) de já não poder receber "uma parte significativa do salário de seu defunto marido [que por este lhe] era entregue (…) para a "governo" da casa", danos esses que quer ver indemnizados.
Já na acção 294/08.3TTVCT, para além do acidente em si mesmo, a autora alegou factos que, alicerçados na relação laboral existente entre o seu marido e a ré, lhe conferiam, no seu entendimento, o direito ao "pagamento da pensão anual vitalícia", de um "subsídio por morte" [16], de um "subsídio de funeral" e de "despesas de deslocações obrigatórias" ao tribunal do trabalho.
À luz do que se deixa dito, conclui-se que não há entre as duas acções a invocada identidade de pedido e de causa de pedir. E quanto à identidade de sujeitos, ela limita-se (objectivamente) à autora e à ré M…, L.da, não abrangendo a relação processual agora estabelecida entre aquela e os réus A… e M….
Não se verifica, portanto, a excepção de caso julgado que conduz à absolvição dos réus da instância. [17]
III
Com fundamento no atrás exposto, julga-se procedente o recurso e, em conformidade, improcedente a excepção de caso julgado, revogando-se a decisão recorrida e determinando-se o prosseguimento do processo.
Custas pela autora.
10 de Dezembro de 2013
António Beça Pereira
Manuela Fialho
Edgar Gouveia Valente
-----------------------------------------------------------------------------------------------------------
[1] Que vigorava à data da propositura da acção e à data em que o tribunal a quo conheceu da excepção do caso julgado.
[2] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 306.
[3] Manuel de Andrade, obra citada, pág. 317 e 318.
[4] Manuel de Andrade, obra citada, pág. 309.
[5] Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1982, Vol. III, pág.280.
[6] Artigo 3.º da contestação. A Meritíssima Juiz veio a aderir a esta tese fazendo sua esta afirmação, mas não explica por que é que, estando dois novos réus na acção, mesmo assim, se tem que concluir que "as partes são (…) portadoras do mesmo interesse substancial."
[7] Artigo 15.º da contestação.
[8] Alberto dos Reis em Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, 1950, pág. 107.
[9] Artigo 4.º da contestação. Argumento que Meritíssima Juiz veio a subscrever.
[10] Artigo 6.º da contestação.
[11] Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. II, 1945, pág. 369. Sobre este conceito pode ainda ver-se o mesmo autor em Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, 1950, pág. 121.
[12] Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2.ª Edição, pág. 343.
[13] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, pág. 245.
[14] Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. I, 3.ª Reimpressão, pág. 193 e 194.
[15] Abrantes Geraldes, obra citada, pág. 205.
[16] Não confundir com o dano morte.
[17] Foi só essa dimensão do caso julgado que o tribunal a quo conheceu e que, justamente por isso, foi objeto deste recurso. Tal significa que, até agora, nenhuma posição se tomou quanto ao alegado nos artigos 73.º a 75.º da contestação.