Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4734/10.3TBGMR-D.G1
Relator: MARIA CATARINA R. GONÇALVES
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO
EXONERAÇÃO DO PASSIVO
PASSIVO
INDEFERIMENTO LIMINAR
PREJUÍZO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/04/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – O indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo, nos termos do art. 238º, nº 1, alínea d) do CIRE pressupõe a verificação cumulativa dos requisitos aí enunciados, sendo, por isso, necessário, que: a) o devedor não tenha cumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a tal apresentação, não o tenha feito nos seis meses seguintes à verificação da situação insolvência; b) o atraso na apresentação à insolvência tenha redundado em prejuízo para os credores; c) o devedor soubesse ou não pudesse ignorar, sem culpa grave, que não existia qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.
II – A qualidade de sócio, gerente ou administrador de uma sociedade comercial não equivale à titularidade de qualquer empresa, pelo que o sócio gerente de uma sociedade comercial, estando em causa a sua própria insolvência (pessoa singular) e não sendo (ele próprio) titular de qualquer empresa, não está sujeito ao dever de apresentação à insolvência dentro do prazo previsto no art. 18º do CIRE; neste caso e para efeitos de preenchimento da situação a que alude a alínea d) do nº 1 do art. 238º do CIRE, apenas importa atender ao prazo de seis meses que aí se encontra mencionado.
III – Resultando dos autos que o Insolvente não requereu a sua insolvência no prazo de seis meses após a sua verificação e que, apesar de já se encontrar em situação de insolvência – em virtude de o seu património ser já insuficiente para fazer face ao seu passivo –, ainda vem renunciar a um direito de usufruto de que era titular, agravando a situação em que se encontrava e dificultando – por força da diminuição do activo que aquele acto acarretou – a satisfação dos direitos dos seus credores, impõe-se concluir, para efeitos da alínea d) do citado art. 238º, nº 1, que o atraso na apresentação à insolvência acarretou prejuízo para os credores.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:


I.
Por decisão proferida em 02/06/2011, nos autos de insolvência referentes a A……, foi liminarmente indeferido – ao abrigo do disposto no art. 238º, nº 1, alíneas d) e e) do CIRE – o pedido de exoneração do passivo restante que havia sido apresentado pelo Insolvente.

Inconformado com tal decisão, o Insolvente interpôs o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:
1 – Vem o presente Recurso interposto da decisão do Tribunal a quo que indeferiu in limine o pedido de exoneração do passivo restante apresentado pelo Recorrente na sua Petição Inicial de declaração de Insolvência,
2 - Na perspectiva do Recorrente, com o devido respeito, andou mal o Tribunal quo na intelecção do direito aplicável, sancionando a final uma solução injusta e que a ordem jurídica não consente.
3 – E isto porque, entre outras questões que adiante se referirão, na elaboração da decisão cuja anulação se requer a Mmª Juíza a quo, incorreu no equívoco de misturar a insolvência do ora Recorrente enquanto pessoa singular, com a insolvência da dita sociedade de que foi sócio,
4 – Quando o que está em causa não é a insolvência dessa sociedade e as circunstâncias em que foi requerida mas sim a insolvência do próprio Recorrente enquanto pessoa singular, juridicamente distinta da sociedade e, do ponto de vista económico, com o seu próprio património e credores.
5 - A decisão em apreço não fez, pois, como adiante se demonstrará, correcta interpretação dos factos e adequada aplicação do direito, e interpretação dos factos e circunstâncias em que os descritos negócios foram celebrados, devendo ser revogada e substituída por outra que defira liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante do Recorrente.
6 – Questão essencial para aferir da bondade da decisão em sindicância é a de aferir, para efeitos de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante formulado pela impetrante, fundado no art. 238 n.º 1 al. d) do CIRE é se esta, enquanto pessoa singular, tinha o dever de se apresentar à insolvência dentro de um prazo fixado na lei e se incumpriu esse prazo, bem como se, com culpa, praticou actos de alienação que prejudicaram os seus credores.
7 – A aceitação do pedido de "exoneração do passivo restante" depende da verificação de requisitos procedimentais e substantivos (art. 236º a 239º do CIRE).
8 - Com interesse para a economia do presente recurso apresentam-se os artigos 236º n.º 1, 237º al. a) e 238 al. d) do diploma em análise.
9 – Com efeito, dispõe o n.º 3 do art. 236.º do CIRE que do requerimento do devedor referido no n.º 1 tem de constar expressamente "a declaração de que o devedor preenche os requisitos e se dispõe a observar todas as condições exigidas nos artigos seguintes".
10 – Por seu turno, o art. 237.º do CIRE, referindo-se aos pressupostos para a concessão efectiva da exoneração do passivo restante, menciona, sob a al. a), como primeiro pressuposto, que "não exista motivo para o indeferimento liminar do pedido, por força do disposto no artigo seguinte".
11 - Considera o Tribunal a quo, a sua decisão de indeferimento liminar do pedido de exoneração do ali Requerente, que a apresentação à Insolvência foi extemporânea,
12 – Ora, apesar de contratualmente a obrigação descrita pelo tribunal a quo se encontrar vencida,
13 – A verdade é que a mesma sempre veio sendo negociada com o credor ….
14 – Sempre foi intenção do Recorrente viabilizar a sociedade comercial da qual era sócio gerente.
15 – Sendo inclusivamente o sinal recebido no acto da celebração do contrato de promessa, integralmente aplicado na sociedade B………, a título de suprimentos, não se apoderando por isso o Recorrente das mencionadas quantias, conforme documentos já juntos como n.º 1, 2, 3 e 4.
16 – Atendendo ao facto de que era o Recorrente um dos Co-obrigados, a renegociação daquela dívida passava além do pelo aval dos restantes Co-Obrigados,
17 - Passava também da solidificação financeira da sociedade comercial B………
18 - O que, contrariando a vontade do Recorrente, não veio a suceder!
19 – Ora, atendendo ao facto de que, conforme resulta do Relatório apresentado pela Exma Sr.a Administradora de Insolvência:
d) A situação comercial e financeira da empresa sofreu um acentuado agravamento no ano de 2010, acabando por ser declarada insolvente, por decisão proferida no processo n.º 2772/10.5TMGMR do 2.º Juízo Cível deste Tribunal; (sublinhado nosso)
e) Neste processo, está em curso o prazo para o administrador apresentar um plano de insolvência com vista à viabilização da empresa.
f) A B…... possui um património mobiliário e imobiliário que chegou a ser avaliado em 4.000.000,00€;
20 – Se constata que a solvabilidade do Insolvente nunca esteve em causa, pelo menos, nunca em data inferior ao ano de 2010.
Mais,
21 – Pelo exposto se constata que, à data de 2008 se encontrava o Recorrente em plenas condições para avalizar um projecto que desde que assumiu a gerência, sempre acreditou,
22 – Viabilizar a B…….
23 – Não pode assim ser posta a conduta do Recorrente ser posta em causa,
24 - Nem em momento anterior à sua própria de declaração de Insolvência,
25 – Muito menos, a conduta posterior à mencionada declaração, conforme oportunamente se demonstrará.
Assim sendo,
26 – Atendendo ao facto de que as dívidas do Recorrente são comuns com as da sociedade comercial que o próprio era Sócio-Gerente,
27 – Bem como, na presente data, corre prazo para apresentação do plano de viabilização, no âmbito dos autos de insolvência da mencionada sociedade,
28 – Deverá a apresentação à insolvência do Recorrente ser considerada atempada,
29 – E, mesmo que tal não tivesse sucedido, o que desde já não se consente, não estão preenchidos os demais requisitos do n.º 1 do art. 238º do CIRE, concretamente que o atraso na apresentação tenha prejudicado os interesses dos credores, sabendo o insolvente ou não podendo ignorar sem culpa grave, que inexistia qualquer perspectiva de melhoria da sua situação económica.
30 – Uma vez que, não agravou o Recorrente a situação debitória que actualmente se encontra,
31 - É que, o prejuízo para os credores a que alude o art. 283º do CIRE pressupõe a verificação de factos concretos ou circunstancias que permitam concluir que, no caso, concreto, o atraso na apresentação à insolvência determinou uma impossibilidade ou dificuldade acrescida na satisfação dos créditos que existiam à data em que se verificou a insolvência decorrente do aumento do passivo – em virtude de o devedor ter contraído novas dívidas após a verificação da insolvência e o momento em que se deveria apresentar – ou da diminuição do activo – em virtude de o devedor ter praticado actos de dissipação ou delapidação de património entre a verificação de insolvência e o momento a que tardiamente a ela se vem apresentar.
32 – No caso concreto, a recorrente apesar de não possuir bens em valor e número para fazer face às dívidas,
33 - Não contraiu novas dívidas,
34 – nem, com culpa, diminuiu o seu activo
35 – Foi o Insolvente Sócio Gerente da sociedade comercial B…….
36 - Sociedade essa que, até ao ano de 2007, era detida, juntamente com o Insolvente, pelos sócios …………….
37 - A relação pessoal mantida entre os sócios, ao contrário do que o tribunal a quo entendeu, era conflituosa.
38 - Tornando a respectiva gestão numa tarefa árdua.
39 - Conflitualidade que culminou com a cessão de quotas e cessão de quinhões hereditários, plasmados no documento já junto como n.º 5.
40 - Sendo que as mencionadas cessões foram inclusivamente tidas como “bom negócio”, já que se considerou preferível a detenção de participações sociais, em detrimento de quinhões que, além de não serem susceptíveis de gerar lucro, o facto é que os mesmos, ainda hoje se encontram em litígio.
41 – Pelo que é falso que, se a B……, aquando da cessão de quotas, se encontrava já numa situação deficitária, as respectivas quotas dificilmente teriam um valor superior ao seu valor nominal.
42 - Ora daqui inferir-se que a Recorrente desta forma dissipou o seu património para o retirar dos credores é para além de uma subjectividade não suportada em nenhum facto que tenha carreado para os autos.
43 - Com o devido respeito, a experiência de vida, permitira concluir que fosse essa a intenção do recorrente e muito outros expedientes poderiam ser utilizados para esse fim que não uma acto tão transparente como uma escritura pública, sendo a respectiva documentação que é publica e facilmente consultável.
44 - O indeferimento liminar da exoneração não pode ser regra mas sim excepção.
45 - O que se pretendeu com a introdução do presente instituto foi dar a possibilidade de o Recorrente refazer a sua vida, não o condenando definitivamente a uma situação patrimonial da qual nunca mais conseguirá recuperar.
46 - Ora os factos elencados no artigo 186.º, implicariam uma actuação dolosa no sentido de ocultar património.
47 - Ora nenhuma intenção tinha o Recorrente quanto aos seus credores.
48 - Tanto mais que está convencido ser possível a viabilização da B…… e consequentemente ressarcir os respectivos credores.
49 – Até porque, à data, ainda não foi votado sequer o respectivo plano de viabilização.
50 – Sendo, salvo o devido respeito, claramente especulativas todas as conclusões retiradas pelo tribunal a quo.
51 - Pelo que, nunca se poderá considerar, por um lado que o Recorrente “(...) procurou fazer desaparecer parte considerável do seu património, ainda que sob a máscara de um negócio legal e válido, e por outro que dispôs do seu património em proveito de terceiros (...)”
Mais,
52 – Conclui ainda o Tribunal a quo que “(...) após a própria declaração de insolvência o insolvente não se coibiu de avalizar um outro título cambiário, no valor de €61.442,57.”
53 – Contudo, não especifica qual o documento que teve por base tal conclusão,
54 – Nem o poderia fazer,
55 - Uma vez que é Falso que o Recorrente tenha avalizado qualquer título cambiário após a declaração da sua própria insolvência.
56 – Assim sendo se demonstra a falta de sustentação de prova que levaram ao Indeferimento Liminar da Exoneração do Passivo Restante.
57 – Reiterando-se a falta de oportunidade de o Recorrente exercer o seu direito ao contraditório.
Pelo exposto, é N/ entendimento que,
58 - Falecem os requisitos exigidos pelo artigo 238º, n.º 1 para que possa o Tribunal a quo que indeferir in limine o pedido de exoneração do passivo restante apresentado pela Recorrente na sua Petição Inicial de declaração de Insolvência,
59 - Primeiro, porque não houve, conforme supra se explicou, qualquer actuação dolosa ou com culpa grave por parte da Recorrente
60 - Segundo, porque a actuação da Recorrente não criou nem agravou a sua situação de insolvência.
61 - Pelos mesmos motivos, não se verifica o preenchimento de nenhuma das alíneas do n.º 1 do artigo 238º.

Não foram apresentadas contra-alegações.
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II.
Atendendo às conclusões das alegações do Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se estão ou não verificadas as situações enunciadas nas alíneas d) e e) do nº 1 do art. 238º do CIRE e se, em função disso, deverá ser liminarmente indeferido o pedido de exoneração do passivo.
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III.
Na 1ª instância, foi considerada a seguinte matéria de facto:
1. O Insolvente nasceu a 26.10.1956 e é casado com C…….
2. Ao Insolvente não são conhecidos antecedentes criminais.
3. O Insolvente foi desde data anterior a 11.08.2006 sócio-gerente da B…….
4. A B…… foi declarada insolvente por sentença datada de 27.08.2010, proferida no âmbito do processo de insolvência que sob o n.º 2772/10.5TBGMR corre termos pelo 2.º juízo cível deste tribunal.
5. Desde 2006 que a B…… vinha acumulando prejuízos.
6. No relatório de gestão da empresa do ano de 2009 a gerência manifestava-se apreensiva quanto ao futuro da empresa e à sua viabilidade.
7. O Insolvente tem um passivo acumulado superior a €2.000.000, reportado a:
• Crédito reclamado pelo H……, no valor de €297.415,51, titulado por livrança emitida em 29.04.2010 pela B…… e avalizada pelo Insolvente, vencida em 10.05.2010;
• Crédito reclamado pelo I……, no valor de €662.458,81, titulada por três livranças emitidas em 03.07.2008, 28.03.2009 e 14.12.2009 pela B…… e avalizadas pelo Insolvente, vencidas as duas primeiras em 11.08.2010 e a última em 28.09.2010;
• Crédito reclamado pelo J……, no valor de €360.724,77, titulada por livrança emitida em 20.05.2009 pela B……. e avalizada pelo Insolvente, vencida em 15.06.2010;
• Crédito reclamado pelo L……, no valor de €2.164,61, acrescido de juros, titulado por livrança emitida em 16.12.2008 pela B…… e avalizada pelo Insolvente, vencida em 20.12.2010;
• Crédito reclamado pelo M……, no valor de €239.392,09, decorrente de um contrato de mútuo celebrado em 13.09.2007 e de um descoberto em conta de depósito à ordem;
• Crédito reclamado pelo N……, no valor de €61,442,57, titulado por livrança emitida em 28.01.2011 e avalizada pelo insolvente, vencida em 05.02.2011;
• Crédito reclamado pelo O……, relativo a um contrato de locação financeira assinado em 2007 e em que o Insolvente figura como fiador, no valor de €7.679,36, reportado a rendas que a B…… deixou de pagar em Julho de 2010;
• Crédito reclamado pela P……, no valor de €461.055, reportado ao incumprimento de um contrato-promessa de compra e venda celebrado em 15.04.2008 com o Insolvente, sendo que em 31.10.2008 foi o reclamante notificado da intenção de os promitentes vendedores não cumprirem a obrigação a que se encontravam adstritos;
• Crédito reclamado pela Q……, no valor de €3.573,72, relativo a um descoberto em conta, crédito esse adquirido pela reclamante ao M…….
8. Ao Insolvente apenas se logrou a apreensão de um bem imóvel.
9. Por escritura pública datada de 02.10.2002 o Insolvente e mulher doaram aos seus três filhos, à data dois deles menores, quatro imóveis (um misto, dois rústicos e um urbano), melhor descritos a fls. 186/187, tendo reservado para si o usufruto do mesmo.
10. Por escritura pública datada de 17.08.2010 o Insolvente e mulher renunciaram ao direito de usufruto referido no ponto anterior, direito esse ao qual atribuíram o valor de €50.561,86.
11. Por escritura pública datada de 28.06.2007 o Insolvente adquiriu a D…… as duas quotas por esta detidas na B……, nos valores nominais de €142.157,40 e €49.879,79, pelo preço global de €802.738,12, sendo que para pagamento parcial de tal preço (€420.000) cedeu à alienante o direito que tinha no quinhão hereditário a que o seu pai tinha direito nas heranças abertas por óbito de E…… e F…….
12. A D…… é irmã do Insolvente.
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IV.
Apreciemos, pois, a questão que constitui o objecto do presente recurso.
Segundo o disposto no art. 235º do CIRE Diploma a que se reportam as demais disposições legais que venham a ser citadas sem menção de origem. se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo”.
Conforme se refere no preâmbulo do diploma que aprovou o CIRE, o legislador – ao conferir aquela possibilidade ao insolvente – pretendeu conjugar o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares da possibilidade de se libertarem de algumas dívidas com vista à sua reabilitação económica.
É certo, todavia, que a concessão desse benefício pressupõe, da parte do devedor insolvente, uma conduta recta, cumpridora e de boa fé, quer no período anterior à insolvência (cuja inexistência conduzirá ao indeferimento liminar do pedido por verificação de qualquer uma das situações a que alude o art. 238º), quer no período posterior e, designadamente, nos cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (por força das obrigações impostas pelo art. 239º e cujo incumprimento conduzirá à recusa da exoneração, nos termos do art. 243º).
Pressupondo o legislador – como se disse – que a exoneração do passivo restante apenas se justificaria relativamente aos devedores que, no período anterior à insolvência, tivessem adoptado uma conduta recta, cumpridora e de boa fé, estabeleceu – no art. 238º – que a verificação de qualquer uma das situações aí mencionadas determinaria o indeferimento liminar do pedido por corresponderem a situações que, na sua perspectiva, evidenciam uma conduta contrária àquela que justificaria esse benefício.
E a questão que se coloca no presente recurso prende-se, precisamente, com a verificação (ou não) de fundamento legal para indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo.
Considerou a decisão recorrida que, no caso sub júdice, se verificavam as situações a que aludem as alíneas d) e e) do nº 1 do citado art. 238º, e, com este fundamento, indeferiu liminarmente do pedido.
Resta-nos, pois, saber – e é esse o objecto do presente recurso – se ocorrem ou não essas situações.

Dispõe-se na citada alínea d) que o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se “o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica”.

Como resulta da letra da lei e como tem sido entendido, de modo praticamente uniforme, pela nossa jurisprudência Cfr., entre outros, os Acórdãos da Relação do Porto de 25/03/2010, 06/10/2009, 01/10/2009 e 20/11/2008, com os nºs convencionais JTRP00043744, JTRP00043002, JTRP00042985 e JTRP00041972, respectivamente, e o Acórdão da Relação de Lisboa de 24/11/2009, processo nº 44/09.7TBPNI-C.L1.1, todos disponíveis em http://www.dgsi.pt. , os requisitos ali enunciados são cumulativos, razão pela qual apenas será de indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo, ao abrigo da citada norma, se, cumulativamente:
a) o devedor não cumpriu o dever de apresentação à insolvência ou se, não estando obrigado a tal apresentação, não o tiver feito nos seis meses seguintes à verificação da situação insolvência;
b) o atraso na apresentação à insolvência redundou em prejuízo para os credores;
c) o devedor sabia ou não podia ignorar, sem culpa grave, que não existia qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.
Resta saber se, no caso sub judice, estão ou não verificados esses requisitos.

No que respeita à apresentação à insolvência, considerou-se na decisão recorrida que o Insolvente, pelo facto de ser sócio gerente da sociedade B……, estava vinculado ao dever de se apresentar à insolvência, dentro do prazo de sessenta dias a que alude o art. 18º, nº 1.
Não nos parece que assim seja.
De facto, determinando o art. 18º, nº1, que o devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos sessenta dias seguintes à data do conhecimento da sua situação de insolvência, logo dispõe o nº 2 da citada norma que não estão sujeitas a esse dever de apresentação à insolvência as pessoas singulares que não sejam titulares de uma empresa na data em que incorram em situação de insolvência.
Ora, ao contrário do que se considerou na decisão recorrida, o Insolvente não era titular de qualquer empresa (pelo menos tal não resulta dos autos) sendo certo que a qualidade de sócio, gerente ou administrador de uma sociedade comercial não equivale à titularidade de qualquer empresa Neste sentido, os Acórdãos da Relação do Porto de 20/04/2010 e 06/10/2009, com os nºs convencionais JTRP00043876 e JTRP00043002, em http://www.dgsi.pt. .
Daí que, como se referiu, o Insolvente não tivesse o dever de se apresentar à insolvência, nos termos prescritos pelo citado art. 18º.
Não estando obrigado a tal apresentação, resta saber se se apresentou à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, já que, não existindo dever de apresentação à insolvência, é este o prazo que releva para efeitos de verificação da situação enunciada pela alínea d) do nº 1 do citado art. 238 e eventual indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo (desde que se verifiquem também os demais requisitos aí mencionados).
Perante a matéria de facto provada, impõe-se concluir que a situação de insolvência do Apelante decorre essencialmente da insolvência da sociedade da qual era sócio gerente, sendo certo que o seu passivo emerge, em grande parte, de livranças que eram da responsabilidade da referida sociedade e que o Insolvente avalizou.
Temos, por isso, como certo que, pelo menos em 27/08/2010 (data em que foi declarada a insolvência daquela sociedade), o Insolvente tomou efectivo conhecimento da situação de insolvência em que se encontrava e da impossibilidade de cumprir as responsabilidades que havia assumido nas referidas livranças.
É certo, porém, que o Apelante veio apresentar-se à insolvência em 29/12/2010 e, por conseguinte, muito antes de ter decorrido o referido prazo de seis meses a contar da data em que foi declarada a insolvência daquela sociedade.
Resta, pois, saber se o Apelante já tinha conhecimento da sua situação de insolvência em momento anterior.
É certo que, como resulta da matéria de facto provada, aquela sociedade já vinha acumulando prejuízos desde 2006 e, em 2009, já a respectiva gerência se manifestava apreensiva quanto ao futuro da empresa e à sua viabilidade. Mas, tais dificuldades não correspondem necessariamente a uma efectiva situação de insolvência da sociedade com a inerente impossibilidade de cumprir as suas obrigações e, portanto, essa matéria de facto não nos permitirá concluir que, nessa ocasião, o Apelante já estivesse ciente da sua própria insolvência. Importa referir, aliás, que os créditos reclamados e emergentes de livranças avalizadas pelo Apelante apenas se venceram em 2010, assim se indiciando que, em 2006 e 2009, ainda não ocorria uma efectiva situação de insolvência.
Mas, a verdade é que, como bem se refere na decisão recorrida e como resulta da matéria de facto provada, em Maio e Junho de 2010 (período anterior aos seis meses que antecederam a apresentação à insolvência) já se haviam vencido algumas das livranças que o Apelante havia avalizado e, na qualidade de sócio gerente da sociedade emitente, não poderia deixar de saber que o não pagamento na data do vencimento decorria já da situação de insolvência em que se encontrava essa sociedade e que, por esse facto, ele próprio se encontrava em situação de insolvência por falta de meios para cumprir as obrigações que havia assumido. Acresce que uma parte substancial do seu passivo (o crédito reclamado pela P……) encontrava-se vencido desde 2008 e não existem nos autos quaisquer indícios de que o seu activo fosse, então, suficiente para fazer face a todo esse passivo de valor elevado.
Apesar de o Apelante invocar, nas conclusões do recurso, que o crédito da P…… estava a ser negociado, a verdade é que esse facto não se encontra provado e sempre seria irrelevante, porquanto, ainda que estivesse a ser negociada, essa obrigação já estava vencida e o Apelante não tinha, em termos objectivos, possibilidades de proceder ao seu cumprimento. Irrelevante será também o facto – invocado pelo Apelante – de ter a intenção de viabilizar a sociedade e de estar ainda a decorrer o prazo para a apresentação do plano de viabilização no âmbito do processo de insolvência, porquanto, com viabilização ou sem ela, a verdade é que, com o vencimento e o incumprimento das obrigações acima mencionadas, o Apelante incorreu em situação de insolvência já que o seu activo não lhe permitia fazer face ao seu passivo já vencido e exigível.
Impõe-se, pois, concluir – tal como se concluiu na decisão recorrida – que, quando o Apelante se veio apresentar à insolvência, já havia decorrido o prazo de seis meses desde a verificação da insolvência, mostrando-se, assim, preenchido o primeiro requisito que integra a causa de indeferimento liminar a que alude a alínea d) do nº 1 do art. 238º.

Além do requisito, cuja verificação acabamos de demonstrar, a possibilidade de indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo pressupõe ainda que o atraso na apresentação à insolvência tenha determinado prejuízo para os credores.
Na perspectiva do Apelante, o eventual atraso na apresentação à insolvência não determinou qualquer prejuízo para os credores, porquanto, apesar de não possuir bens em valor e número para fazer face às dívidas, não contraiu novas dívidas nem, com culpa, diminuiu o seu activo.
É certo que, como alega o Apelante e como se decidiu no Acórdão da Relação do Porto de 10/02/2011, proferido no processo nº 1241/10.8TBOAZ-B.P1 Disponível em http://www.dgsi.pt. (relatado pela aqui relatora) “o prejuízo para os credores a que alude a citada norma pressupõe a verificação de factos ou circunstâncias que permitam concluir que, no caso concreto, o atraso na apresentação à insolvência determinou uma impossibilidade ou dificuldade acrescida na satisfação dos créditos que existiam à data em que se verificou a insolvência decorrente do aumento do passivo (em virtude de o devedor ter contraído novas dívidas após a verificação da insolvência e o momento em que se devia apresentar) ou da diminuição do activo (em virtude de o devedor ter praticado actos de dissipação ou delapidação do património entre a verificação da insolvência e o momento em que, tardiamente, a ela se vem apresentar)”.
Mas, não terá sido isso mesmo que aconteceu no caso sub júdice?
É certo que a doação de quatro imóveis efectuada pelo Insolvente aos seus filhos menores e a aquisição das quotas que eram detidas pela sua irmã na sociedade B…… não assumem, para este efeito, um relevo muito significativo, atendendo à data em que foram efectuadas (2002 e 2007). Embora seja certo que esses actos implicaram uma diminuição considerável do património do Insolvente, a verdade é que não será possível afirmar que, nessa ocasião, já se verificasse uma situação de insolvência e que, por isso, exista alguma ligação entre o prejuízo daí emergente para os credores e a tardia apresentação à insolvência. Mas, não deixaremos de referir que a aquisição daquelas quotas – que foi efectuada num momento em que a sociedade já vinha acumulando prejuízos – implicou o dispêndio de uma quantia bastante elevada e a cessão do direito às heranças abertas por óbito de E…… e F…… (ao qual foi atribuído o valor de 420.000,00€), quando é certo que os prejuízos acumulados pela sociedade dificilmente justificariam – para um comprador prudente e cauteloso – um tal negócio e, principalmente, o preço pago pelas referidas quotas.
Este negócio – claramente ruinoso (atendendo aos valores envolvidos e à situação deficitária em que se encontrava a sociedade) e efectuado em proveito da irmã do Insolvente – embora não releve directamente para o preenchimento da alínea d) do art. 238º (atendendo à data em que foi efectuado), sempre poderia preencher a situação a que alude a alínea e) da mesma disposição, porquanto, tendo envolvido a perda de uma importante parte do seu património, contribuiu, seguramente, para a criação ou agravamento da situação de insolvência em que se encontra o Apelante. E, ainda que o Apelante não tenha (eventualmente) actuado com a intenção de subtrair esse património aos seus credores, a verdade é que esse negócio – nas condições em que foi efectuado – era, claramente, um negócio muito arriscado e ruinoso que dificilmente seria efectuado por um qualquer comprador prudente e avisado, ciente das dificuldades financeiras que estavam a ser sentidas pela sociedade e, nessa medida, poderemos concluir que, ao celebrar esse negócio, o Insolvente criou ou agravou, culposamente, a sua situação de insolvência.

Mas, voltando à alínea d), será que o atraso na apresentação à insolvência não determinou uma impossibilidade ou dificuldade acrescida na satisfação dos créditos que existiam à data em que se verificou a insolvência, por força do aumento do passivo ou da diminuição do activo que, entretanto, tenha ocorrido?
Embora o Apelante questione a afirmação que, a esse propósito, foi efectuada na decisão recorrida – referindo que é falsa e que a decisão nem sequer especifica qual o documento que serviu de base a essa conclusão – a verdade é que, conforme resulta da matéria de facto (que o Apelante não impugnou), o N…… reclamou um crédito, no valor de 61.442,57€, titulado por livrança que foi emitida e avalizada pelo Apelante em 28/01/2011 e, portanto, após a declaração da sua insolvência.
Mas, independentemente desse facto, não é verdade que o Insolvente renunciou ao direito de usufruto que tinha sobre quatro imóveis que, uns anos antes, havia doado aos filhos e ao qual foi atribuído o valor de 50.561,86€? E não é verdade que o fez em 17/08/2010, dez dias antes de ter sido declarada a insolvência da sociedade da qual era gerente, quando já era evidente a sua situação de insolvência e num momento em que já podia e devia ter-se apresentado à insolvência?
Parece, pois, não haver dúvidas que, apesar de já se encontrar em situação de insolvência, o Apelante – cujo património já era insuficiente para fazer face ao seu passivo, porquanto uns anos antes havia doado quatro imóveis e havia cedido o direito a heranças de que era titular – ainda renunciou ao direito de usufruto de que era titular, agravando a situação em que se encontrava e dificultando – por força da diminuição do activo que aquele acto acarretou – a satisfação dos direitos dos seus credores.
É certo, pois, que o atraso na apresentação à insolvência acarretou prejuízo para os credores, mostrando-se, assim, preenchido o segundo requisito a que alude a alínea d) do citado art. 238º.
E devemos ter também como verificado o terceiro requisito, porquanto, atendendo ao volume do passivo e ao activo de que ainda era titular, o Apelante não poderia ignorar, sem culpa grave, que não existia qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.
Assim, verificando-se a situação prevista na alínea d) do nº 1 do citado art. 238º - e, eventualmente, também a situação prevista na alínea e) – estavam reunidos os pressupostos para que o pedido de exoneração do passivo restante fosse – como foi – liminarmente indeferido.
Daí que se imponha a confirmação da decisão recorrida.
Improcede, pois, a presente apelação.
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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 713º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):
I – O indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo, nos termos do art. 238º, nº 1, alínea d) do CIRE pressupõe a verificação cumulativa dos requisitos aí enunciados, sendo, por isso, necessário, que: a) o devedor não tenha cumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a tal apresentação, não o tenha feito nos seis meses seguintes à verificação da situação insolvência; b) o atraso na apresentação à insolvência tenha redundado em prejuízo para os credores; c) o devedor soubesse ou não pudesse ignorar, sem culpa grave, que não existia qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.
II – A qualidade de sócio, gerente ou administrador de uma sociedade comercial não equivale à titularidade de qualquer empresa, pelo que o sócio gerente de uma sociedade comercial, estando em causa a sua própria insolvência (pessoa singular) e não sendo (ele próprio) titular de qualquer empresa, não está sujeito ao dever de apresentação à insolvência dentro do prazo previsto no art. 18º do CIRE; neste caso e para efeitos de preenchimento da situação a que alude a alínea d) do nº 1 do art. 238º do CIRE, apenas importa atender ao prazo de seis meses que aí se encontra mencionado.
III – Resultando dos autos que o Insolvente não requereu a sua insolvência no prazo de seis meses após a sua verificação e que, apesar de já se encontrar em situação de insolvência – em virtude de o seu património ser já insuficiente para fazer face ao seu passivo –, ainda vem renunciar a um direito de usufruto de que era titular, agravando a situação em que se encontrava e dificultando – por força da diminuição do activo que aquele acto acarretou – a satisfação dos direitos dos seus credores, impõe-se concluir, para efeitos da alínea d) do citado art. 238º, nº 1, que o atraso na apresentação à insolvência acarretou prejuízo para os credores.
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V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do Apelante.
Notifique.


Guimarães,

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Maria Catarina Ramalho Gonçalves

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António M. A. Figueiredo de Almeida

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José Manuel Araújo de Barros