Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1498/08.4TVLSB-D.G1
Relator: ANTÓNIO SOBRINHO
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
CADUCIDADE
REFORMATIO IN PEJUS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/07/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - A improcedência parcial da acção implica a caducidade parcial do arrolamento requerido oportunamente pelo autor, na medida em que este não tenha interposto recurso desse segmento da decisão, transitando em julgado nesta parte.
II – Estamos, neste caso, perante um afloramento do princípio da proibição da reformatio in peius, que impede que o tribunal ad quem venha a interferir nessa parte da sentença que não foi objecto de impugnação pelo autor.
III - A manutenção de arrolamento no montante de € 15.000.000,00 seria manifestamente desproporcional, nos termos do artº 387º, nº2, do CPC, ao montante máximo de € 7.500.000,00, acrescido de juros e frutos, que a outra parte pode vir a receber.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães



I – Relatório;

Apelantes: A…, M… e C… (requeridos);
Apelado: L… (requerente);
*****
O apelado requereu contra os apelantes o procedimento cautelar de arrolamento do valor depositado na conta bancária nº 40210043452 da CCCAM de Lisboa, em nome dos requeridos e do requerente.
Produzida a prova, veio a ser proferida decisão que julgou a providência provada e, em consequência:
a) ordenou que se procedesse ao arrolamento da conta bancária nº 40210043452 da CCCAM de Lisboa em nome de L… , A… , M… e C… , constituída em 07.02.2007, com o depósito do cheque de € 15.000.000;
b) ordenou que se procedesse ao arrolamento de todas as movimentações intra e interbancárias com origem na conta referida em a), designadamente aplicações financeiras, transferências e contas constituídas com dinheiro proveniente de tal conta (…) .
Deduzida oposição e realizada a audiência final, o tribunal decidiu manter o arrolamento nos exactos termos já decretado, julgando improcedente a oposição deduzida.
Interposto recurso de apelação, foi mantida a decisão da 1ª instância.
Entretanto, nos autos principais - na sequência do pedido do autor L… de que os réus A… , M… e C… fossem condenados a entregar ao autor i) o valor correspondente ao prémio obtido no jogo “euro milhões”, no valor de € 15.000.000,00, acrescido de juros e demais frutos recebidos pela aplicação dos mesmos, juros contados desde a data de recebimento do prémio e até integral e efectivo pagamento ou, ii) quando assim não se entenda, mormente caso se conclua que o pagamento de € 2 efectuado posteriormente à obtenção do prémio, corresponde a um terço do mesmo, terá o autor direito a dois terços do prémio obtido no sorteio, ou, iii) sempre em última instância, terá o direito a metade do prémio obtido, a que acrescerão os juros e frutos, contados desde a data do recebimento do prémio até integral e efectivo pagamento - foi proferida sentença na qual se julgou a acção parcialmente procedente, por provada, e, em consequência se condenou os réus A… , M… e C… a pagar ao autor L… o montante correspondente a metade do valor do prémio do “euro milhões” - € 7.500.000,00 – acrescida de metade do valor resultante dos frutos civis ou rentabilização desse capital, obtidos através do investimento efectuado em produtos bancários e o montante correspondente a metade do valor global recebido ou levantado por autor e ré – que inclui o valor dos juros levantados pela ré -, acrescido de juros de mora, à taxa legal, contados desde a data em que o autor procedeu à transferência do valor dos € 100 000,00 – 17.05.07 -, até efectiva entrega, e incidentes sobre o da diferença existente entre o valor que o autor já recebeu – valores que lhe foram entregues pela ré -, e o correspondente àquele a que tem direito – correspondente ao valor da referida metade -, e que esteve na posse da ré, C… .
Os réus interpuseram novo recurso da decisão proferida, quer na parte relativa à interpretação e aplicação do direito, quer quanto ao julgamento da matéria de facto.
O autor não recorreu da decisão na parte em que julgou a acção parcialmente improcedente, não tendo interposto recursos independente nem subordinado.

Os requeridos requereram, então, que fosse decretada a caducidade parcial do arrolamento nos exactos termos da improcedência parcial do pedido deduzido pelo autor e o levantamento do arrolamento sobre a quantia de € 7.500.000,00.
Na sua resposta, o requerente pugnou pelo seu indeferimento.
Sobre tal requerimento recaiu despacho judicial a indeferir o mesmo.
Posteriormente, é apresentado novo requerimento pelos requeridos, requerendo o levantamento do arrolamento sobre a quantia agora de € 7.000.000,00, com o fundamento de que o autor não reclamou nem recorreu da sentença na parte em que julgou a acção parcialmente improcedente.
De seguida, foi proferida decisão a indeferir a requerida caducidade parcial da providência cautelar de arrendamento.

Inconformados com o decidido, interpuseram os requeridos a presente apelação, em cujas alegações formulam, em súmula, as seguintes conclusões:

1ª A sentença que absolve os RR. de dois pedidos do Autor e os condena num terceiro pedido, subsidiário em relação aos anteriores, não sendo objecto de recurso por parte do Autor mas apenas por parte dos RR., transita em julgado na parte em que absolveu os RR. do pedido
principal e do primeiro pedido subsidiário.
2.ª Não impugnada pelo Autor a parte da sentença que julgou parcialmente improcedente a acção principal, esta transita em julgado e acarreta a caducidade parcial, na mesma medida, da providência cautelar respectiva previamente requerida e decretada.
3.ª A caducidade parcial justifica-se porque a manutenção do arrolamento de quantia superior a €15.150.000,00 após o trânsito em julgado de decisão que nega ao requerente o direito a mais do que (grosso modo) €7.575.000,00 é gravemente atentatória do princípio da proporcionalidade, pelo que se impõe a sua redução ao montante estritamente necessário para garantir o eventual crédito do requerente.
4.ª A caducidade da providência não opera automaticamente e nem sequer é do conhecimento oficioso. O levantamento da providência com fundamento na sua caducidade depende de solicitação do requerido, que é apreciada após a audição do requerente.
5.ª Conjuntamente com o levantamento parcial da providência, o Tribunal pode ordenar as medidas necessárias a repor na medida respectiva a situação anterior ao decretamento da providência.
6.ª Pelo que a decisão recorrida, salvo o devido respeito, que é muito, violou o regime das disposições conjugadas dos artigos 381.º, 383.º n.º 1, 387.º n.º 1 e 2, 389.º n.º 1 c) e n.º 4 e 677.º, todos do Código de Processo Civil.

Foi junto parecer.
Foram apresentadas contra-alegações, defendo-se a confirmação do julgado.


II – Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar;

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, nos termos dos artigos 660º, nº 2, 664º, 684º, nºs 3 e 4 e 690º, nº 1, ex vi do artigo 749º, todos do Código de Processo Civil (doravante CPC).

A questão a apreciar é a seguinte:

a) Julgada parcialmente improcedente a pretensão do autor, aqui requerente, na acção principal, caduca nesta parte a providência cautelar de arrolamento decretada?

*****

Colhidos os vistos, cumpre decidir.


III – Fundamentos;

Os factos a atender com interesse à decisão do presente recurso são os descritos no item I) supra.

III – Direito aplicável:

a) Julgada parcialmente improcedente a pretensão do autor, aqui requerente, na acção principal, caduca nesta parte a providência cautelar de arrolamento decretada?

Refere Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, 1º-623 e ss., citando Calamandrei, que a providência cautelar não é um fim, mas um meio; não se propõe dar realização directa e imediata ao direito substancial, mas tomar medidas que assegurem a eficácia duma providência subsequente, esta destinada à actuação do direito material, ou seja, a definir, em última instância, a relação jurídica litigiosa. Dito de outro modo, a providência há-de regular o modo de acautelar a lesão e não de repará-la. Logo, o que justifica o acto jurisdicional duma providência provisória, antecipando a providência definitiva é o chamado periculum in mora.

Como estipula o artº 389º, nº 1, al. c), do CPC, a extinção do procedimento cautelar e, quando decretada, a caducidade da providência, ocorre quando a acção vier a ser julgada improcedente, por decisão transitada em julgado.

O cerne da questão recursiva alicerça-se na problemática de se aquilatar o alcance da previsão normativa contida naquela alínea c), ou seja, se, face à improcedência parcial da acção proposta pelo autor, com a qual este se conformou, não recorrendo, estamos perante trânsito em julgado da decisão nesta parte e, por consequência, se verifica uma caducidade parcial do arrolamento.
Dito de outro modo, o que se questiona é o seguinte:
Uma vez que o autor se conformou com o pedido por si formulado de os réus serem condenados a entregar-lhe metade do prémio do “Euro milhões” (€: 7.500.000,00, mais juros e frutos), essa parte por si não impugnada e correspondente à sua pretensão jurídica transitou em julgado, independentemente do recurso interposto pelos réus, pugnando pelo reconhecimento em exclusivo para si da quantia total de €: 15.000,000,00?

Visto o caso concreto, é de sufragar este entendimento.
Quer a decisão recorrida, quer as contra-alegações fundam-se nos argumentos de que a sentença só transita em julgado, quando não seja possível recurso ordinário e transitada para ambas as partes em simultâneo.
Ora, aquele segmento da decisão, isto é a parte da sentença que julgou improcedentes os dois primeiros pedidos do autor [o de reconhecimento da totalidade do prémio (15.000.000,00 €) ou então de 2/3 desse montante] já transitou em julgado para ambas as partes.

Importa ainda não descurar o estatuído no artº 684º, nºs 2 e 4, do CPC, quanto à delimitação objectiva do recurso e aos efeitos do julgado na parte não recorrida, uma vez que os réus, únicos recorrentes, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso nem pela anulação do processo.
Logo, a circunstância de os réus terem recorrido sobre a matéria de facto e a matéria de direito, bem como a eventual anulação do julgamento pelo Tribunal da Relação Aliás, é do nosso conhecimento, por virtude do exercício de funções, que foi já decidida e confirmada por acórdão desta Relação (no qual intervimos como adjunto) a sentença proferida nos autos principais. , não poderá beliscar a parte dispositiva da sentença que, quanto ao autor, apenas lhe reconheceu o direito a receber metade do dito prémio € 7.500.000,00.
Na perspectiva do autor, será este sempre, em definitivo, o seu único vencimento.
Acresce que, mesmo no aspecto jurídico, o efeito de caso julgado que já se formara sobre esse segmento decisório em sede de 1ª instância [o de que o autor, pela sua parte, nunca poderá vir a receber mais do que os ditos € 7.500.000,00 e respectivos frutos e juros], impede que o tribunal ad quem venha a interferir nessa parte da sentença que não foi objecto de impugnação pelo autor e em desfavor dos réus.
E a possível anulação do processado teria de salvaguardar, em definitivo, os efeitos da decisão a favor dos réus (recorrentes), na parte em que não foi objecto de recurso pelo autor, nos termos do citado artº 684º, nº4, do CPC.
Estamos perante a manifestação do princípio da proibição da reformatio in peius Neste sentido, vide tb. A.S.Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 3ª ed., pás. 103. Consulte-se ainda o Ac. do STJ, de 13.03.197, BMJ 465º:477, no qual se defende o caso julgado parcial..

Noutra vertente, podemos ainda concluir que, tendo presente também o princípio da proporcionalidade no decretamento das providências cautelares, consagrado no artº 387º, nº 2, do CPC, por um lado, e o disposto no artº 721º, nº3, do CPC (confirmada que foi a sentença proferida nos autos principais), com vista ao reforço da imutabilidade da decisão concreta, por outro lado - impõe-se, por razões de adequação e razoabilidade no binómio benefício/prejuízo, determinar a caducidade parcial da providência, no sentido de levantamento em parte do arrolamento decretado, cingido sensivelmente a metade daquele prémio atribuído.
E a tal não obstará o facto de a metade desse prémio acrescerem os juros e frutos respectivos que a sentença fixou, visto que tais acessórios não deixarão de continuar a incidir sobre o quinhão a receber pelo autor, já que o levantamento do arrolamento não é total.
Porquanto se deixa expendido, procede a apelação, revogando-se a decisão recorrida.

Sumariando:
1. A improcedência parcial da acção implica a caducidade parcial do arrolamento, uma vez que o autor/requerente não interpôs recurso desse segmento da decisão, transitando em julgado nesta parte.
2. Estamos perante um afloramento do princípio da proibição da reformatio in peius, que impede que o tribunal ad quem venha a interferir nessa parte da sentença que não foi objecto de impugnação pelo autor.
3. A manutenção do arrolamento no montante de € 15.000.000,00 seria manifestamente desproporcional, nos termos do artº 387º, nº2, do CPC, ao montante máximo de € 7.500.000,00, acrescido de juros e frutos, que a outra parte pode vir a receber.

IV – Decisão;

Em face do exposto, acordam os Juízes desta secção cível em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida e, por consequência, determina-se, com as diligências necessárias, o levantamento parcial do arrolamento decretado sobre o montante de €: 7.000.000,00 (sete milhões de euros), nos termos solicitados em b), a fls. 261 deste Apenso D).

Custas pelo apelado.

Guimarães, 7 de Julho de 2011
António Sobrinho
Isabel Rocha
Manuel Bargado