Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1524/03-2
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: FUNDO DE GARANTIA DE ALIMENTOS A MENORES
NATUREZA JURÍDICA
OBRIGAÇÃO ALIMENTAR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/11/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I – Nos termos do disposto no artº 4º nº5 D.-L. nº164/99, o montante de alimentos em que for condenado o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores deve ser pago no mês seguinte à notificação da decisão – artº 4º nº5 D.-L. nº164/99
II – O montante a ser pago não apenas é avaliado segundo critérios diversos da prestação a cargo do progenitor devedor de alimentos, como constitui uma prestação nova, não conduzindo a que o Estado se substitua ao devedor, mas tão só a que o Estado assegure a sua obrigação programática de defesa da infância.
III - Olhando quer à letra da lei, quer à intencionalidade legislativa, quer ao espírito do tempo em que a lei foi publicada, deve concluir-se que a condenação do Fundo de Garantia não abrange as prestações objecto de condenação desse Fundo a contar da data da propositura da acção ou do pedido de pagamento ao abrigo do regime legal que instituiu o Fundo, mas apenas após o mês seguinte à data da notificação da decisão.
Decisão Texto Integral: Acordão no Tribunal da Relação de Guimarães

Os Factos
Recurso de agravo interposto na acção com processo especial de Alteração de Regulação de Poder Paternal nº ..., do 1º Juízo Cível da comarca de Viana do Castelo.
Agravante – A.
Agravado – Ministério Público.
Por apenso à alteração da regulação de exercício do poder paternal que move contra Luís ... e Rosinda ..., o MºPº veio requerer a fixação de prestação a título de garantia de alimentos a favor do menor Jorge ....
Na tese que sustentou, o Digno Agente do MºPº alude a que o menor ficou entregue, por decisão judicial, à guarda e cuidados de sua mãe, tendo seu pai ficado obrigado a pagar a favor do menor uma quantia a título de alimentos que ficou fixada em Esc.15.000$00 mensais que, todavia, desde o mês de Junho de 2001 que não paga ao menor.
Peticionou que o Requerido fosse condenado em multa e que, caso se confirmasse a impossibilidade de cumprimento e cobrança coerciva das quantias em dívida, se proferisse decisão definitiva sobre o montante a pagar, que requer o seja pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores.
Na sentença que proferiu, o Mmº Juiz “a quo” determinou que o Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores assegurasse o pagamento da prestação mensal de € 125 ao Jorge Miguel Vieira Peres.
Posteriormente, por despacho de fls. 34 e 35, decidiu-se que o Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores assegura o pagamento das prestações mensais ao menor Jorge ..., conforme sentença proferida, a partir do mês de Abril de 2002 inclusive, ou seja, a partir da data em foi suscitado nos autos o presente incidente de incumprimento.
É deste último despacho que vem interposto o presente recurso.
O agravado, em contra-alegações, pugnou pela manutenção do despacho recorrido.

Conclusões do Recurso de Agravo:
1. Não foi intenção do legislador da Lei 75/98 de 19 de Novembro e do Decreto-Lei 164/99 de 13 de Maio prever o pagamento pelo Estado do débito acumulado pelo obrigado a alimentos.
2. Foi preocupação dominante, nomeadamente do grupo parlamentar que apresentou o projecto de diploma, o evitar o agravamento excessivo da despesa pública, um aumento do peso do Estado na sociedade portuguesa.
3. Tendo presente o disposto no artigo 9° do C.Civil, ressalta ter sido intenção do legislador, expressamente consagrada, ficar a cargo do Estado apenas o pagamento de uma nova prestação de alimentos a fixar pelo Tribunal dentro de determinados parâmetros - n°3 do artigo 3° e n°1 do artigo 4° do DL 164/99 de 13/5 e artigo 2° da Lei 75/98 de 19/11.
4. O débito acumulado do devedor não será assim da responsabilidade do Estado.
5. O legislador não teve em vista uma situação que a médio prazo se tornasse insustentável para a despesa pública, face à conjuntura socio-económica ja então perfeitamente delineada.
6. A decisão violou assim o artigo 2° da Lei 75/98 de 19 de Novembro e artigo 3° e 4° do DL 164/99 de 13 de Maio.
7. Os diplomas em apreço só se aplicam para o futuro, não tendo eficácia retroactiva - artigo 12° do Código Civil.
8. E isto, independentemente de os seus efeitos se produzirem na data da entrada em vigor da Lei do Orçamento para o ano de 2000.
9. Na verdade, o pagamento das prestações de alimentos saem das verbas do Orçamento.
10. O pagamento das prestações de alimentos terá início no mês seguinte à notificação do organismo de Segurança Social - n° 5 do artigo 4° do Decreto-Lei 164/99 de 13 de Maio.
11. O douto Acordão do Tribunal da Relação de Coimbra - Agravo 1386/01 de 26-06-01 - bem decidiu no sentido de o Estado não responder pelo débito acumulado do obrigado a alimentos, tratando-se de prestações de diversa natureza.
No mesmo sentido:
Ac. do Tribunal da Relação do Porto n° 599/2002 de 30-4-02 da 2ª Sec.; Ac. do Tribunal da Relação do Porto n° 905/02 de 11-06-02 da 2ª Sec.; Ac. do Tribunal da Relação de Évora n° 1144-02-03 de 23-05-02 da 3ª Sec.; Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa n° 7742/01 de 25-10-01 da 2ª Sec.; Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra n° 1386/01 de 26-06-01; Ac. do Tribunal de Relação do Porto n° 657/02 de 4-7-02 da 3ª Sec.; Ac. do Tribunal da Relação de Évora n° 638/02 de 23-05-02 da 3ª Sec.; Ac. do Tribunal da Relação do Porto n° 2094/02 de 28-11-02 da 3ª Sec.; Ac. do Tribunal da Relação do Porto n° 871/03.3 de 13.03.03 da 3ª Sec.
12. Não poderá aplicar-se por analogia o regime do artigo 2006° do Codigo Civil.

Fundamentos
A questão posta no recurso consiste apenas em saber se, como foi decidido, o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores deve ser responsabilizado pelo pagamento de prestações que respeitariam a período anterior à data da decisão deste incidente de incumprimento, todavia apenas a partir da data em que foi suscitado o presente incidente de incumprimento e alteração de regulação de poder paternal.
Nos termos do artº1º Lei nº 75/98 de 19 de Novembro, quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos a menor residente em território nacional não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artº 189º O.T.M. e o alimentado não tenha rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, o Estado assegura as prestações previstas na lei aludida até ao início do efectivo cumprimento da obrigação.
Reza o art. 2º nº1 Lei nº75/98 de 19/11 que as prestações atribuídas nos termos daquele diploma são fixadas pelo tribunal e não podem exceder, mensalmente, por cada devedor, o montante de 4 UC.
Esta prestação social, a cargo do Estado, encontra fundamento no direito das crianças à protecção, consagrado constitucionalmente (artº 69º C.R.P.) que, como se explicita no Preâmbulo do DL 164/99 de 13/5, não pode deixar de comportar a faculdade de requerer à sociedade e ao próprio Estado as prestações existenciais que proporcionem as condições essenciais ao seu desenvolvimento e a uma vida digna. A sua justificação decorre do aumento significativo de acções que têm por objecto situações de incumprimento da obrigação de alimentos, procurando-se, assim, por essa via, assegurar, na falta de cumprimento daquela obrigação, a satisfação do direito a alimentos.
Consoante Remédio Marques, Algumas Notas Sobre Alimentos, pg. 221, o referido Fundo de Garantia não visa substituir definitivamente uma obrigação legal de alimentos devida a menor, antes propiciar uma prestação “à forfait” de um montante por regra equivalente – ou menor – ao que fora fixado judicialmente. Reveste, como refere o mesmo Autor, natureza subsidiária, visto que é seu pressuposto legitimador a não realização coactiva da prestação alimentícia já fixada através das formas previstas no artº 189º OTM.
Trata-se, assim, de uma prestação actual, autónoma da anteriormente fixada, em que esta constitui apenas um dos elementos a ponderar na fixação daquela – artº 2º nº2 Lei nº75/98 de 19 de Novembro. Nos termos desta disposição, o tribunal deve atender, na fixação do montante referido, e sem prejuízo do máximo a que alude o disposto no artº2º nº1 Lei nº75/98, à capacidade económica do agregado familiar da pessoa a cuja guarda se encontre, ao montante da prestação de alimentos fixada pelo tribunal e às necessidades específicas do menor.
Por fim, o Fundo de Garantia só inicia o pagamento das prestações no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal – artº 4º nº 5 do D-L 164/99.
Assim, e em resumo, visou o regime legal citado instituir uma garantia de alimentos ao menor deles carecido, por incumprimento do progenitor a eles obrigado, garantia que se traduz na fixação de uma prestação em função das condições actuais do menor e dos seu agregado familiar, que pode ser diferente (e normalmente será, uma vez que os critérios para a respectiva definição são diferentes) da anteriormente fixada.
É o pagamento destas prestações, fixadas nos termos desses diplomas, que o Estado assegura, como decorre claramente do disposto no art. 1º parte final Lei 75/98.
Dir-se-ia que o regime legal que criou o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores e regulamentou as respectivas prestações não exclui a aplicação do disposto no artº 2006º C.Civ., segundo o qual “os alimentos são devidos desde a proposição da acção ou, estando já fixados pelo tribunal ou por acordo, desde o momento em que o devedor se constituiu em mora”.
Desta forma, alguma jurisprudência entendeu que “na fixação da prestação a suportar pelo Fundo de Garantia podem ser abrangidas as prestações já vencidas e não pagas pela pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos” (neste sentido, Ac.R.L. 12/7/01, disponível na internet a partir de www.dgsi.pt, e Ac.R.P. 19/9/02 Col.IV/180).
Em todo o caso, é maioritária a jurisprudência (ainda que resumida) encontrada no referido lugar da internet que defende a opinião segundo a qual o Fundo de Garantia não pode ser responsabilizado pela dívida de alimentos anterior ao período anterior de incumprimento; em texto integral, designadamente o AcR.P. 4/7/02, relatado pelo Des. Pinto de Almeida, cujos raciocínios lógico-dedutivos aqui se vêm seguindo de perto; na Colectânea de Jurisprudência, o Ac.R.C. 11/7/02 Col.V/36.
A questão colocada pela decisão impugnada é, por assim dizer, questão intermédia.
O Mmº Juiz “a quo”, na tentativa de racionalizar equilibradamente a questão que lhe foi colocada, entendeu que:
- por um lado, não faz sentido que o Fundo garanta as prestações referentes ao período de tempo em que não houve qualquer reacção tendente à obtenção das quantias em falta;
- por outro lado, as prestações devidas são-no a partir do momento da entrada em juízo da petição onde é requerido o pagamento, por parte do Fundo, dos alimentos; de outra forma, deixar-se-ia ao sabor da maior ou menor celeridade processual a satisfação de necessidades de prestação alimentar básicas do menor (este um dos raciocínios fundamentais do sobredito Ac.R.P. 19/9/02 cit.).
Detendo-nos mais de perto sobre a matéria em causa nos presentes autos:
Interpretar a lei é tarefa que tem por objectivo a descoberta do seu exacto e preciso sentido, partindo-se do elemento literal para se ajuizar da "mens legislatoris" e tendo-se sempre em conta que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artº 9º nº3 CCiv.): a letra não é só o ponto de partida, é também um elemento irremovível de toda a interpretação. O texto funciona também como limite de busca do espírito (Oliveira Ascensão, O Direito, Introdução e Teoria Geral, pág. 350).
Ora, em primeiro lugar, a lei visou que o Fundo de Garantia só iniciasse o pagamento das prestações no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal – artº 4º nº 5 D.-L. nº 164/99.
Após, há que considerar a possibilidade de, em caso justificado e urgente, ser proferida uma decisão provisória sobre o montante a prestar pelo Estado, após diligências de prova (artº 3º nº2 Lei 75/98); sem prejuízo de um procedimento característico de uma providência cautelar não constituir novidade no nosso ordenamento processual, esta norma dá a nota de que não existe perigo de não satisfação das necessidades do menor, por via das delongas processuais (o “tempo processual”, de resto, possui face ambivalente em todo e qualquer processo judicial: constitui um elemento essencial para a ponderação da decisão, mas, de outro lado, um entrave para o objectivo de repor a normalidade da vida violada pela conduta antijurídica). Por outro lado, os recursos têm, nestes processos, efeito meramente devolutivo, que não impede a execução da prestação fixada, em caso de recurso (artº 3º nº5 Lei nº75/98).
Por fim, como se viu, o Estado não se substitui incondicionalmente ao devedor originário dos alimentos. O Estado substitui-se ao devedor, não para pagar as prestações em dívida pelo devedor originário de alimentos, mas para assegurar os alimentos de que o menor carece, ficando onerado com uma prestação nova. Daí a necessidade de produção de prova sobre os elementos já enunciados (artº 2º nº2 Lei nº75/98), e daí também a conclusão que a prestação a efectuar pelo Estado não é necessariamente equivalente à que estava em dívida a cargo progenitor.
De todo o exposto, há que retirar que a norma do artº 2006º C.Civ. é inaplicável à condenação do Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores, desde logo no que respeita ao decidido em 1ª instância, ou seja, que os alimentos são devidos desde a proposição da acção ou desde a formulação do pedido contra o Fundo, caso este pedido não coincida temporalmente com a proposição da acção.
Se a letra da lei inculca tal conclusão (o novo montante deve ser pago no mês seguinte à notificação da decisão – artº 4º nº5 D.-L. nº164/99), o elemento teleológico (a justificação social do Estado de prover à defesa da criança, como é sua obrigação programática, mas limitadamente, sem assumir as dívidas do obrigado a alimentos, antes sendo parte numa relação jurídica diversa, conforme artºs 2º e D.-L. nº75/98, sem prejuízo de fixação provisória de alimentos) e até a occasio legis ou os trabalhos preparatórios (por um lado, a necessidade sentida de prover ao bem estar da criança, e aumentar o rendimento disponível das pessoas, mas por outro não esquecendo que o Estado português é desde sempre um Estado deficitário – facto que levou a que se ponderassem, nos trabalhos preparatórios, fontes de financiamento autónomas do O.E., como salienta o Recorrente), reforçam a conclusão supra.
Pese embora a douta ponderação do despacho recorrido, entende-se, em contrário, que o Agravante apenas estará obrigado a prestar os alimentos fixados no mês seguinte à notificação da decisão, mês seguinte esse que foi Maio de 2003, e, em cada mês, pelo montante mensal em que foi fixada a condenação.

Resumindo a fundamentação:
I – Nos termos do disposto no artº 4º nº5 D.-L. nº164/99, o montante de alimentos em que for condenado o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores deve ser pago no mês seguinte à notificação da decisão – artº 4º nº5 D.-L. nº164/99
II – O montante a ser pago não apenas é avaliado segundo critérios diversos da prestação a cargo do progenitor devedor de alimentos, como constitui uma prestação nova, não conduzindo a que o Estado se substitua ao devedor, mas tão só a que o Estado assegure a sua obrigação programática de defesa da infância.
III - Olhando quer à letra da lei, quer à intencionalidade legislativa, quer ao espírito do tempo em que a lei foi publicada, deve concluir-se que a condenação do Fundo de Garantia não abrange as prestações objecto de condenação desse Fundo a contar da data da propositura da acção ou do pedido de pagamento ao abrigo do regime legal que instituiu o Fundo, mas apenas após o mês seguinte à data da notificação da decisão.

Com os poderes conferidos pelo disposto no artº 202º nº1 da Constituição da República Portuguesa, decide-se neste Tribunal da Relação:
Julgar procedente, por provado, o recurso, em consequência determinando que o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores apenas se constituiu devedor da prestação mensal de € 125, a favor do menor Jorge Miguel Vieira Peres, a partir do mês seguinte à notificação da decisão condenatória – mês seguinte esse que é Dezembro de 2002 (cf. notificação de fls. 26 dos autos e artº 254º nº2 C.P.Civ.).
Sem custas.