Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3805/12.6IDPRT.G1
Relator: ANTÓNIO CONDESSO
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
CONTRADIÇÃO
REENVIO DO PROCESSO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/11/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIAL PROVIMENTO
Sumário: I) O vício a que alude o artº 410º, nº 2, b) do CPP, apenas se verificará quando, analisada a matéria de facto, se chegue a conclusões antagónicas entre si e que não podem ser ultrapassadas, ou seja, quando se dá por provado e como não provado o mesmo facto, quando se afirma e se nega a mesma coisa, ao mesmo tempo, ou quando simultaneamente se dão como provados factos contraditórios ou quando a contradição se estabelece entre a fundamentação probatória da matéria de facto, sendo ainda de considerar a existência de contradição entre a fundamentação e a decisão.
II) É o que sucede no caso dos autos, ao dar-se simultaneamente como provado que o arguido era sócio gerente da sociedade arguida, que era o único responsável por ela no plano jurídico, que assinava cheques e documentos dessa sociedade, mas que nunca a gerência foi, de facto, por ele exercida.
II) É que a jurisprudência é uniforme no sentido de que a assinatura de cheques necessários ao giro comercial da sociedade faz prova do exercício de facto de poderes de gerência da mesma.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães

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I- Relatório

Z…, unipessoal Lda foi condenada pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal - período correspondente ao 1º trimestre de 2012 - p. e p. pelos arts. 105º, nºs 1, e 4, 7º, nº1 e 12º, nº2 do RGIT, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de € 10,00.

Nuno G. foi absolvido da prática de um crime de abuso de confiança fiscal p. e p. pelos arts. 105º, nºs 1 e 4 als. a) e b) e 7º, nº3 do RGIT.

Inconformado recorre o MP, suscitando as seguintes questões:

- impugnação da matéria de facto e vício de contradição insanável.

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O Exº Procurador-Geral Adjunto nesta Relação emitiu o respectivo parecer, pugnando pela procedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

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II- Fundamentação

A) Factos provados (transcrição)

“1. A arguida “Z…, Unipessoal Lda.”, com sede no Lugar do C…, Felgueiras, colectada pelo exercício de actividade de fabrico de calçado de couro e pele é contribuinte fiscal com o nº … e esteve enquadrada, para efeitos de I.V.A., em 2011, no regime normal de periodicidade trimestral.

2. O arguido Nuno G. consta como sócio gerente da arguida “Zi…, Unipessoal Lda.”, sendo o exclusivo responsável no plano jurídico.

3. No plano factual, era e é o pai do arguido, António J. o responsável pela direcção dos destinos da sociedade, decidindo por si as escolhas a realizar no dia a dia, nomeadamente, contratação de pessoal, contactos com fornecedores e as orientações quanto ao cumprimento dos normativos fiscais.

4. No âmbito dessas funções António J. entregou a declaração periódica de IVA, referente ao 1º trimestre de 2012 (2012/03).

5. Sucede que, com a respectiva declaração referida, não entregou ao Estado o IVA que liquidou e recebeu, no valor global de € 14.670,62, apesar de saber que estava legalmente obrigado a fazê-lo, não entregou tal quantia aos cofres do Estado no prazo legal, nem decorridos 90 (noventa) dias sobre o termo do referido prazo.

6. A arguida foi notificada para, no prazo de trinta dias, proceder ao pagamento da quantia de imposto em dívida, da coima porventura aplicável e dos juros de mora devidos, não tendo o feito.

7. A sociedade arguida, sempre representada, de facto, pelo pai do arguido José F., não efectuou o pagamento acima discriminado à Administração Fiscal, fazendo sua a referida quantia, utilizando-a em proveito próprio, integrando-a no seu património e obtendo, desse modo, vantagens patrimoniais e benefícios que sabia serem indevidos e proibidos por lei, porquanto sabia que aquele montante era pertença do Estado português e que estava obrigada a entregá-lo.

8. À presente data não procedeu a sociedade arguida ao pagamento à Administração Fiscal do IVA que cobrou e recebeu.

9. Ao não entregar aos cofres do Estado a quantia de € 14.670,62, relativa ao 1º trimestre de 2012 (2012/03), agiu o José F., em representação da sociedade arguida, de modo livre, voluntário e consciente, com o propósito deliberado e concretizado de reter a mencionada quantia e de a não entregar à Administração Fiscal, tendo feito reverter e despendido a mesma, assim enriquecendo o património da sociedade, em igual montante e prejudicando a Administração Fiscal, pelo menos, em valor equivalente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

10. Apesar de constar no respectivo pacto social como gerente o arguido Nuno G. nunca exerceu, de facto, tais funções, limitando-se a assinar cheques e documentos que o seu pai lhe pedia.

11. A sociedade arguida continua a laborar estando pendente um PER.

12. Os arguidos não têm antecedentes criminais.

13. O arguido Nuno tem uma depressão há vários anos, vive com os pais que o sustentam”.

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B) Factos não provados (transcrição)

“- que o arguido Nuno G. exercesse, de facto, a gerência da sociedade arguida e que tivesse alguma intervenção nas decisões correntes da mesma, designadamente ao nível do cumprimento das obrigações fiscais

- que o arguido tenha decidido entregar a declaração periódica de IVA, referente ao 1º trimestre de 2012 (2012/03) sem que esta fosse acompanhada do valor do imposto que liquidou e recebeu, no valor global de € 14.670,62

- que ao não entregar aos cofres do Estado a quantia de € 14.670,62, relativa ao 1º trimestre de 2012 (2012/03), agiu o arguido, em representação da sociedade arguida, de modo livre, voluntário e consciente, com o propósito deliberado e concretizado de reter a mencionada quantia e de a não entregar à Administração Fiscal, tendo feito reverter e despendido a mesma, assim enriquecendo o património da sociedade, em igual montante e prejudicando a Administração Fiscal, pelo menos, em valor equivalente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei”.

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C) Motivação da decisão de facto (transcrição)

“A análise crítica da prova produzida em audiência, assentou e, desde logo, no depoimento isento e credível de Ângela S. técnica da Administração tributária que confirmou a falta de pagamento de IVA, no período em causa e que até à presente data não está regularizada.

Mais consideramos as declarações do arguido Nuno G. que, admitindo que, de direito, era o gerente e único sócio da empresa, referiu que tal só aconteceu porque seu pai lho havia pedido, na medida em que este não podia ter sociedades em seu nome; este já teria tido uma empresa do mesmo ramo, cujos negócios acabaram por correr mal.

Mostrou-se alheado da operação fiscal e implicação dos factos em causa, afirmando que essas questões eram com o seu pai, que tratava de tudo.

O arguido, segundo disse, não tinha como negar o pedido de constituição de uma sociedade comercial, a seu pai, que era quem de facto geria a empresa e dispunha sobre os destinos da sociedade arguida, como lhe aprouvera, não tendo o arguido qualquer interferência. Mais, precisou que era o seu pai que tratava da vida da sociedade, sobretudo da contabilidade, era ele quem decidia sobre o que se haveria de pagar ou não. Era o seu pai que contratava o pessoal, era o seu pai que decidia sobre os fornecimentos e sobre as encomendas, não sendo o arguido tido ou achado para tais assuntos, nunca tendo tomado qualquer decisão, designadamente a que está em causa nestes autos respeitante à não entrega do IVA no período em causa, o pai apenas comentava, em casa, como iam as coisas, sem que isso representasse uma consulta para tomada de decisões.

Atente-se que esta facticidade é confirmada, na íntegra, pelo pai do arguido, António J., admitindo que fez este pedido ao filho por problemas numa sociedade anterior, no entanto, referiu que sempre acreditou que tal nunca traria problemas ao filho, esta testemunha de modo absolutamente franco e preciso admitiu que foi sempre ele, em exclusivo, a gerir, de facto, esta sociedade, apenas constando o nome do filho no plano jurídico dada a situação anterior da testemunha, mais acrescentando que o filho nada decidia, limitando-se a assinar o que a testemunha lhe pedia e era necessário para a laboração da sociedade, sendo que ao nível fiscal, nada o arguido sabia ou decidia, sendo sempre a testemunha a contactar com a administração fiscal para todos os efeitos.

Aliás, estes depoimentos mostram-se corroborados pelo da testemunha Fernando M., funcionário das finanças de Felgueiras, que de forma clara, espontânea e sem qualquer dúvida ou hesitação referiu que foi sempre o pai do arguido a pessoa que lidou com a administração fiscal, nem sequer conhecendo o arguido, nos dizeres da testemunha tudo o relacionado com a Z… ldª era tratado com e pelo pai do arguido, pessoa que era por aqueles serviços contactado, apesar do que constava no pacto social, sempre que alguma questão relacionada com a sociedade havia a tratar.

Ora, todos estes depoimentos conjugados com as regras de experiência comum, pois a situação relatada é infelizmente frequente, e bem assim atendendo à idade do arguido, à data da constituição da sociedade teria vinte anos - o que constitui um indício da pouca experiência de vida, que o levou, quanto a nós, a aceitar o pedido do pai - permitem-nos concluir que os factos se passaram do modo relatado pelo arguido, daí termos dado como provada a versão que aqui nos trouxe, e termos dado como não provados, consequentemente, os factos que o colocavam como responsável, no plano factual, pelo destino da sociedade, designadamente ao nível do cumprimento da obrigação fiscal aqui em causa.

Acrescente-se que a própria postura do arguido – distante, parecendo alheado da realidade - é compatível com esta versão, o mesmo refere ter uma depressão que vem tratando, ora, não se nos afigura, pela sua maneira de estar, refiro-me aqui a comportamentos não verbais em sede de audiência, que o mesmo face ao seu estado “aparente” tenha capacidade para gerir o que quer que seja.

Ponderou-se, ainda, os documentos constantes dos autos e os CRC juntos”.

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Apreciando

Invoca o recorrente que terá sido mal julgada a matéria de facto, pretendendo que o tribunal de recurso sindique a forma como o tribunal de primeira instância apreciou a prova produzida em audiência, mas, para tanto, haveria de ter dado adequado cumprimento ao disposto no art. 412º., nºs. 3 e 4 CPP, o que não se mostra correctamente efectuado.

É que ao contrário do que por vezes se pensa, o recurso não tem por finalidade nem pode ser confundido com um "novo julgamento" da matéria de facto, assumindo-se antes como um “remédio” jurídico.

Como várias vezes salientou o Prof. Germano Marques da Silva, presidente da Comissão para a Reforma do Código de Processo Penal:

- “… o recurso é um remédio para os erros, não um novo julgamento” (conferência parlamentar sobre a revisão do Código de Processo Penal, in Assembleia da República, Código de Processo Penal, vol. II, tomo II, Lisboa 1999, pág. 65);

- “o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, constituindo apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância” (Forum Justitiae, Maio/99);

- “Recorde-se que o recurso ordinário no nosso Código é estruturado como um remédio jurídico, visa corrigir a eventual ilegalidade cometida pelo tribunal a quo. O tribunal ad quem não procede a um novo julgamento, verifica apenas da legalidade da decisão recorrida, tendo em conta todos os elementos de que se serviu o tribunal que proferiu a decisão recorrida. Daí que também a renovação da prova só seja admitida em situações excepcionais e, sobretudo, o recorrente tenha que indicar expressamente os vícios da decisão recorrida.” (Registo da prova em Processo Penal, Tribunal Colectivo e Recurso, in Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues, vol. I, Coimbra, 2001).

Da mesma forma, na jurisprudência pode ler-se, por exemplo, no Ac. do STJ de 24/10/2002, proferido no pr. 2124/02: “… o labor do tribunal de 2.ª Instância num recurso de matéria de facto não é uma indiscriminada expedição destinada a repetir toda a prova (por leitura e/ou audição), mas sim um trabalho de reexame da apreciação da prova (e eventualmente a partir dos) nos pontos incorrectamente julgados, segundo o recorrente, e a partir das provas que, no mesmo entender, impõem decisão diversa da recorrida – art.º 412º, nº 3, als. a) e b) do C.P.P. e levam à transcrição (nº 4 do art.º 412º do C.P.P.)”.

Ou no acórdão do STJ de 15-12-2005 (pr. 2.951/05, relatado pelo conselheiro Simas Santos), “o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª Instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª Instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros”.

Ou, finalmente, no recente Ac. STJ n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 18-4-2012:

“… Pede -se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1.ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em segunda instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1.ª instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo…

O Supremo Tribunal de Justiça tem reafirmado que o recurso da matéria de facto perante a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento não existisse, tratando-se antes de um remédio jurídico, destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros e não indiscriminadamente, de forma genérica, quaisquer eventuais erros…

Como se refere no acórdão de 27 de Janeiro de 2009, processo n.º 3978/08 -3.ª «O julgamento efectuado pela Relação é de via reduzida, de remédio para deficiências factuais circunscritas, confinadamente a pontos específicos, concretamente indicados, não valendo uma impugnação genérica, repousando em considerações mais ou menos alargadas ou simplesmente abrangentes da leitura pessoal, unilateralista e interessada que os sujeitos processuais fazem das provas e do resultado a que devam chegar» …”.

Por conseguinte, o recurso em matéria de facto, destina-se apenas à reapreciação da decisão proferida em primeira instância em pontos concretos e determinados. Tem como finalidade a reapreciação de “questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida” (cfr. designadamente o art. 410º., nº.1 do CPP).

Daí que o legislador tenha estabelecido um específico dever de motivação e formulação de conclusões do recurso nesta matéria, dispondo o art. 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal:

«Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas.»

Acrescentando o n.º 4 do mesmo artigo que:

“Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”.

Impunha-se ao recorrente, em vista disso, para que do recurso pudesse retirar alguma utilidade que impugnasse devidamente a matéria de facto, cumprindo adequadamente o constante dos nºs 3 e 4 do art. 412º. CPP.

E é sabido que ao cumprimento de tal desiderato não bastará somente identificar os intervenientes, efectuar uma apreciação do que possam ter dito ou impugnar de forma meramente genérica os factos em causa (tal qual ocorre no presente caso), devendo antes precisar-se, em primeiro lugar, detalhadamente cada um dos pontos da matéria de facto constante da decisão proferida colocados em crise (dizendo o recorrente, por exemplo, que pretende impugnar os pontos 7 e 8 dos factos provados ou as als. a) e c) dos não provados), indicando-se depois, relativamente a cada um deles, as passagens concretas e determinadas dos depoimentos em que se funda a impugnação que impõem decisão diversa (e não que meramente a possibilitariam) e procurando-se localizar, ao menos de forma aproximada, o início e termo de tais passagens por referência aos suportes técnicos, conforme o preceituado no referido n.º4. Assim, por exemplo, o recorrente poderá indicar que o afirmado se reporta à passagem do depoimento da testemunha A que vai do minuto 3º. ao 6º. da gravação efectuada em CD pelo Tribunal.

Revertendo ao recurso em apreciação resulta manifesto que o recorrente assim não procedeu, já que não especifica, desde logo, como se lhe impunha, quais os concretos pontos de facto da decisão recorrida que considera incorrectamente julgados, antes propondo a este Tribunal de recurso que efectue praticamente um novo julgamento integral.

Com efeito, ao longo quer da motivação quer das conclusões, o recorrente limita-se a impugnar a matéria de facto de uma forma genérica, jamais concretizando os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, quando é certo que a especificação dos “concretos pontos de facto” só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e se considera incorrectamente julgado. Vd. Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, 3ª. ed., 2009, nota 7 ao art. 412º., pág. 1121

Daí que, ao não concretizar os pontos de facto incorrectamente julgados, não se mostrem também especificados, em relação a cada um de tais pontos de facto, as provas que impunham decisão diversa da recorrida.

E, se o recorrente não cumpre tais deveres, não é exigível ao Tribunal que aprecia o recurso que se lhe substitua e tudo reexamine, quando o que lhe é pedido é que sindique concretos erros de julgamento da peça recorrida que lhe sejam devidamente apontados com referência à prova e respectivos suportes.

Assim sendo, perante o incumprimento pelo recorrente de tal ónus de especificação, fica este Tribunal da Relação colocado na impossibilidade de conhecer do recurso em matéria de facto, pois, como é sabido, não há lugar a convite para efectuar as especificações em falta, uma vez que isso traduziria a concessão à revelia da lei de um segundo prazo de interposição de recurso (cfr. acórdão do TC nº. 140/2004 de 10-3-2004, in DR, II série, nº. 91 de 17-4-2004).

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Alega também o recorrente que a sentença padece do vício de contradição insanável da fundamentação previsto no art. 410º, nº2, al. b) do CPP, esgrimindo o seguinte a tal respeito:

“… A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão consiste tanto na contradição entre a matéria de facto dada como provada ou como provada e não provada, como também entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou até mesmo entre a fundamentação e a decisão. Ou seja, uma situação em que, seguindo o fio condutor do raciocínio lógico do julgador, os factos julgados como provados ou como não provados colidem inconciliavelmente entre si ou uns com os outros ou, ainda, com a fundamentação da decisão.

Olhando para a sentença recorrida, vemos que existem contradições insanáveis, designadamente:

a) entre a matéria de facto dada como provada nos pontos 2), 3), 4), 7), 9), 10) e 11);

b) entre a matéria de facto dado como provada no ponto 2) e 10) e a matéria de facto dada como não provada.

Da leitura da sentença recorrida verifica-se que o Tribunal a quo dá como provado que o arguido Nuno G. era sócio gerente da sociedade arguida, que era o seu único responsável no plano jurídico (dr. ponto 2 dos factos provados) e que assinava cheques e documentos da sociedade (dr. ponto 10 dos factos provados).

Dá também como provado nos pontos 3 e 7 que a sociedade foi sempre e é representada, de facto, pelo pai do arguido e no ponto 10 que o arguido Nuno G. nunca exerceu, de facto, a gerência da sociedade arguida.

Ora, como pode simultaneamente dar-se como provado que o arguido Nuno G. era sócio gerente da sociedade arguida, que era o único responsável por ela no plano jurídico (por ser o seu único sócio gerente), que assinava cheques e documentos dessa sociedade, mas que nunca a gerência foi, de facto, por ele exercida?

Como pode dar-se como provado que a sociedade continua a laborar, estando pendente um PER, que a sociedade entregou a declaração periódica de IVA relativamente ao 10 trimestre de 2012 e, simultaneamente, que o seu único sócio-gerente nunca exerceu, de facto, a gerência de tal sociedade?

Como pode a sociedade funcionar normalmente sem o exercício da gerência pelo seu único sócio-gerente?

Salvo o devido respeito, ao dar como provado que ele era único responsável no plano jurídico pela sociedade e assinava cheques e documentos da mesma, a Senhora Juiz deveria ter concluído que o arguido Nuno G. praticava actos próprios de gestão, pois vinculava a sociedade mediante a sua assinatura.

Ao invés, foi dado como provado, no ponto 10, que este arguido nunca exerceu a gerência de facto da sociedade arguida, apesar de se dizer também que ele assinava cheques e documentos.

Cremos que a sentença recorrida pretende cindir duas realidades que não podem ser dissociadas uma da outra e, ao tentar fazê-lo, entrou em clara contradição na sua fundamentação.

Com efeito, uma sociedade unipessoal não pode funcionar sem o seu único sócio gerente, pois só ele tem a capacidade de a vincular perante terceiros, designadamente perante o Estado.

Não se pode considerar provado, sem se incorrer em contradição, que o arguido Nuno G. assinava cheques e documentos da sociedade e, simultaneamente, considerar-se também provado que ele nunca exerceu de facto as funções de gerente.

Não se pode considerar provado, sem se incorrer em contradição, que o arguido Nuno G. nunca exerceu de facto as funções de gerente e considerar-se também provado que, de facto, a gerência da sociedade arguida pertencia em exclusivo ao pai deste arguido.

Como é que seria possível?

Se o arguido Nuno G. não exercesse, no plano fáctico, as funções de gerente, como podia o seu pai, por si só, assumir tal função?

A resposta é simples. Não podia. Não podia porque não tinha capacidade de se relacionar com terceiros em nome da sociedade, não podia vinculá-la, não podia relacionar-se com o Estado, designadamente quanto ao cumprimento das obrigações fiscais, não podia contratar pessoal, não podia celebrar contratos com os fornecedores, enfim, não podia dirigir o destino da sociedade.

Só a actuação no plano fáctico do arguido Nuno G. permitiu que o seu pai entregasse a declaração periódica de IVA ao Estado, pois só aquele arguido pode relacionar-se com administração fiscal em representação da sociedade arguida…”.

Vejamos

Dispõe o artigo 410º, nº 2, do C. P. Penal: “Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova”.

Como decorre expressamente da letra da lei, qualquer um dos elencados vícios tem de dimanar da complexidade global da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso, portanto, a quaisquer elementos que à dita decisão sejam externos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução, ou até mesmo o julgamento, salientando-se também que as regras da experiência comum, no dizer de Germano Marques da Silva “não são senão as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece, englobando as regras da lógica, os princípios da experiência e os conhecimentos científicos”.

A insuficiência a que se reporta a citada al. a) é um vício que ocorre quando os factos provados forem insuficientes para justificar a decisão assumida, ou, quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do juiz.

Tal vício consiste na formulação incorrecta de um juízo, ou seja, ocorre quando a conclusão extravasa as premissas por a matéria de facto provada ser insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada.

Por sua vez, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, apenas se verificará quando, analisada a matéria de facto, se chegue a conclusões antagónicas entre si e que não possam ser ultrapassadas, ou seja, quando se dá por provado e como não provado o mesmo facto, quando se afirma e se nega a mesma coisa, ao mesmo tempo, ou quando simultaneamente se dão como provados factos contraditórios ou quando a contradição se estabelece entre a fundamentação probatória da matéria de facto, sendo ainda de considerar a existência de contradição entre a fundamentação e a decisão.

Finalmente, o erro notório na apreciação da prova é prefigurável quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária ou visivelmente violadora do sentido da decisão e/ou das regras de experiência comum, constituindo entendimento unânime da doutrina e jurisprudência que tal erro nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto proferida e aquela que o recorrente entende que seria a correcta face à prova produzida; só podendo verificar-se quando o conteúdo da respectiva decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, patenteie, de modo que não escaparia à análise do homem comum, que no caso se impunha uma decisão de facto contrária à que foi proferida.

Assim, no dizer de Simas Santos e Leal Henriques (in “Recursos em Processo Penal, 7ª ed., 2008, Editora Rei dos Livros, pág. 77) existe erro notório na apreciação da prova quando “… um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência, se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, ou desrespeitou regras sobre o valor da prova vinculada ou das legis artis…”.

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Como já vimos, em sede de apreciação destes vícios, a matéria de facto só é sindicável quando o vício de que a mesma possa enfermar “resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum” (corpo do nº. 2 do art. 410º. do CPP).

Ou seja, como resulta expressamente da letra da lei, qualquer dos vícios a que alude o nº.2 do art. 410º. do CPP tem de dimanar da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso a quaisquer elementos externos à decisão, designadamente às declarações ou aos depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução, ou até mesmo durante o julgamento.

No tocante em concreto ao vício invocado afigura-se-nos ter razão o recorrente, sendo patentes as situações de contradição insanável que assinala quer entre factos dados como provados, quer entre alguns destes e os não provados, maxime quando escreve o seguinte:

“Ora, como pode simultaneamente dar-se como provado que o arguido Nuno G. era sócio gerente da sociedade arguida, que era o único responsável por ela no plano jurídico (por ser o seu único sócio gerente), que assinava cheques e documentos dessa sociedade, mas que nunca a gerência foi, de facto, por ele exercida?

Como pode dar-se como provado que a sociedade continua a laborar, estando pendente um PER, que a sociedade entregou a declaração periódica de IVA relativamente ao 10 trimestre de 2012 e, simultaneamente, que o seu único sócio-gerente nunca exerceu, de facto, a gerência de tal sociedade?

Como pode a sociedade funcionar normalmente sem o exercício da gerência pelo seu único sócio-gerente?

Salvo o devido respeito, ao dar como provado que ele era único responsável no plano jurídico pela sociedade e assinava cheques e documentos da mesma, a Senhora Juiz deveria ter concluído que o arguido Nuno G. praticava actos próprios de gestão, pois vinculava a sociedade mediante a sua assinatura.

Ao invés, foi dado como provado, no ponto 10, que este arguido nunca exerceu a gerência de facto da sociedade arguida, apesar de se dizer também que ele assinava cheques e documentos”.

Na verdade a jurisprudência é uniforme no sentido preconizado pelo recorrente, sendo múltiplos os acórdãos que tal reflectem.

Assim, por exemplo, no Ac. TCAS de 30-10-2014, pr. 06216/12, disponível em www.dgsi.pt, pode ler-se, entre o mais, o seguinte:

“O estatuto do gerente/administrador advém-lhe por virtude da sua relação negocial com a sociedade, iniciada com a sua nomeação para o exercício do cargo de gerente e consequente aceitação do mesmo, em virtude do que assume uma situação de garante das dívidas sociais, embora com direito à prévia excussão dos bens da empresa (cfr.artº.146, do C.P.C.Impostos; artº.239, nº.2, do C.P.Tributário; artº.153, nº.2, do C.P.P. Tributário).

A lei não define precisamente em que é que se consubstanciam os poderes de gerência, mas, em face do preceituado nos artºs.259 e 260, do Código das Sociedades Comerciais, parece dever entender-se que serão típicos actos de gerência aqueles que se consubstanciam na representação da sociedade perante terceiros e aqueles através dos quais a sociedade fique juridicamente vinculada e que estejam de acordo com o objecto social (cfr.ac.S.T.A.-2ª.Secção, 3/5/1989, rec.10492; ac.T.C.A.Sul-2ª. Secção, 8/5/2012, proc.5392/12; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 31/10/2013, proc.6732/13; Jorge Lopes de Sousa, C.P.Tributário anotado e comentado, III volume, Áreas Editora, 6ª. edição, 2011, pág.465 e segs.).

É no artº.64, do C. S. Comerciais, que se encontra consagrado o dever de diligência dos administradores/gerentes de sociedade, nos termos do qual estes devem actuar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado, no interesse da sociedade, tendo em conta os interesses dos sócios e dos trabalhadores.

A gerência é, por força da lei e salvo casos excepcionais, o órgão da sociedade criado para lhe permitir actuar no comércio jurídico, criando, modificando, extinguindo, relações jurídicas com outros sujeitos de direito.

E recorde-se que a assinatura de cheques necessários ao giro comercial da sociedade faz prova do exercício de facto de poderes de gerência da mesma (cfr.ac.T.C.A.Sul-2ª. Secção, 4/5/2004, proc.1179/03; ac.T.C.A.Sul-2ª. Secção, 7/3/2006, proc.933/05)”.

E no mesmo sentido pode ler-se no Ac. TCAS de 19-2-2015, pr. 05484/12, igualmente disponível no mesmo local:

“Nos termos do artigo 24º nº 1 b) da LGT o gerente é responsável pelas dívidas tributárias cujo prazo legal de pagamento ou de entrega tenha terminado no período do exercício do seu cargo, recaindo sobre o mesmo o ónus da prova de que não foi por culpa sua que o pagamento não se efectuou.

durante a toda a actividade da sociedade executada originária assinou cheques em nome daquela uma vez que constava como titular da respectiva conta bancária. Ora, tal facto evidencia a pratica de actos de representação da sociedade.

Relativamente à assinatura de cheques em sede de reversão, e da prova da gerência de facto, pronunciou-se este Tribunal no douto acórdão de 30/10/2014 com o nº 06216/12 onde se pode ler o seguinte:

Examinando a matéria de facto provada (cfr.nº.15 do probatório), deve constatar-se que foi produzida prova da gerência de facto por parte do opoente. Assim é, porquanto, da factualidade provada se retira que o opoente praticou actos de representação (cfr. assinatura de cheques), da sociedade "(…) Lda.", fazendo apelo à distinção doutrinária mencionada supra.

E recorde-se que a assinatura de cheques necessários ao giro comercial da sociedade faz prova do exercício de facto de poderes de gerência da mesma (cfr. ac. TCA Sul-2ª. Secção, 4/5/2004, proc.1179/03; ac. TCA Sul-2ª. Secção, 7/3/2006, proc.933/05) …”.

Do exposto se conclui que a forma como nos surgem equacionadas as matérias supra-referidas na sentença recorrida constituem um atropelo às regras da lógica e da experiência, consubstanciando diversas situações subsumíveis ao disposto na al. b) do nº.2 do art. 410º. CPP.

Os apontados vícios impedem que este Tribunal possa decidir da causa, pelo que se torna necessário o reenvio do processo para novo julgamento, relativamente à totalidade do objecto do processo, no qual cumprirá diligenciar pelo cabal esclarecimento dos factos pertinentes, de modo a colmatarem-se as anomalias detectadas (arts.426º., nº.1 e 426º.-A, nºs.1 e 2 CPP).

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III- Decisão

Nos termos expostos, acordam os juízes desta secção criminal do Tribunal da Relação de Guimarães em, conceder parcial provimento ao recurso, ordenando o reenvio do processo para novo julgamento.

Sem custas.

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Guimarães, 11/5/2015