Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5100/10.6TBBRG.G1
Relator: ANTERO VEIGA
Descritores: CIRE
INSOLVÊNCIA CULPOSA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/20/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I - Presume-se inilidivelmente culposa a insolvência da sociedade quando o seu administrador tenha incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.
II - Não tendo sido elaboradas as contas anuais da sociedade insolvente no prazo legal, nem submetidas à devida fiscalização, nem se tendo procedido ao seu depósito na conservatória competente, verifica-se uma situação de atuação culposa, ainda que se mostre que o TOC da insolvente se negara a atualizar a escrita da insolvente e a entregar à gerência respetiva os documentos que integravam a sua contabilidade.
III - Tendo sido a contabilidade omitida na totalidade, nada logrando por isso verificar o administrador de relevante, ocorre uma situação de incumprimento substancial.
Decisão Texto Integral: Relação de Guimarães – processo nº 5100/10.6TBBRG.G1
Relator – Antero Veiga
Adjuntos – Luísa Ramos
Raquel Ramos

Acordam na 1ª Secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

No presente incidente de qualificação de insolvência que corre por apenso aos autos de insolvência em que é Requerida " … – Indústria de Mobiliário, Ldª, o credor … Tecnologias de Mobiliário, Ldª, o Digno Magistrado do Ministério Público e o Exmo. Sr. Adm. da Insolvência vieram propor a qualificação da insolvência como culposa, por culpa do seu legal representante, António…, invocando designadamente o preenchimento das als. f) h) do nº 2, als. a) e b) do nº 3 do artº 186º do CIRE.

Citado, o referido “gerente” deduziu oposição nos termos constantes de fls. 91 ss.

Realizado o julgamento o Mmº juiz respondeu à matéria de facto.

Foi proferida sentença julgando o incidente nos seguintes termos:

“ Pelo exposto, e ao abrigo das mencionadas disposições legais, - qualifico como culposa a insolvência de “…Indústria de Imobiliário, L.da”, atribuindo a responsabilidade a António…, enquanto seu administrador;
- Declaro António… inibido para a administração de patrimónios de terceiros e para o exercício do comércio durante um período de dois anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa; e - determino a perda de quaisquer créditos sobre a massa insolvente por si detidos…”
Inconformado o legal representante da insolvente afetado interpôs recurso de apelação da sentença.

Conclusões da apelação:

1. …

10. Vejamos, antes do mais, qual a matéria provada atinente à dita “atuação do TOC da insolvente” que na douta sentença se considerou ter mitigado ou diminuído a culpa do aqui recorrente: “R) O TOC da insolvente negou-se a atualizar a escrita da insolvente, apesar de dispor dos elementos necessários, e negou-se a entregar à gerência da insolvente os documentos que integravam a sua contabilidade.”
11. Ou seja, ressalta amplamente da matéria provada que o aqui recorrente não tinha meios suficientes ao seu alcance para fazer cumprir a obrigação que decorre do artigo 186.º, n.º 2, alínea h), do CIRE.
12. E, mais do que isso, o aqui recorrente encontrou um obstáculo intransponível – a negação do TOC em atualizar a escrita e também em entrega-la à gerência – que inelutavelmente o impediu de cumprir tal dever legal.
13. Efetivamente, a gerência da insolvente – na pessoa do aqui recorrente – viu-se inclusivamente impedido de promover a manutenção da contabilidade organizada através de um outro técnico oficial de contas.

19. Deve pois considerar-se que a inexistência de contabilidade organizada ocorreu em virtude de circunstâncias excecionais, anómalas, estranhas à vontade da gerência – e designadamente do aqui recorrente – e completamente fora do seu controle, disponibilidade ou capacidade de diligência.

21. Por outro lado, importa ainda considerar que, para que a insolvência possa ser considerada culposa, é necessário que a obrigação de manter contabilidade organizada seja incumprida “em termos substanciais”.
22. Na douta sentença recorrida, escreveu-se que “esse incumprimento é substancial, atento o período de tempo desde que não teve contabilidade até à declaração de falência”.
23. Acontece, todavia, que “a contabilidade da insolvente estava organizada durante o ano de 2009” (quesito provado Q).
24. Sendo certo a insolvência da … foi requerida pela credora “Tecnologia de Mobiliário, L.da” em 11 de agosto de 2010 (quesito provado A), tendo sido proferida sentença de declaração de insolvência a 11 de janeiro de 2011.
25. Assim, tendo a contabilidade da insolvente estado organizada durante o ano de 2009 (quesito provado Q), verifica-se que tal imperativo legal só não foi cumprido durante cerca de 8 meses até ao requerimento de insolvência e sensivelmente durante mais 4 meses até à declaração da insolvência.
26. Desse modo, não pode considerar-se que o eventual incumprimento por parte da gerência da insolvente foi “substancial”.
27. Cabe ressaltar que a lei também exige, para este particular pressuposto de culpabilidade na insolvência (o contido no artigo 186.º, n.º 2, alínea h), do CIRE) que o incumprimento em causa tenha ocasionado “prejuízo relevante para a compreensão patrimonial e financeira do devedor”.

31. Pelo que, por maioria de razão, não existiu por parte da gerência qualquer intuito de ocultação da situação patrimonial e financeira da insolvente.
32. Por outra via, da matéria considerada provada nos autos, nenhum facto existe do qual se possa retirar que esse relativamente curto período de tempo durante o qual a insolvente se manteve sem contabilidade organizada provocou o “prejuízo relevante para a compreensão patrimonial e financeira do devedor” de que fala o artigo 186.º, n.º 2, alínea h), do CIRE).
33. A douta decisão impugnada, incorreu em vício de interpretação e aplicação da lei, violando diretamente o disposto no artigo 186.º, n.º 2, alínea h), do CIRE.
Sem contra-alegações.

Colhidos os vistos há que conhecer do recurso.

*

Factualidade:

A) Em 11 de agosto de 2010, “… Tecnologia de Mobiliário, L.da” veio requerer a insolvência de “…Indústria de Mobiliário, L.da”, alegando ser sua credora.
B) A insolvente foi constituída a 18 de março de 1999 e tinha por objeto social a fabricação de mobiliário de madeira.
C) Desde a sua constituição que a gerência foi exercida por António…
D) Apenas foram apreendidos bens no valor de 1.695,00 €.
E) A insolvente exercia a sua atividade em instalações arrendadas.
F) A totalidade das máquinas para produção foram vendidas em 08/03/2010, à empresa “Comércio de Mobiliário …” pelo preço de 84.000,00 €.
G) O sócio gerente da insolvente é também sócio gerente da empresa “Móveis …, L.da”, que era dona do terreno onde se encontrava sediada a insolvente.
H) A insolvente tem contabilidade atualizada até dezembro de 2008.
I) A insolvente não elaborou as contas anuais no prazo legal, nem as submeteu à devida fiscalização nem procedeu ao seu depósito na Conservatória competente.
J) O imóvel onde a insolvente laborava encontrava-se com hipoteca registada a favor do “Banco …, S.A.”, tendo sido vendido a terceiros para fazer face às dívidas da empresa “Móveis …, L.da.”, que exportava os produtos que a insolvente produzia.
L) A insolvente não requereu a declaração de insolvência.
M) A insolvente, logo após a venda das máquinas referida em F), entregou aos antigos trabalhadores, no âmbito dos acordos para a cessação das relações laborais e a título de compensações, a quantia de 51.500,00 €.
N) Liquidou ainda junto da Segurança Social, a título de pagamento de contribuições e de quantias exequendas em processos executivos, o total de 14.375,12 €.
O) A insolvente liquidou igualmente nos Serviços de Finanças a quantia em dívida de 3.530,87 €.
P) A 8 de março de 2010, data da venda das máquinas, a insolvente tinha um descoberto na sua conta bancária no “Banco …, S.A.” no montante de 25.759,74 €, que também saldou.
Q) A contabilidade da insolvente estava organizada durante o ano de 2009.
R) O TOC da insolvente negou-se a atualizar a escrita da insolvente, apesar de dispor dos elementos necessários, e negou-se a entregar à gerência da insolvente os documentos que integravam a sua contabilidade.
***
Nos termos dos artigos 684º, n.º 3 e 690º do CPC o âmbito do recurso encontra-se balizado pelas conclusões do recorrente.
O recorrente coloca as seguintes questões;
- Não violação do dever de manter contabilidade organizada, por impossibilidade de a manter em virtude da atuação do TOC. (inexistência de contabilidade organizada devida a circunstâncias excecionais, anómalas, estranhas à vontade da gerência – e designadamente do aqui recorrente – e completamente fora do seu controle, disponibilidade ou capacidade de diligência).
- Falta do requisito de substancialidade relativamente ao incumprimento.
- Falta do requisito de “ “prejuízo relevante para a compreensão patrimonial e financeira do devedor”.
*
Nos termos do artigo 186 nº 1 do CIRE, a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
O nº 2 do artigo prescreve:
Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:

h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
Esta presunção refere-se à qualificação da insolvência como culposa, abarca nexo, e é inilidível. É o que resulta da expressão “Considera-se sempre culposa “.
Este entendimento coaduna-se com os objetivos tidos em vista. Veja-se o preâmbulo do D.L. Consta deste:
“… 40 - Um objetivo da reforma introduzida pelo presente diploma reside na obtenção de uma maior e mais eficaz responsabilização dos titulares de empresa e dos administradores de pessoas coletivas. É essa a finalidade do novo «incidente de qualificação da insolvência».

O incidente destina-se a apurar (sem efeitos quanto ao processo penal ou à apreciação da responsabilidade civil) se a insolvência é fortuita ou culposa, entendendo-se que esta última se verifica quando a situação tenha sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave (presumindo-se a segunda em certos casos), do devedor…”
O recorrente defende que ocorrem circunstâncias excecionais, anómalas, estranhas à vontade da gerência e completamente fora do seu controle que impossibilitaram o cumprimento daquela obrigação.
Não obstante a conduta do TOC assim não é. É que quem contratou este foi o gerente recorrente, sendo responsabilidade sua a atuação deste. Há culpa sua no prolongamento da situação, não verificando do cumprimento da obrigação. Caso tivesse tido essa preocupação, poderia arranjar outro TOC, e se necessário recorrer aos tribunais para obrigar TOC incumpridor a entregar toda a documentação. Nada foi feito, sendo que a atuação daquele se repercute na esfera da insolvente, e do administrador desta enquanto primeiro responsável pelo cumprimento das obrigações inerentes ao exercício da atividade em causa.
E poderá a omissão de manter a contabilidade poderá considerar-se substancial? Substancial reporta-se à substância, sendo substancial “ aquilo que é essencial ou fundamental”, o que é importante, relativo à essência. A contabilidade omitida foi-o na totalidade, portanto de forma substancial. A substância não tem a ver exclusivamente com o tempo, como se pretende, embora este seja importante para apreciar “ no todo “ do incumprimento a sua substancialidade. Tem sobretudo a ver com as consequências das faltas ocorridas e suas consequências na capacidade de avaliar a situação (de ver a situação) que o ato omitido pretendia tornar patente. No caso dos autos é por demais evidente a substancialidade, pois o administrador nada logrou verificar de relevante.
Assim e por estas razões é de confirmar o decidido.
Decisão:
Em face do exposto acorda-se em julgar a apelação improcedente confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
Guimarães, 20 de fevereiro de 2014
Antero Veiga
Luísa Duarte
Raquel Rego