Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1254/16.6JAPRT.G1
Relator: PEDRO CUNHA LOPES
Descritores: PRINCÍPIO JUIZ NATURAL
DECLARAÇÕES MEMÓRIA FUTURA
FASE DE INQUÉRITO
COMPETÊNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/21/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - O princípio Constitucional do Juíz Natural implica que o Juiz não possa ser escolhido para determinado processo, nem desavocado do mesmo, por razões pessoais ou ideológicas.

II - Na tomada de "Declarações para Memória Futura" é competente, nos Tribunais onde houver Juízo de Instrução Criminal, o Juiz deste Juízo; naqueles em que não estiver sediado qualquer Juízo de Instrução Criminal é competente o Juíz do Tribunal de Competência Local, existente no Tribunal onde devem ser produzidas aquelas declarações.

III - A existência de turno para a prática de atos jurisdicionais urgentes em Inquérito, ratificado pelo respetivo Juiz Presidente da Comarca e pelo Conselho Superior da Magistratura, não determina uma manipulação da distribuição.

IV - Antes se trata de regra anterior de distribuição, que assim não põe em causa o princípio do Juíz Natural.
Decisão Texto Integral:
Por Acórdão de 7 de Dezembro de 2 016, depositado em 9 de Dezembro, foi o arguido José:

- absolvido da prática de 5 (cinco) crimes de abuso sexual de crianças, p(s). e p(s). pelos arts.º 171º/1 e 177º/1, b), C.P.;
- condenado pela prática de 1 (um) crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts.º 171º/1 e 177º/1, b), C.P.,
na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão com a execução suspensa por igual período, com regime de prova, que integre avaliação e eventual seguimento em consulta de Sexologia.

Inconformado com esta decisão, contra a mesma interpôs recurso o arguido, peça processual que termina com as seguintes conclusões:

“A. O objecto do presente recurso circunscrever-se-á, à temática da
nulidade do meio de prova (declarações para memória futura).

B. A motivação que infra aduziremos, cingir-se-á à impugnação das primeiras cinco páginas do acórdão que decidiu — em sede de questão prévia — pela improcedência das “invocadas nulidades, as alegadas incompetências do Tribunal, a violação do princípio do Juiz Natural e as inconstitucionalidades arguidas pelo arguido” (cfr. pág. 5 do acórdão).

C. Classicamente, o princípio do Juiz Natural começou por ser um princípio emanado do princípio da legalidade e visava assegurar a independência dos Tribunais perante o poder político, na medida em que “proíbe a criação de uma competência “ad hoc” (de excepção) de um certo Tribunal para uma causa”. (cfr. AC. Tribunal da Relação de Guimarães proferido nestes autos a propósito de uma outra questão suscitada e citado no acórdão recorrido a pág. 4).

D. Hodiernamente, o princípio do Juiz Natural é entendido pela doutrina com maior abrangência tem uma dimensão mais lata, na medida em que, assegura a independência do Tribunal, mesmo em relação ao poder judicial.

E. A anotação ao art. 32° no 9 da C.R.P. de Almeida Lopes, 6 revisão, de 2005, págs. 208-209 está completamente ultrapassada.

F. Impõe-se, neste momento, que revisitemos o princípio do Juiz Natural, na perspectiva hodierna; quer na doutrina; quer na jurisprudência do Tribunal Constitucional.

G. Para não alongarmos, em demasia, estas alegações, sustentaremos a nossa perspectiva, essencialmente nos ensinamentos, no plano doutrinário, de Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Anotada e Miguel Nogueira de Brito - O princípio do Juiz Natural e a Nova Organização Judiciária”, Revista Julgar, n° 20 (2013), pág. 19 a 37; e, na perspectiva Jurisprudencial, estribamo- nos no ac. do T.C. n° 614/03.

H) Gomes Canotilho/ Vital Moreira na anotação X ao art. 32° do C.R.P., ensinam que “o princípio do Juiz Legal afirma-se principalmente perante o Governo e as administrações públicas, mas devem considerar-se destinatários desse principio também os órgãos legiferantes e os Tribunais. Juiz Legal é, não apenas o Juiz de Sentença em primeira instância, mas todos os juízes chamados a participar numa decisão. A exigência constitucional vale claramente para os juízes de instrução e para os Tribunais colectivos.”

I. Ibidem: “A doutrina costuma salientar que o princípio do Juiz Legal comporta várias dimensões fundamentais:

a) a exigência de determinabilidade...
b) garantia de uma justiça material assegurada pela mentalidade e independência...
c) princípio da fixação de competência...
d) observância das determinações de procedimento referentes à divisão funcional interna (distribuição de processos), o que aponta para a fixação de um plano de distribuição de processos (embora esta distribuição seja uma actividade materialmente administrativa, ela conexiona-se com o principio da administração judicial).”

J. No plano doutrinal, o estudo mais completo e consentâneo com a realidade actual, face ao novo paradigma da Organização Judiciária em vigôr, é o texto já citado supra de Miguel Nogueira de Bríto.

K. No item 27 a 49 da motivação acham-se em evidência os excertos do estudo de Miguel Nogueira de Brito, com os quais o recorrente pretende fundamentar como deve ser entendido, actualmente, o principio do Juíz natural e que constitui parte integrante desta motivação.

E. No item 50, o recorrente transcreve parte do A.C. do T.C. no 614/03 que constituir marco orientador da interpretação actualista do referido principio do juiz natural. Para aí remeter também a nossa motivação.

M. A exposição do caso concreto encontra-se narrada no requerimento no item 54, e que constitui parte integrante das presentes alegações.

N. A competência para ouvir as declarações para memória futura do menor, caberia ao Juiz de Instrução, a exercer funções na Instância Central, da 2a Secção de Instrução Criminal, com sede em Guimarães.

O. O Tribunal “a quo” assim não entendeu. Na circunstância, estribou a sua decisão no art.º 130º, n.º 1), al. c), da Lei n° 62/2013, de 26/08, a qual prescreve que “compete às secções de competência genérica: c) Fora dos municípios onde estejam instaladas secções de instrução criminal, exercer as funções jurisdicionais relativas aos inquéritos penais, ainda que a respectiva área territorial se mostre abrangida por uma secção especializada..

P. Interpretar a Lei implica mais do que a simples leitura do enunciado linguístico.

Q. Interpretar a Lei, nos termos do art. 9° do C.C., implica a busca da teleologia da norma, através da “ratio legis”..

R. A Nova Lei Orgânica dos Tribunais visou a especialização dos Juízes e Tribunais.

S. Nas comarcas onde existem Tribunais especializados, cuja jurisdição abrange a circunscrição comarcal em questão, deverão ser esses Tribunais a exercerem as competências que lhes estão atríbuídas.

T. O referido art.º130º, n.º 1) al. c) da L.O.S.J. não pode ser interpretado (somente lido) fora do espírito do sistema. A interpretação jurídica para ser completa, também tem de atender ao elemento sistemático.

U. O referido art. 130° terá de ser compaginado com o estatuído no art.º 119°, n.º 1), da L.O.S.J.

V. Dispõe o art. 119°, n.º 1 da L.O.S.J. que “compete às secções de instrução criminal, decidir quanto à pronúncia e exercer as funções jurisdicionais relativas ao inquérito, salvo nas situações previstas na Lei, em que as funções jurisdicionais relativas ao inquérito podem ser exercidas pelas secções de competência genérica da instância local (o caso do art. 130° n°1 al. c) da L. O.SJ.)”.

W. Estamos perante uma situação de “competência concorrente”, segundo a qual tanto pode ser o Juiz de Instrução da Secção Central a praticar o acto jurisdicional na fase do inquérito ou o Juiz da Instância Local de competência genérica.

X. Nestas situações impõe-se no Juiz Presidente da Comarca a criação de um regulamento com características gerais e abstractas, de modo a que o cidadão saiba de antemão em que circunstâncias os actos jurisdicionais praticados durante o inquérito são da competência do Juiz da Instância Central e quais os que são cometidos ao Juiz da Instância Local.

Y. Acresce que, muito embora na primeira instância todos os juízes estão ao mesmo nível -são todos os Juízes de direito —; o certo é que, um Juiz da Instância Central, tem de ter, pelo menos, 10 anos de carreira e classificação superior a Bom com distinção; ao passo que um juiz de competência genérica tem menor vocação para decidir as questões relativas a actos jurisdicionais praticados no âmbito do inquérito e poderá, até, encontrar-se em inicio de carreira.

Z. As garantias constitucionais, e outras, reconhecidas ao arguido (e as vitimas) não são as mesmas se os actos forem praticados por um Juiz da Instância Central ou praticados por um magistrado judicial da instância local de competência genérica.

AA. Em conclusão: se é certo que a leitura do art. 130°, n° 1 al. c) da L.O.S.J. permite a decisão proferida pelo Tribunal “a quo”; não menos certo é que a interpretação concatenada do referido artigo com o art. 119° n° 1 L.O.S.J. permite-nos dizer que, enquanto não houver um Regulamento emanado pelo Presidente da Comarca, especifique quais as circunstâncias em que actos jurisdicionais
praticados durante o inquérito “podem” ser praticadas por juízes da instância local de competência genérica; todos os actos jurísdicionais necessários na fase de inquérito, na Comarca de Braga, têm de ser praticados por juízes de instrução da 1ª ou 2ª Secção Central de Instrução Criminal.

BB. No caso vertente, as declarações para memória futura foram prestadas pela menor, perante uma juiz de instância local de competência genérica.

CC. Por consequência, nos termos do art.º 119°, al. e) do C.P.P., estamos perante uma nulidade insanável que invalida o meio de prova prestado perante Tribunal incompetente.

DD. Conforme resulta do teor requerimento supra transcrito no item 54, mais concretamente nos ns.º 21 e sgts. do referido texto e que constitui parte integrante da presente motivação;

EE. Resulta do teor requerimento supra transcrito no item 54, mais concretamente nos n°s 21 e sgts. do referido texto, que mesmo na instância de competência genérica de V. N de Famalicão, verificou- -se a violação do principio do Juiz Natural.

Vejamos:

FF. O processo foi distribuído ao juiz da unidade 3 da Secção Criminal de V. N de Famalicão, contudo foi a Juiz titular do núcleo funcional J2 que tomou as declarações para memória futura.

GG. Os autos foram “subtraídos” ao Juiz titular do núcleo funcional J3, o qual detinha a competência funcional, decorrente da distribuição, operada em 19/04/2016.

HH. Perante esta questão suscitada, o Tribunal “a quo” decidiu “in casu” não se descortina em que medida aquele princípio (o do Juiz Natural) se mostra violado, uma vez que não está em causa a atribuição de um caso concreto a um determinado julgador, estribando-se no acórdão desta relação, relatado por Tomé Branco, e na anotação — ultrapassada e desajustada de Almeida Lopes, à C.R.P.!.

II. mais se afirma, no acórdão recorrido, que “a realização do interrogatório do arguido... “; bem como a “tomada de declaração para memória futura, no âmbito do inquérito”.., pela Juíza da Unidade Funcional 12, em vez de o Juiz titular da unidade funcional J3 (a quém o processo havia sido distribuído) ... “não é susceptível de poder afectar qualquer direito ou interesse constitucionalmente garantido nos preceitos da Lei fundamental invocada pelo arguido ou quaisquer outros”. (cfr. acórdão recorrido pág. 4 e 5).

JJ. Os Ilustres Professores Gomes Canotilho e Vital Moreira, incluem na observância do princípio do Juiz Natural, os “procedimentos referentes à divisão funcional interna” (distribuição de processos).

KK. Acresce que sempre que não são respeitados — em processo penal — os procedimentos da distribuição, estamos perante uma violação de Lei, enquanto norma em sentido material.

LL. Tal violação de Lei, configura uma nulidade insanável, nos termos do art. 119° ai. e) do C.P.P., cognoscível a todo o tempo, enquanto não houver decisão com transito em julgado (proémio do art. 119° referido), porque verifica-se a violação de “regras” de competência do Tribunal.

MM. As normas de determinação de um Juiz concreto, por determinação da distribuição de processos, são ainda regras de competência — intra-judicial, cuja inobservância de tais normas só poderá ter por consequência a nulidade insanável.

NN. Ou, como defende Henriques Gaspar, “ Código do Processo Penal Anotado”, vários autores, Almedina, pág. 388, o acto em questão será mesmo inexistente.

OO. No caso concreto, segundo as regras de distribuição, o processo “calhou” ao Juiz titular da unidade funcional J3.

PP. O facto de ter sido a Juiz da Unidade funcional J2 a tomar as declarações para memória futura, “subtraiu” a jurisdição a quem havia sido designado por efeito da distribuição.

QQ. Violou-se assim o princípio do Juiz Natural, segundo o qual “nenhuma causa pode ser subtraída ao Tribunal cuja competência — mesmo intra-judicial” (conforme sustentou Gomes Canotilho/Vital Moreira) esteja fixada em Lei anterior.

RR. O que, deveras, importa é tratar-se de regra geral e abstracta e fixada “ex ante”, de modo a que o arguido saiba de antemão qual o Tribunal e qual o Juiz concreto que terá jurisdição sobre o seu caso.

SS. Só assim o poder judicial se legitima, segundo o princípio da legalidade e imparcialidade.

TT. O arguido acredita que não se cristalizará o decido no processo, porque injusto face à melhor concepção do principio referido, no plano hodierno.

F) As inconstitucionalidades verificadas

UU. No caso vertente, verificam-se duas inconstitucionalidades, por violação do mesmo dispositivo da Constituição da Republica Portuguesa — o art. 32°, n° 9; e desrespeito do mesmo principio do Direito Constitucional — o principio do Juiz Natural.

= A primeira inconstitucionalidade =

VV. O recorrente entende que, no caso concreto, a tomada de declarações para memória futura, deveria ter sido realizada perante o juiz de instrução da 2ª Secção de Instrução Criminal, a exercer funções na cidade de Guimarães, na Comarca de Braga, porque era este magistrado judicial que detinha a jurisdição sobre o concelho de Vila Nova de Famalicão, que foi o local onde se perpetrou o suposto crime.

WW. Na perspectiva do recorrente, no caso concreto, teria de valer o princípio consagrado no art. 119°, n° 1 da LO.S.J., logo teria de ser o Juiz de Instrução da 2ª Secção Central de Instrução Criminal, sediada em Guimarães, a proceder a tal acto jurisdicional.

XX. .o referido dispositivo legal (o art. 119°, n°1), comporta uma excepção, a saber: “salvo nas situações previstas na Lei, em que as funções jurisdicionais relativas ao inquérito podem ser exercidas pelas secções de competência genérica da instância local.”

YY. De acordo com este normativo, parece que se esvazia a competência “originária” da Instância Central de Instrução, para a instância local de competência genérica, na circunstância em que é necessário praticar actos jurisdicionais na fase do inquérito, fora do município no qual se acha instalado a secção central de instrução criminal.

ZZ. A interpretação destes dois dispositivos legais, o art. 119°, n° 1 e o art. 130°, n°1, ai. c) da LO.S.J., terá de ser concatenada e o seu cotejo terá de ser efectuado de acordo com o princípio do juiz natural, consagrado no art. 32°, n° 9 da C.RP.

AAA. Como é consabido, interpretar impõe que o intérprete não só leia o enunciado linguístico. Antes deverá atingir a “ratio legis”, através do elemento teleológico e histórico e sempre recoberto pelos princípios jurídicos perenes que norteiam todo o nos sistema jurídico (o elemento sistemático);

BBB. na medida em que, tais artigos tem de ser cotejados, concatenados e interpretados, à luz do principio do juiz natural e do art. 32°, n°9 da C.R.P. que recobrem, de forma superior, os citados dispositivos por se tratarem de regras constitucionais.

CCC. Em primeiro lugar, dever-se-ia, desde logo, ter pensado que o legislador pretendeu, com a nova L.O.S.J., enfatizar tanto quanto possível o princípio da especialização.

DDD.Em segundo lugar, seria importante que o intérprete se recordasse que, muito embora um juiz de uma instância local esteja no mesmo patamar que um juiz da instância central, na medida em que, são ambos juízes de direito; o certo é que, um juiz da instância central encontra-se num “ranking” superior, porque para aceder a tal função o magistrado terá de ter, pelo menos, 10 anos de carreira e classificação mínima de Bom com Distinção.

EEE. Por último, e para nós o argumento dirimente, com o qual queremos colocar em evidência a violação do princípio do juiz natural, consignado no art. 32°, n° 9 da C.R.P. é o facto de o Juiz Presidente da Comarca não ter elaborado um qualquer regulamento, despacho, ou instrução de serviço que articulasse a interpretação dos dois normativos supra citados (o art. 119° e 130° LO.S.J.), de modo a que os destinatários da Lei soubessem de antemão (juízo apriorístico) de forma geral e abstracta, qual o juiz que iria exercer as funções jurisdicionais na fase do inquérito (se o juiz da instância central ou o juiz da instância local.).

FFF. Para se aplicar o art. 130°, n° 1, al. c) da L.O.S.J. terá de existir “ex ante” um regulamento, despacho ou instrução de serviço, elaborados pelo Presidente da Comarca a excepcionar a aplicação da regra consignada no art. 119°, n° 1 da L.O.S.J.

GGG. Ao não existir tal regulamento, despacho genérico ou instrução de serviço, verifica-se a violação do principio do juiz natural consignado no art. 32°, n° 9 de C.R.P..

HHH. A interpretação normativa dos referidos artigos 119° e 130° da L.O.S.J. espelhada na decisão dos autos, violou as orientações insertas no acórdão orientador do T.C. com o n° 6/4/03, o qual funciona como diapasão para interpretação do princípio do juiz natural.

=A segunda Inconstitucionalidade =

III. Conforme supra pugnamos, deveria ter sido o Juiz de Instrução da Instância Central de Instrução de Guimarães a realizar o acto jurisdicional no âmbito do inquérito.

JJJ. Com efeito, segundo as regras da distribuição (art.º 200º e sgts. do C.P.C., aplicado “ex vi” art. 4° C.P.P.), o processo foi distribuído à unidade funcional 3 e, no entanto, foi a juiz titular da unidade funcional 2 a exercer as funções jurisdicionais no caso concreto.

KKK. Verificou-se, portanto, uma “substração” do processo da unidade funcional à qual havia sido distribuído, para outra unidade funcional, sem que houvesse uma qualquer justificação para o facto.

LLL. Acresce que inexiste um qualquer Regulamento, despacho ou instrução de serviço que permita esta situação de “substração” dos autos à unidade funcional a que foi distribuída; portanto, verifica-se a violação do princípio do juiz natural, consignado no art. 32°, O 9 da C.R.P.

MMM. O recorrente julga que invocou, de forma regular, as inconstitucionalidades supra aduzidas, respeitando as orientações do acórdão LC. n° 421/2001, para que o Tribunal “ad quem” julgue procedentes os argumentos aduzidos.

Termos em que, devem as presentes motivações e conclusões serem julgadas procedentes; e, por consequência, deverão V. Excas., Senhores Desembargadores, reconhecerem que o meio de prova — declarações para memória futura — é nulo, porque prestado perante juiz incompetente, cuja incompetência gera nulidade, nos termos do art. 119°, ai. e), do C.P.P.; e, consequentemente, deverão ordenar a absolvição do
arguido, por ausência de prova; pois só assim se materializará a almejada Justiça.”

Respondeu, ainda em 1ª instância, o M.P. Considera que, nos termos da L.O.S.J. (arts.º 119º/1 e 130º/1, c), L. n.º 62/13, 26/8), a competência para tomar declarações para memória futura, no caso dos autos, é do Tribunal de Competência Genérica e não do J.I.C. e que, quanto ao facto de o processo ter sido distribuído ao Juíz 3 e ter sido despachado pelo Juíz 2, isso se deve ao facto de haver uma escala de serviço semanal para a prática de atos urgentes e de, naquela semana ter estado de turno o Juíz 2. Considera pois, não ter ocorrido qualquer desaforamento do processo. Assim e em seu entender, não ocorreu ilegalidade quanto à competência do Juíz que colheu as declarações para memória futura, razão por que o recurso deve ser desatendido na íntegra.

neste Tribunal da Relação, o Digníssimo Procurador Geral Adjunto sustentou também a improcedência integral do recurso com os fundamentos já invocados nas contra-alegações.

Notificado para responder nos termos do disposto no art.º 417º/2 C.P.P., o arguido reiterou o antes afirmado, referindo que deveria saber, de antemão, qual o Juíz que iria praticar o ato jurisdicional, o que não sucedeu, até porque os ditos “acordos entre Juízes” não são publicados. Continua a sustentar a procedência do recurso.

O recurso deve ser decidido em conferência, como dispõe o art.º 419º/3, c), C.P.P.

2 – Fundamentos

O recurso interposto é limitado à questão prévia suscitada pelo arguido e desatendida, no Acórdão. Razão por que, se transcreverá apenas o decidido quanto à mesma:

Questão prévia.

Em sede de julgamento a Defesa apresentou um requerimento escrito, e que foi junto aos autos a fls. 218 a 223, no qual alega que as declarações para memória futura estão feridas de nulidade insanável nos termos do art. 119º, al. e), do Código de Processo Penal; que se verifica uma incompetência absoluta decorrente da violação das regras da competência em função da matéria – cfr. art. 96º, al. a), do Código de Processo Civil “ex vi” do art. 4º do Código de Processo Penal; que o crime pelo qual está o arguido acusado foi alegadamente praticado em Vila Nova de Famalicão e que tal concelho está sob a jurisdição da 2ª Secção de Instância Central da Instrução Criminal de Guimarães – cfr. art. 71º do DL n.º 49/2014 de 27.3 e respectivo mapa anexo – e, por isso, a competência para a prática de actos jurisdicionais, como é o caso das declarações para memória futura, nos termos dos arts. 271º e 294º do Código de Processo Penal, antes da fase de julgamento compete ao Juiz de Instrução da Instância Central da 2ª Secção de Instrução Criminal de Guimarães; que no caso dos presentes autos a tomada de declarações para memória futura foi efectuada pela Juiz da Instância Local Criminal de V.N.Famalicão, quando deveria ter sido o Juiz de Instrução Criminal da Instância Central de Guimarães; que no caso sub judice se verifica, ainda, a violação do princípio do Juiz Natural porque o caso foi subtraído ao tribunal cuja competência estava fixada em Lei anterior, o Tribunal de Instrução Criminal, 2ª Secção de Competência Especializada no âmbito da Instrução Criminal da Comarca de Braga; que na instância local em causa, na secção cirminal, verificou-se a violação daquele princípio pois que o processo foi distribuído ao Juiz da Unidade 3 da Secção Criminal, em 19.4.2016 e não obstante foi a Juíza titular do núcleo J2 que procedeu ao primeiro interrogatório judicial e tomou as aludidas declarações para memória futura – cfr. fls. 218 a 223 e 227.

O Ministério Público aderindo aos fundamentos da decisão proferida pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, datada de 10.10.2016, e junta nos autos apensos, promoveu seja indeferida a mencionada arguição da nulidade – cfr. fls. 251.

A assistente aderiu à tomada de posição do Ministério Público – cfr. fls. 252.

E, em sede de julgamento o tribunal relegou a decisão da questão em causa para a sentença.
*
Cumpre decidir.

Salvo o devido respeito pela opinião da Defesa entendemos que não lhe assiste razão.

Com efeito, e como se refere no acórdão do Venerando Tribunal da Relação, junto aos presentes autos a fls. 233 a 239 v.º (e cuja pertinência se mantém para a questão ora em apreço, uma vez que ali estava em causa o primeiro interrogatório de arguido detido realizado, no âmbito do inquérito, pela Juíza da Instância Local Criminal, de V. N. Famalicão - J2, e, aqui, está em questão a tomada de declarações para memória futura, no âmbito do inquériot pela mesma Juíza) «prescreve o art. 130º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 62/2013, de 26.8, que “1- Compete às secções de competência genérica: (…) c) Fora dos municípios onde estejam instaladas secções de instrução criminal, exercer as funções jurisdicionais relativas aos inquéritos penais, ainda que a respetiva área territorial se mostre abrangida por essa secção especializada”.

Significa isto que, in casu, o Juiz da Instância Criminal de Vila Nova de Famalicão é inequivocamente o competente para praticar quaisquer actos de natureza jurisdicional relativos a inquéritos penais, mesmo tendo presente que a respectiva área territorial está abrangida por secção especializada.»
Destarte, e sem necessidade que mais considerandos, não se verifica a alegada nulidade.

E igualmente improcede a invocada violação do princípio do Juiz Natural.

Novamente, com se refere no mencionado acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Guimarães «Conforme se observa na anotação ao art. 32º, n.º 9, da CRP Almeida Lopes, 6ª revisão anotada de 2005, págs. 208-209: «O princípio do Juiz Natural ou do juiz legal, estabelecido no art. 32º, n.º 7, da Constituição, é, ao nível processual uma emanação do princípio da legalidade em matéria penal, que tem a ver com a independência dos tribunais perante o poder político, e o que proíbe é a criação (ou a determinação) de uma competência ad hoc (de excepção) de um certo tribunal para uma causa – em suma os tribunais ad hoc».

Ora, in casu não se descortina em que medida aquele princípio se mostra violado uma vez que não está em causa a atribuição de um caso concreto a um determinado julgador «Vale por dizer, a atribuição de uma especial competência ao “juiz titular do núcleo funcional J2, Dr.ª E. T.» para proceder à tomada de declarações para memória futura.

E mais uma vez como referido no citado acórdão - mas ali reportando-se à realização do interrogatório do arguido/recorrente pela Magistrada Dr.ª E. T., e aqui, estando em causa a realização, por aquela magistrada, da tomada de declarações para memória futura, no âmbito do inquérito - a realização da tomada das declarações para memória futura no âmbito do inquérito, por tal Juíza, no exercício das suas funções, não é susceptível de poder afectar qualquer direito ou interesse constitucionalmente garantido nos preceitos da lei fundamental invocados pelo arguido ou quaisquer outros.

Pelo exposto, improcedem as invocadas nulidades, as alegadas incompetências do Tribunal, a violação do princípio do juiz natural e as inconstitucionalidades arguidas pelo arguido.
Notifique.”

2.1. – Questões a Resolver

2.1.1. – Do Princípio do Juíz Natural;
2.1.2. – Da Competência do Juíz da Instância Local de Famalicão, para tomar Declarações para Memória Futura a Testemunhas, durante o Inquèrito;
2.1.3. – Da Competência dos Juízes 2 e 3 da Instância Local de Famalicão e dos Turnos a Atos Jurisdicionais Urgentes.

2.2. – Do Princípio do Juíz Natural

Este princípio tem consagração Constitucional e vem previsto no art.º 32º/9 C.R.P. Este art.º trata dos princípios conformadores das garantias do processo criminal, vindo sistematicamente inserido no Título 2 da C.R.P., que trata dos Direitos, Liberdades e Garantias, que, como se sabe, “são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”.

Quer isto dizer que, além da força reforçada decorrente do facto de se tratarem de princípios Constitucionais, são ainda “diretamente aplicáveis”, isto é atribuem desde logo direitos e deveres às “entidades públicas e privadas”.

A Constituição Portuguesa não define o princípio do “Juíz natural”. Mas afirma uma das suas decorrências principais: que “nenhuma causa pode ser subtraída ao Tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior” – art.º 32º/9 C.R.P.

Isto é: não pode, por qualquer razão, desaforar-se a competência legal de um Tribunal, qualquer que seja a razão. O que se traduz numa especial garantia de imparcialidade e isenção, no sentido de o Juíz não ser escolhido para determinado processo, nem desavocado do mesmo, por razões pessoais ou ideológicas. Trata-se de verdadeiro “ direito constitucional processual penal” – G. Canotilho e Vital Moreira, “C.R.P. Anotada”, “Coimbra Editora”, 1º Vol., pág. 515.

De alguma forma, os novos poderes atribuídos aos Juízes Presidentes em termos de distribuição de competências têm sido considerados como no limite do respeito pelo Juíz Natural. Isto, no sentido de que se não traduzem ainda na possibilidade de tirar ou atribuir competências a determinado Juíz, de forma arbitrária.
Ora, toda a argumentação do recorrente gira em torno do princípio do Juíz Natural.

2.3. - Da Competência do Juíz da Instância Local de Famalicão, para tomar Declarações para Memória Futura a Testemunhas, durante o Inquèrito

Efetivamente, o recorrente invoca a incompetência da Sr.ª “Juíz 2” da Instância Local Criminal de Famalicão, por em seu entender a competência ser também do Juíz do T.I.C. de Guimarães (art.º 130º/1, c), L.O.S.J.), em termos concorrentes. E refere que, nestes casos, a questão deve ser solucionada por Regulamento anterior, criado pelo Sr. Juíz Presidente, inexistente no caso.

Sem razão, porém.
É que, nos termos deste normativo, “compete às secções de instrução criminal decidir quanto à pronúncia e exercer as funções jurisdicionais relativas ao Inquérito, salvo nas situações previstas na lei, em que as funções jurisdicionais relativas ao Inquérito podem ser exercidas pelas secções de competência genérica da instância local” – bold nosso.

Mas, esta competência não é concorrente com a dos Juízes da Instância Local, pois como é explícita a lei, esta competência do Juíz de Instrução Criminal só existe, nos casos em que essa competência não é dos Juízes da Instância Local – naturalmente, a criminal. O que, por antonomásia, quer dizer que se a competência for dos referidos Juízes da Instância Local, já não será do dito J.I.C.

Porém, nos termos do disposto no art.º 130º/2, a), L.O.S.J. (L. n.º 62/13, 26/8), “os juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica possuem ainda competência para proceder à instrução criminal, decidir quanto à pronúncia e exercer as funções jurisdicionais relativas ao inquérito, onde não houver juízo de instrução criminal ou juiz de instrução criminal”.

Quer isto dizer, que nos Tribunais onde houver J.I.C. é este o competente para os atos jurisdicionais de inquérito; quando o não haja, a competência é do Juíz do Tribunal de Competência Local, existente no Tribunal.

O objetivo é bem fácil de compreender – evitar, neste tipo de atos avulsos, remessas de processos pelo correio, entre vários Tribunais. Isto até tendo em conta que se não tratarão de decisões de fundo, não exigindo assim um tipo de conhecimento especializado – e assim, se ganhando muito tempo com menor dispêndio de dinheiro.

Ora, em Famalicão não está sedeado qualquer J.I.C., pelo que a competência está diretamente atribuída ao Juíz da Instância Local Criminal.

Como se disse, não há assim qualquer competência concorrente ou necessidade de qualquer Regulamento, criado pelo Juíz Presidente.

Não ocorreu assim, qualquer incompetência e muito menos, a nulidade decorrente da violação das regras da competência, nos termos do disposto no art.º 119º/e, C.P.P.

Improcede pois, nesta parte, o recurso apresentado.

2.4. - Da Competência dos Juízes 2 e 3 da Instância Local de Famalicão e dos Turnos a Atos Jurisdicionais Urgentes

Conforme fls. 66/69, 70 e 71 e os autos foram remetidos a Juízo para 1º interrogatório judicial de arguido detido e deferimento de pedido de declarações para memória futura, à menor L. M., vítima de crime sexual.

Foram distribuídos ao “Juíz 3” da Instância Local, Secção Criminal do Tribunal de Vila Nova de Famalicão e vieram a ser despachados pela Juíz Sr.ª Dr.ª E. T., que efetuou ainda o 1º interrogatório judicial (fls. 77/88) e presidiu às “declarações para memória futura” (fls. 94/95).

O recorrente invoca que esta é a “Juíz 2” e não a “Juíz 3”, do que retira ter ocorrido violação do “princípio do Juíz Natural” e das regras da competência, para despachar o processo.

Recurso id~entico já tinha feito quanto à competência para o 1º interrogatório, julgado improcedente (Apenso A). Recurso que agora é reproduzido, quanto à competência para tomada de declarações para memória futura.

Foi pedida informação ao Senhor Juíz Presidente (fls. 607/608). Este respondeu (fls. 618) referindo que o “Juíz 2” terá despachado e intervindo no processo no âmbito de turno semanal acordado entre os Juízes daquele Juízo em 10 de Setembro de 2 014, que mereceu a concordância do Senhor Juíz Presidente e a não oposição do Conselho Superior da Magistratura (documentos de apoio, a fls. 623, 624 e 625/627). O acordo dos Juízes data de 10 de Setembro de 2 014, o despacho do Senhor Juíz Presidente de 11 de Setembro de 2 014 e o do Vogal do C.S.M. em substituição do seu Vice-Peresidente de 18 de Setembro de 2 014.

Embora as “declarações para memória futura” não venham expressamente previstas naquele “acordo ratificado”, tratam-se de atos jurisdicionais em sede de Inquérito semelhantes aos que ali vêm previstos e que, por isso devem ser tratadas de forma idêntica – argumento “por identidade de razão”.

Aquele acordo e ratificações do Senhor Juíz Presidente e do C.S.M. são muito anteriores à distribuição deste Proc.º, que data de 19 de Abril de 2 016 (fls. 71).

O processo não foi assim desaforado, nem diretamente distribuído à “Senhora Juíz 2”; antes, a competência lhe adveio de regra de distribuição anterior, não tendo ocorrido qualquer manipulação da mesma. Assim, não houve qualquer violação do princípio do “Juíz Natural” ou violação do disposto no art.º 32º/9 C.R.P.

Improcede pois e também, este argumento do recorrente.