Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3260/15.9T8VCT.G1
Relator: AUSENDA GONÇALVES
Descritores: SANÇÃO ACESSÓRIA
REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO EXECUÇÃO
NÃO AUDIÇÃO DO ARGUIDO
NULIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - Num estado de direito, o direito de defesa é um princípio natural de qualquer tipo de processo, ainda que de natureza meramente civil, pelo que, por maioria de razão, no campo dos procedimentos de cariz sancionatório, em geral – desde logo os penais, mas também os contraordenacionais –, esse princípio assume uma relevância tal que o legislador considerou justificar-se dar-lhe especial acolhimento constitucional, consagrando-o na segunda parte do nº 5 do art. 32º da CRP, assim se garantindo o direito de audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afectados pela decisão, de forma a garantir-lhes uma influência efectiva no desenvolvimento do processo.

II - Estando em causa direitos fundamentais e, particularmente no que respeita ao arguido, as garantias a que alude o nº 1 do mesmo art. 32º – para cuja defesa não indiferente ou neutral, o processo penal se orienta –, o contraditório funciona, neste domínio, como instrumento de garantia desses direitos e corrige assimetrias processuais susceptíveis de pôr em causa o estatuto jurídico do arguido, moldado pelo sistema garantístico constitucionalmente exigido.

III - Ao arguido é, pois, assegurado o direito de audiência e da correlativa defesa, devendo ser-lhe dados os instrumentos processuais necessários a poder contrariar, ao longo do processo, as posições do Ministério Público e do assistente, de modo a assegurar o princípio do contraditório e da audição prévia, segundo o qual assiste ao arguido o direito de contestar e impugnar não só os factos iniciais já conhecidos mas quaisquer outros que surjam e que o tribunal pretenda levar em consideração, de modo a que não seja proferida contra ele qualquer decisão surpresa, por factos dos quais não teve oportunidade de se defender.

IV - Como afloramento do referido preceito constitucional, o art. 61º, al. b) do CPP, estatui que o arguido goza, em especial, do direito de ser ouvido pelo juiz sempre que ele deva tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte, não podendo a amplitude da exigência do exercício do direito de contraditório e da conformação concreta da garantia das possibilidades efectivas para a defesa e pronúncia do arguido deixar de corresponder proporcionalmente ao particular relevo e à importância do objecto de uma decisão que constitua autêntico «desenvolvimento» ou «prolongamento» da sentença.

V - O direito ao contraditório, na dimensão de direito à audição e à defesa, é uma componente estruturante também dos processos de contra-ordenação, tal como de quaisquer outros de natureza sancionatória, sendo assegurado pelo nº 10 daquele art. 32º da CRP e plasmado pelo legislador ordinário, que o densificou no artigo 50º do RGCO (DL 433/82, de 27/10).

VI - Resulta destes autos que não foi proporcionado ao arguido o exercício do direito de se pronunciar sobre a eventual possibilidade de revogação da suspensão da execução da sanção de inibição de conduzir (acessória de uma coima), designadamente notificando-o do teor do parecer do Ministério Público nesse sentido: essa grave omissão acarreta, sem sombra de dúvida, uma quebra de reciprocidade dialéctica entre o Ministério Público e o condenado, contrariando as garantias de defesa prosseguidas pelos citados princípios e normas, que, também neste domínio, se fazem sentir, e implica a ausência processual do arguido, abrangida na alínea c) do artigo 119º CPP, que torna insanavelmente nulo o despacho recorrido que revogou a suspensão da execução dessa sanção (art. 122º, nº 1 do CPP).
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

No âmbito do referenciado processo da Instância Local Criminal da Comarca de Viana do Castelo, por decisão proferida em 27/09/2017, foi revogada a suspensão da execução da sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 60 dias, aplicada ao arguido MC e determinado o seu consequente cumprimento.

Inconformado com a referida decisão, o arguido interpôs recurso – pedindo que dê sem efeito a revogação da suspensão, sendo-lhe permitido frequentar a formação na qual já se encontra inscrito e cujo preço já pagou e dessa forma cumprir na íntegra a sentença em que foi condenado –, tendo formulado na sua motivação as seguintes conclusões:

«A violação das regras fixadas para a suspensão apenas teriam sido indesculpavelmente violadas pelo arguido se o mesmo não tivesse diligenciado pelo seu cumprimento, podendo fazê-lo.
Não se verificou por parte do arguido um incumprimento culposo quanto à não frequência da formação, tal deveu-se a falta de informação e resposta que deveriam ser fornecidas pela ANSR e PRP, sendo que à data do despacho revogatório já o arguido se encontrava inscrito e havia pago a formação.
Ademais, sempre foi referido ao arguido que tais informações lhe iriam ser notificadas, à semelhança do que é prática na prestação de serviço a favor da comunidade que é a Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais que contacta o arguido.
Ademais, este entendimento vem plasmado no DR n.º 1-A/ 2016 de 30/5, na Lei n.º116/2015 de 28 de Agosto e no Código da Estrada (art.º 148. e 176.º), é a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR) quem notifica o condutor, até cinco dias úteis após a definitividade da decisão administrativa condenatória ou do trânsito em julgado da sentença, de que terá de frequentar formação.
Se o arguido pela prática de uma contra ordenação grave paga 180,00€ (120,00€ correspondentes à coima e 60,00€ excedentes cuja devolução foi requerida aquando do pedido de informação mas que à semelhança da informação solicitada nunca chegaram); tem de se inibir durante 12 meses de incorrer em qualquer contra-ordenação; diligencia, envia os documentos e paga 175,00€, diligenciou conforme supra exposto e dentro do prazo de suspensão pela frequência da acção de formação, tendo ficado demonstrada a sua vontade de cumprimento e se vê, agora, obrigado ao cumprimento da sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 60 dias, tal cumulação de sanções apresenta-se como algo desproporcionado, desnecessário ou excessivo em relação aos fins que se propõe obter face à perigosidade da conduta.
Tanto mais que se o arguido conduziu veículos automóveis durante o período de 12 meses sem que lhe seja conhecida a prática de qualquer contra-ordenação grave ou muito grave, há fundamento para concluir por um prognóstico favorável relativamente ao seu comportamento, sendo a ameaça da execução da sanção acessória de inibição de conduzir suficiente para a levar a adequar a sua condução às regras estradais em vigor.
Por outro lado, a satisfação das necessidades de prevenção geral, em particular a manutenção da confiança colectiva na validade da norma violada, não exige a execução da sanção acessória de inibição de conduzir.
Atenta a preocupação de realização efectiva e adequada do direito material e no entendimento de que será mais útil, à paz social e ao prestígio e dignidade que a administração da justiça coenvolve, impõe-se corrigir antes que perpetuar um erro juridicamente insustentável, injusto e despropositado para o arguido. Impunham-se com garantias de contraditório ao arguido, o suprimento do erro de julgamento mediante a prorrogação do prazo e a possibilidade do arguido frequentar a acção de formação uma vez feita e paga a inscrição e dessa forma permitir o cumprimento integral dos termos da suspensão.
Ainda que se considerasse haver culpa do arguido no atraso da inscrição e mesmo independentemente do incumprimento do arguido, sempre poderia o Tribunal verificando a intenção de cumprimento do arguido e o comportamento do arguido revelador de que as finalidades que levaram à suspensão se mostram igualmente cumpridas, e em ordem a esta cláusula rebus sic stantibus, prorrogar o prazo da suspensão de forma a permitir a frequência da acção de formação.
Se antes de ser proferida a decisão de revogação da suspensão da execução da pena de prisão não foram envidados todos os esforços necessários à audição presencial do arguido, entendemos que o despacho de revogação incorre na nulidade prevista no art.119.º, al. c), do Código de Processo Penal.
Solução diferente irá sujeitar o arguido a uma penalização excessiva pela prática da contra ordenação, em clara violação com um núcleo fundamental de um direito: o de que ninguém pode ser duplamente incriminado e punido pelos mesmos factos sob o império do mesmo ordenamento jurídico.
Atento o predito, o despacho proferido em 29 de Setembro de 2017 que revogou a suspensão da execução da sanção acessória de inibição de conduzir aplicada ao recorrente deve ser revisto.».

O recurso foi admitido por despacho proferido a fls. 124.

O Ministério Público apresentou resposta, pugnando pelo indeferimento do recurso, dizendo, em síntese, que o arguido revelou um manifesto desinteresse e falta de vontade pelo cumprimento da acção de formação que lhe foi imposta. A Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, sustentando a revogação do despacho recorrido por violação da exigência ínsita no art. 56º, do C. Penal, quanto à infracção culposa ou grosseira dos deveres impostos.

Cumprido o art. 417º, nº 2, do CPP e colhidos os vistos, cumpre decidir.

Atentas as conclusões extraídas da motivação do recurso interposto pelo arguido são suscitadas as questões (a conhecer pela ordem da sua prejudicialidade) de saber se:

a decisão de revogação da suspensão encontra-se ferida de nulidade resultante de falta de audição prévia do arguido e de garantia do exercício do contraditório;
houve um comportamento culposo do arguido ao não cumprir o dever que lhe foi imposto como condição de suspensão da pena acessória;
estão reunidos os pressupostos para a prorrogação do prazo da suspensão.
*
Importa apreciar as enunciadas questões e decidir para o que são pertinentes o teor da decisão recorrida e as ocorrências que se extraem da tramitação dos autos.

A) O teor da decisão recorrida (transcrição):

«Por decisão proferida em 02.02.2016, transitada em julgado em 12.02.2016, MC foi condenado pela prática da contra-ordenação prevista no art. 28.º, n.º 1, al. b), do C.E., na coima de 120 euros e na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 60 dias, suspendendo-se a sua execução por um período de 12 meses, condicionada à frequência de acção de formação no período da suspensão.
Decorrido o prazo de suspensão, constata-se que o arguido não incorreu na prática de qualquer contra-ordenação no prazo da suspensão, (cfr. RIC de fls. 72 a 74), mas não cumpriu a condição imposta, pois não frequentou a acção de formação no período da suspensão.
Ora, essa omissão é-lhe imputável, pois ocorreu devido a erros e atrasos na inscrição que deveria atempadamente efectuar, o que não fez.
Com efeito, o que resulta dos documentos juntos aos autos, nomeadamente de fls. 102 é que pelo menos a partir de 27.06.2016 o arguido teve conhecimento de que deveria contactar a Prevenção Rodoviária Portuguesa, o que apenas veio a fazer em 24 de Fevereiro de 2017, ou seja, extemporaneamente, e para um endereço de e-mail errado (fls. 81 e fls. 93).
Ora, durante este intervalo de tempo de quase 8 meses o arguido não contactou por qualquer outro meio a Prevenção Rodoviária Portuguesa e nada informou ao tribunal, não frequentando a acção de formação, sendo assim o incumprimento culposo.
Assim sendo, nos termos do art. 142.º, n.º 1, al. a) e nº 2 do C.E., revoga-se a suspensão da execução da sanção acessória em que MC foi condenado e, consequentemente, determina-se o cumprimento da sanção acessória de 60 dias de inibição de conduzir em que foi condenado, devendo entregar para o efeito a sua carta de condução no posto policial mais perto da sua área de residência ou na secretaria deste Juízo Local.
Notifique.
Comunique.».

B) As ocorrências processuais que se extraem da tramitação dos autos:

1) Por ofício datado de 23/02/2016 a Autoridade Nacional da Segurança Rodoviária foi notificada nos termos do art. 70º, nº 4, do Dec. Lei nº 433/82 de 27/09 da decisão de condenação do arguido;
2) Foram juntos aos autos o CRC e o RIC do arguido, dos quais se extrai que durante o período da suspensão da sanção acessória o mesmo não praticou qualquer infracção;
3) Em 4/04/2017 foi ordenada a notificação do arguido para, no prazo de dez dias, fazer prova que frequentou acção de formação como estava obrigado;
4) Por requerimento datado de 27/04/2017, o arguido veio solicitar uma prorrogação do prazo para frequência da acção de formação, informando, nomeadamente, que na sequência de contactos telefónicos estabelecidos com a ANSR e, após lhe ter sido recomendado que dirigisse por via e-mail as suas pretensões, escreveu um e-mail datado de 7/06/2016, a solicitar informação acerca dessa acção e escreveu um novo e-mail em 24/02/2017, tendo obtido uma resposta por e-mail de 7/04/2017. Em 12/04/2017 foi-lhe ainda comunicado que a inscrição não poderia ser considerada;
5) Com cópia do requerimento do arguido e dos documentos que o acompanhavam, foi notificada a ANSR e a PRP para dizerem o que tivessem por conveniente, vindo esta última entidade a informar que nunca recebeu qualquer inscrição do arguido, mostrando-se o endereço do e-mail incorrecto e a ANSR, como resposta, juntou um e-mail datado de 27/06/2016, através do qual informou o arguido que deveria contactar a PRP, que era a entidade responsável pelas acções de formação;
6) Nessa sequência, em 10/07/2017, foi emitido parecer pelo Ministério Público, pugnando pela revogação da suspensão da execução da sanção acessória que havia sido aplicada ao arguido;
7) De seguida, foi proferida a decisão posta em crise, sem que o arguido tivesse sido notificado para se pronunciar sobre a possibilidade de revogação dessa suspensão e, designadamente, do teor de tal parecer.
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Vem sendo entendido que o direito de defesa, num estado de direito, é um princípio natural de qualquer tipo de processo, ainda que de natureza meramente civil. Na verdade, mesmo no âmbito processual civil, sendo usual afirmar-se que a verificação de alguma nulidade processual deve ser objecto de arguição, reservando-se o recurso para o despacho que sobre a mesma incidir, tem sido observado que tal solução, ajustando-se à generalidade das nulidades processuais, revela-se, contudo, inadequada nas situações em que é o próprio juiz que, ao proferir uma decisão, omitiu uma formalidade de cumprimento obrigatório, como ocorre com a audiência prévia a fim de assegurar o contraditório: em tais situações a parte é confrontada com uma decisão, sem que lhe tenha sido proporcionada a oportunidade de exercer o contraditório e sem que tenha disposto da possibilidade de arguir qualquer nulidade processual por omissão de um acto legalmente devido, sendo a interposição de recurso o mecanismo apropriado para a sua impugnação. Em tais circunstâncias, deparamos com uma nulidade processual traduzida na omissão de um acto que a lei prescreve, mas que se comunica à própria decisão proferida, de modo que a reacção da parte com ela prejudicada passa pela interposição de recurso em cujos fundamentos se integre a arguição da nulidade da decisão por excesso de pronúncia (art. 615º, nº 1, al. d), in fine, do CPC) (1).
Por maioria de razão, é no campo dos procedimentos de cariz sancionatório, em geral – desde logo os penais, mas também os contraordenacionais –, que princípios comuns a ambos, como os da audiência e da correlativa defesa do arguido assumem uma relevância tal que o legislador constitucional considerou justificar-se dar-lhes especial acolhimento.
Na verdade, tais princípios são consagrados na segunda parte do nº 5 do art. 32º da Constituição da República, que assegura, o direito de audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afectados pela decisão, de forma a garantir-lhes uma influência efectiva no desenvolvimento do processo. Particularmente no que respeita ao arguido, estão em causa as «garantias de defesa» a que alude o nº 1 do mesmo art. 32º.
O direito a todas as garantias de defesa estabelecido neste nº 1 quer significar que ao arguido devem ser dados os instrumentos processuais necessários a poder contrariar, ao longo do processo, as posições do Ministério Público e do assistente.
Trata-se de assegurar o princípio do contraditório e da audição prévia, segundo o qual assiste ao arguido o direito de contestar e impugnar não só os factos iniciais já conhecidos mas quaisquer outros que surjam e que o tribunal pretenda levar em consideração, de modo a que não seja proferida qualquer decisão/surpresa contra o arguido, por factos dos quais não teve oportunidade de se defender.
Perante os direitos fundamentais, o processo penal mostra-se orientado, neste domínio, para a defesa, não indiferente ou neutral. O contraditório funciona, assim, como instrumento de garantia desses direitos e corrige assimetrias processuais susceptíveis de pôr em causa o estatuto jurídico do arguido moldado pelo sistema garantístico constitucionalmente exigido, como sistematicamente vem afirmando o Tribunal Constitucional.
Com efeito, a amplitude de exigência do exercício do direito de contraditório e a conformação concreta da garantia das possibilidades efectivas para a defesa e pronúncia do arguido, não poderão deixar de corresponder proporcionalmente ao particular relevo e à importância do objecto de uma decisão que constitui autêntico «desenvolvimento» ou «prolongamento» da sentença e de onde pode resultar o cumprimento de uma pena de prisão.
E, como afloramento do preceito constitucional anteriormente referido, estatui o art. 61º, al. b) do CPP, que o arguido goza, em especial, do direito de «Ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte», tradução legal das velhas máximas «audiatur et altera pars» e «nemo potest inauditu damnari».
Também nos processos de contra-ordenação, tal como em quaisquer outros processos sancionatórios, o nº 10 daquele art. 32º assegura ao arguido os direitos de audiência e defesa: «Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa». E, como não poderia deixar de ser, o legislador ordinário, no plano infraconstitucional, densificou este princípio constitucional também na área contraordenacional, plasmando-o no artigo 50º do RGCO (DL 433/82, de 27/10): «Não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre». Destarte, o direito ao contraditório, na dimensão de direito à audição e à defesa, é uma componente estruturante dos procedimentos de natureza sancionatória, como é o caso do contraordenacional (2).
Aliás, embora não exista uma estrita equiparação entre processo contraordenacional e processo penal, aquele é um dos processos sancionatórios que mais se aproxima deste, atenta a natureza dos ilícitos em causa, pelo que, como decorre dos arts. 32º e 41º do citado RGCO, «Em tudo o que não for contrário à presente lei aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contra-ordenações, as normas do Código Penal» e «Sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal» (3).
A norma citada na decisão recorrida (art. 142º, nº 1, al. a) e nº 2, do C.E.) explicita os fundamentos cujo preenchimento é exigido para a revogação da suspensão da execução da sanção acessória: «A suspensão da execução da sanção acessória é sempre revogada se, durante o respetivo período: a) O infrator, no caso de inibição de conduzir, cometer contraordenação grave ou muito grave, praticar factos sancionados com proibição ou inibição de conduzir, não cumprir os deveres impostos nos termos do n.º 3 do artigo anterior ou for ordenada a cassação do título de condução; b) O infrator, tratando-se de outra sanção acessória, cometer nova contraordenação ao mesmo diploma legal ou seus regulamentos, também cominada com sanção acessória.».
Por seu turno, o art. 495º, nº 2, do CPP, invocado pelo recorrente, prescreve que «O tribunal decide por despacho, depois de recolhida a prova, obtido parecer do Ministério Público e ouvido o condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão, bem como, sempre que necessário, ouvida a vítima, mesmo que não se tenha constituído assistente». Por isso, uma interpretação desta norma, à luz dos princípios constitucionais do contraditório e do processo leal e equitativo, pressupõe necessariamente a exigência de uma participação presencial e eficaz do arguido. Ao mesmo tempo, a eficácia dessa participação tem como condição indispensável que seja dado prévio conhecimento ao arguido dos argumentos invocados e dos meios de prova apresentados pelo Ministério Público.
Consequentemente, a jurisprudência dos tribunais superiores tem entendido que qualquer decisão que diga respeito ao arguido – o que inclui, naturalmente, a da revogação da suspensão da execução da pena – deve ser precedida da sua audição prévia e tem enquadrado a preterição dessa formalidade (art. 495º, nº 2, do CPP) como nulidade insanável, prevista no art. 119º, al. c) do CPP, e, por conseguinte, de conhecimento oficioso pelo tribunal enquanto a decisão que lhe sucedeu não transitar em julgado (4).
Contudo, ressalvado o devido respeito por opinião contrária, entendemos que este preceito não tem aplicação ao processo contra-ordenacional, não só em face do seu próprio teor, como da sua inserção sistemática (Título III, Capítulo II, da execução das penas privativas de liberdade, e dentro desta da execução da pena suspensa). Efectivamente, o normativo em causa respeita aos casos em que a suspensão da execução da pena de prisão é subordinada a: cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime (art. 51º do CP); imposição ao condenado de regras de conduta de conteúdo positivo, susceptíveis de fiscalização e destinadas a promover a reintegração do mesmo na sociedade (art. 52º do CP); acompanhamento de regime de prova, se o tribunal o considerar adequado a promover a reintegração do condenado na sociedade (art. 53º do CP).
A destrinça entre as diversas condicionantes da suspensão releva para os efeitos, mais ou menos gravosos, que advêm da respectiva não verificação posterior. Assim, pode/deve o tribunal adoptar qualquer das medidas previstas nas alíneas a) a d) do art. 55º do CP, se durante o período da suspensão o condenado, culposamente, deixar de cumprir qualquer dos deveres ou regras de conduta impostos, ou não corresponder ao plano de reinserção, enquanto, nos termos do subsequente art. 56º, a suspensão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado: a) infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos no plano de reinserção social; ou b) cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.
Ora, no caso vertente, nada disso está em causa. Do que aqui se trata é, simplesmente, da suspensão da execução de uma sanção acessória (a uma coima) condicionada à frequência de uma acção de formação, devidamente regulamentada, que não exige a verificação das condicionantes da suspensão da execução de uma pena de prisão e, designadamente, de qualquer interação por parte do técnico que tenha apoiado e fiscalizado o seu cumprimento, e daí que não haja a necessidade de audição presencial do arguido e do técnico, diligência que até se estranharia neste caso.
Diferente questão é a de saber se foi proporcionado ao arguido o exercício do direito de se pronunciar sobre a eventual possibilidade de revogação da suspensão da execução de tal sanção acessória, assim efectivando as acima aludidas garantias de defesa que, também neste domínio, se fazem sentir. Ou se, nas palavras do citado art. 61º, al. b) do CPP, foi assegurada ao arguido a sua audição antes de o Tribunal tomar a concreta decisão que pessoalmente o afectaria.
Ora, resulta à saciedade que não foi proporcionada ocasião ao recorrente, como condenado, para se pronunciar sobre a possibilidade de revogação da suspensão da execução da sanção acessória, que lhe havia sido imposta por decisão transitada em julgado, designadamente, do teor do parecer do Ministério Público nesse sentido, o que se traduz numa omissão grave, por acarretar, sem sombra de dúvidas, uma quebra de reciprocidade dialéctica entre o Ministério Público e o condenado, contrariamente ao que impõem os citados princípios e normas.
A circunstância de a decisão final no incidente ter sido proferida sem a necessária notificação e sem que tivesse sido concedido prazo ao arguido para se pronunciar, em último lugar, sobre o parecer do Ministério Público significa a ausência processual do arguido, abrangida na alínea c) do artigo 119º CPP.
Verificando-se, assim, que a revogação dessa suspensão foi decretada sem o arguido ter tido a oportunidade de apresentar os seus argumentos e requerer a produção de meios de prova, deve concluir-se que foram postergados os direitos de defesa daquele, na dimensão dos princípios do contraditório e da audição do mesmo, a que se vem aludindo.
Essa omissão constitui uma nulidade insanável que torna também insanavelmente nulo o despacho recorrido que revogou a suspensão da execução da pena (art. 122º, nº 1 do CPP).

Termos em que, embora com diferente fundamentação, se conclui pela procedência do recurso do arguido.

Decisão:

Pelos fundamentos expostos, concedendo provimento ao recurso, anula-se o despacho recorrido que deve ser substituído por outro no qual se determine a omitida notificação do recorrente para se pronunciar sobre o parecer do Ministério Público.
Guimarães, 8/01/2018

Ausenda Gonçalves
Fátima Furtado

1- Foi esta a posição assumida por M. Teixeira de Sousa em comentário ao Ac. da RE, de 10-4-2014 (www.dgsi.pt), observando que ainda que a falta de audição prévia constitua uma nulidade processual, por violação do princípio do contraditório, essa «nulidade processual é consumida por uma nulidade da sentença por excesso de pronúncia (art. 615º, nº 1, al. d), do NCPC), dado que sem a prévia audição das partes o tribunal não pode conhecer do fundamento que utilizou na sua decisão» (em blogippc.blogspot.pt, escrito datado de 10-5-14). O mesmo processualista reiterou essa solução em comentário ao Ac. da RP, de 2-3-2015 (www.dgsi.pt), concluindo que «o proferimento de uma decisão-surpresa é um vício que afecta esta decisão (e não um vício de procedimento e, portanto, no sentido mais comum da expressão, uma nulidade processual)», pois que, até esse momento, «não há nenhum vício processual contra o qual a parte possa reagir», e «o vício que afecta uma decisão-surpresa é um vício que respeita ao conteúdo da decisão proferida; a decisão só é surpreendente porque se pronuncia sobre algo de que não podia conhecer antes de ouvir as partes sobre a matéria» (em blogippc.blogspot.pt, em escrito datado de 23-3-15). No mesmo sentido, Amâncio Ferreira (“Manual dos Recursos em Processo Civil”, 8ª ed., p. 52) e Abrantes Geraldes (“Recursos no NCPC”, 3ª ed., p. 25) e foi essa também a solução adoptada no Ac. do STJ, de 17-3-2016 (proc. 1129/09.5TBVRL-H.G1.S1), onde se referiu que «a decisão-surpresa alegada e verificada quanto ao acórdão da Relação constitui um vício intrínseco da decisão e não do iter procedimental, acarretando a nulidade do acórdão que assentou a sua decisão em dois fundamentos que não foram previamente considerados pela recorrente, que foram decisivos para a decisão e sobre os quais, antes, deveriam ter sido ouvidos recorrente e recorridos».
2- V., entre outros, os Acs do TC nºs 265/01 de 19-06-2001 e 99/09, de 03/02/2009, deste se extraindo: «Dos direitos de audição e de defesa consagrados no art. 32.º, n.º 10, da CRP, e densificados no art. 50.º do RGCO, extrai-se com toda a certeza que qualquer processo de contra-ordenação deve assegurar ao visado o contraditório prévio à decisão» (em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20090099.html).
3- Sobre este tema, expende Inês Ferreira Leite [“A autonomização do direito sancionatório administrativo, em especial, o direito contraordenacional” in E-BOOK (CEJ) SETEMBRO 2015)]: (…) porque se trata de uma sanção punitiva, existem certas garantias fundamentais que vão para lá das garantias do administrado. Porque se trata de sanções punitivas que podem alcançar uma gravidade considerável – mesmo que não se pense no impacto económico da coima, basta saber que existem sanções acessórias tão ou mais graves do que as penas acessórias previstas no Código Penal – as garantias do processo contraordenacional (na fase administrativa e no tribunal) não podem ser muito distantes das previstas para o processo penal. A natureza híbrida do IMOS é algo que o carateriza, independentemente do regime legal que esteja ocasionalmente em vigor, e que vincula quer o legislador, quer o julgador a ponderarem – em paralelo – as aspetos essenciais do Direito Administrativo e as garantias fundamentais do Direito Punitivo Público, máxime, do Direito Penal e Processual Penal.».
4- V. Acs. da RL de 9/7/2014, de 1/3/2005 (CJ, 2º/123) e de 10/2/2004, da RE de 30/9/2014 e de 18/1/2005 e da RP de 4/3/2009. O citado Ac. da RE de 30/9/2014 acrescentou: «Tanto do ponto de vista gramatical, como sistemático e teleológico, não há nenhuma razão para que a referência do art. 119.º do CPP a qualquer fase do procedimento deva ser entendida como reportando-se unicamente às fases preliminares (inquérito e instrução) e à fase de julgamento do processo penal. Antes, abrange igualmente as nulidades insanáveis verificadas na fase de execução do processo penal, nomeadamente as respeitantes às normas do CPP que disciplinam a execução das penas não privativas da liberdade.». Realmente, não seria compaginável com os invocados princípios constitucionais o entendimento segundo a qual a falta de garantia do contraditório constitui uma mera irregularidade processual, sanável se não tiver sido suscitada pelo arguido no prazo de três dias após a notificação do despacho.