Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2223/13.0TBBRG-G.G1
Relator: ALCIDES RODRIGUES
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
ENCERRAMENTO DO PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
CESSÃO DO RENDIMENTO DISPONÍVEL
CONTAGEM DO PERÍODO DA CESSÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
“Só se deve declarar o encerramento do processo de insolvência no despacho liminar de deferimento do pedido de exoneração do passivo restante, se inexistirem bens a liquidar; existindo património dos insolventes a liquidar e tendo sido requerida a exoneração do passivo restante, o encerramento do processo de insolvência terá lugar após a realização do rateio final (art. 230.º, n.º 1, al. a) do CIRE), data à qual se reporta o início do período de cessão (art. 239.º, 2, al. a) do CIRE).”
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

No Juízo Local Cível de Braga – Juiz 4 - do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, nos autos de insolvência em que foi declarada a insolvência de Manuel e Paula, estes apresentaram requerimento com o seguinte teor:

«(…) foi proferido Despacho Inicial Exoneração de Passivo Restante e Nomeação de Fiduciário em 14-12-2012, e processo foi encerrado em 23-03-2015.
Atento o lapso de tempo verificado, vêm requerer junto aos autos, que o encerramento do processo produza efeitos desde a data do despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante, conforme expresso no n.º 1, aI. e) do art. 230.° do ClRE, até porque os Insolventes são de todo alheios ao atraso na liquidação do ativo.
O que se requer e agradece.
(…)».
*
Datado de 16 de novembro de 2017, a Mmª Juiz a quo proferiu o seguinte despacho:
«Fls. 526 e ss.:
Indefiro o requerido posto que é meu entendimento, ao arrimo dos inúmeros Acórdão já proferidos a tal respeito (vide, entre outros, o Ac. da RP de 24/1/2017, processo n." 870/14.5TBMAI-E.Pl, e Ac. da RE de 9/2/2017, processo n." 2698/10.2TBSTB.El), que, tendo sido ordenado que se procedesse a liquidação dos bens existentes, o período de cessão só começou a contar após a data do rateio final (cfr. o artigo 230.°, n." 1, alínea a), do CIRE), momento em que a lei prevê o encerramento do processo.
Assim, no caso dos autos, tendo os autos prosseguido com a liquidação do activo, não pode considerar-se iniciado o período da cessão de rendimentos antes do encerramento do processo de insolvência ocorrido em 20/3/2015 (vide fls. 365).
Braga, ds
(…)»
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Inconformados com esta decisão, os insolventes, Manuel e Paula, dela interpuseram recurso e formularam, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões:

«I. O despacho ora recorrido, violou o disposto no artigo 230.0 n.º 1, alínea e) do CIRE, ao decidir que, o período de cessão de rendimentos apenas se iniciou em 20/03/2015, data em que se dera por encerrado o processo por via de liquidação total do ativo da massa insolvente.
II. Contudo, com a entrada em vigor da Lei nº 16/2012, de 20- 04, que alterou o CIRE, a alínea e) do artigo 230.° pretendeu imprimir uma maior celeridade ao processo e que o período de cessão se iniciasse ainda com ativos não liquidados.
III. E, este argumento interpretativo bastaria para a improcedência do despacho proferido pelo Tribunal a quo.
IV. Em bom rigor e honra da verdade, o presente processo perdura no tempo por factos não imputáveis aos próprios Devedores, ou seja, os insolventes, seja por atuação ou omissão, não influenciaram na demora do presente processo.
V. Pelo que se entende que, a criação dum normativo como a alínea e) do n.º 1 do artigo 230.° do CIRE, visou precaver situações, como os de insolvência, se mantenham em tribunal por 9, 10 ou mais anos, como acontecerá no caso em apreço, se o recurso não merecer provimento.
VI. A alínea e) do art.° 230.° do CIRE, atenta a natureza processual, é aplicável aos presentes autos, já que o Despacho Inicial de Exoneração do Passivo Restante data de 13-12-2012.
VII. A introdução da alínea e) do art.° 230.° do ClRE na senda do pensamento do legislador, permite encerrar o processo de insolvência quando for requerida a exoneração do passivo por pessoa singular e exista património por liquidar.
VIII. Razão pela qual, à data do despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante, deveria ter começado a contar o período de cessão de rendimentos.
IX. O art.° 2.° da Lei n." 16/2012, de 20 de abril, aditou ao art. 230.°, n.º 1 do CIRE a alínea e), cujo teor é o seguinte: "quando este ainda não haja sido declarado, no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante referido na alínea b) do artigo 237.°.
X. Daí resulta que: prosseguindo o processo após a declaração de insolvência, o juiz declara o seu encerramento quando este ainda não haja sido declarado, no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante referido na alínea b) do artigo 237.°.
XI. Em 13-12-2012, foi proferido nestes autos despacho a deferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, determinando­-se que no período de cessão (cinco anos subsequentes ao encerramento do processo) o rendimento disponível que os devedores viessem a auferir seria cedido ao fiduciário.
XII. Não foi declarado o encerramento do processo de insolvência, somente o foi, em 23-03-2015.
XIII. O art.° 6.° da Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, prescreve que entra em vigor 30 dias após a data da sua publicação, pelo que entrou em vigor em 21 de maio de 2012.
XIV. Daqui se extrai que o despacho que deferiu liminarmente a exoneração do passivo restante foi proferido depois desta lei ter entrado em vigor.
XV. A alínea e) do n.º 1 do art.° 230.° do CIRE, introduzida pelo art.° 2.° da Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, acrescentou um quinto fundamento para o encerramento do processo de insolvência. (Leitão, Luís, Direito da Insolvência, 4.a edição, Edições Almedina, SA, Coimbra, maio 2012, p, 303.)
XVI. Esta norma legal deve ser interpretada em conjugação com o prescrito no art. 237.° al, b) do CIRE, nos termos da qual a concessão efetiva da exoneração do passivo restante pressupõe que o juiz profira despacho declarando que a exoneração será concedida uma vez observadas pelo devedor as condições previstas no art.° 239.° durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado despacho inicial.
XVII. Da conjugação dos artigos 237.° alíneas b) e d), 239.° e 244.° do CIRE, resulta que este despacho inicial tem em vista fixar as condições que devem ser observadas pelos devedores para ser proferido, no termo do prazo da cessão, o despacho definitivo sobre a exoneração ou não do passivo. (Fernandes, Luís e Labareda, João, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, reimpressão de Agosto, Quid Iuris, Lisboa, 2009, p. 787).
XVIII. Durante o prazo de cinco anos em que o rendimento disponível do devedor é cedido a um fiduciário, o processo de insolvência fica encerrado.
XIX. A decisão judicial a declarar o encerramento do processo de insolvência é um ato jurisdicional a praticar no processo.
XX. Assim, tendo a alínea e) do n." 1 do art.° 230.0 do CIRE, introduzida pelo art.° 2.° da Lei n." 16/2012, de 20 de Abril, acrescentado um quinto fundamento para o encerramento do processo de insolvência, deve este fundamento ser apreciado pelo juiz, em processo pendente para este efeito.
XXI. Sufragamos por isso que, o despacho recorrido deve ser substituído, para efeitos de decidir sobre o período de cessão, com base no fundamento previsto no art.° 230.° n." 1 al, e) do ClRE.
XXII. Uma decisão contrária, perfilha solução que viola o princípio da igualdade.
XXIII. Um devedor sem bens para liquidar, quando se determine a insuficiência da massa nos termos do art. 232.° do CIRE, a data do início do período de cessão poderá começar a contar da data do despacho inicial.
XXIV. Um devedor com bens para liquidar, quando se determina que se proceda à liquidação dos bens existentes, o período de cessão iniciará a contar da data do rateio final (cfr. o artigo 230.° n." 1, al, a) do CIRE), momento em que a lei prevê o encerramento do processo, e esse encerramento, poderá alongar-se por anos.
XXV. Ademais, não são raros os casos em que, a liquidação se arrasta por anos, no caso dos autos o foi por 3 anos e, sem que seja declarado o encerramento, não haveria possibilidade de iniciar o período de cessão.
XXVI. O Devedor sem bens para liquidar, fica em "vantagem" temporal, relativamente a um devedor com bens para liquidar, violando o princípio de igualdade.
XXVII. O princípio da igualdade, considera não poder haver tratamento desigual, e tratamento desigual resulta da consideração decisiva de um fator - a existência de ativo e, por isso imprestável para suportar a distinção entre devedores insolventes no acesso temporal ao encerramento do processo, mais curto ou mais longo, quanto à cessão de rendimentos.
XXVIII. Desta forma, na interpretação/aplicação seguida de tal normativo, o mesmo é violado, por não ter sido interpretado corretamente, de acordo e em conformidade com os princípios de coerência e equidade.
XXIX. No despacho ora recorrido, considera-se que é necessário um ato formal de encerramento do processo para o início do período da cessão, sendo que, só com a prolação do despacho de encerramento é que se inicia, jurídica e materialmente, a cedência do rendimento disponível do devedor que for fixado no despacho liminar.
XXX. Porém considera-se que, o período de cessão e a referida cedência do rendimento disponível pode ocorrer independentemente da prolação do despacho de encerramento, após o despacho inicial, porque em boa verdade se existissem rendimentos que excedessem o mínimo essencial à subsistência destes e do seu agregado familiar, sempre os insolventes teriam de ter entregue ao fiduciário, tais valores, desde o despacho inicial.
XXXI. ln caso, tal apenas não ocorrera, porque os insolventes se encontravam desempregados à data do despacho inicial sendo que, se não se encontrassem nessa condição teriam de ceder os rendimentos excedentes ao Exmo. senhor Fiduciário.
XXXII. E como tal, devendo considerar-se que o período de cessão se iniciara em 14/12/2012, e sabendo que esse dito período de cessão nunca poderá exceder os 5 anos fixados na lei, então só terá de ser proferido despacho final de exoneração do passivo restante nos 10 dias subsequentes à data de 14/12/2017.
XXXIII. Uma vez que é razoável uma interpretação extensiva do disposto no art. 239.°, n.º 2 do CIRE, que permita considerar que o período de cessão (de 5 anos) e a referida cedência do rendimento disponível pode legalmente e de facto ocorrer, independentemente da prolação do despacho de encerramento, após o despacho de admissão liminar do pedido de exoneração do passivo.
XXXIV. Sendo a fonte da cessão a lei (ainda que na dependência de despacho judicial) e sabendo-se que a cessão se dá, desde o despacho inicial e respeita a bens futuros, no caso em análise, os insolventes, apenas não cederam qualquer valor porque se encontravam desempregados à data do despacho inicial, tendo alterado posteriormente o insolvente, Manuel a sua situação profissional, porém nunca obtendo rendimentos que pudessem ser objeto de cessão.
XXXV. Desta feita, constata-se que os insolventes interiorizaram os deveres que para eles decorrem, durante cinco anos, da admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante e que desde essa data têm vindo a cumprir estes deveres escrupulosamente.
XXXVI. Neste contexto, e sob pena de violação injustificada e injusta das legítimas expectativas dos insolventes, deverá considerar-se que o período de cessão de rendimento se iniciou em Dezembro de 2012 e terminará em Dezembro de 2017.
XXXVII. E, este argumento interpretativo bastaria para a improcedência do despacho proferido pelo Tribunal a quo,
XXXVIII. Assim, perante o exposto, é patente e notória a ilegalidade da decisão proferida pelo tribunal a quo.

NESTES TERMOS
E nos demais de Direito e com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve o despacho de que agora se recorre e atenta a conjugação das normas acima aduzidas nestas alegações, ser revogado.
E proferido douto Acórdão no sentido de ser considerado o período de cessão de rendimento de Dezembro de 2012 a Dezembro de 2017.
Porém, como sempre, Vossas Excelências farão a sempre acostumada,
JUSTIÇA».
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Não consta que tenham sido apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido por despacho de 15 de janeiro de 2018 como de apelação, a subir imediatamente, em separado e com efeito devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II. Objecto do recurso

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, a única questão que se coloca à apreciação deste tribunal consiste em saber quando se iniciou o período da cessão do rendimento disponível previsto no artigo 239.º, n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante, CIRE), aprovado pelo Dec. Lei n.º 53/2004, de 18/03.
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III. Fundamentação de facto.

Os factos materiais relevantes para a decisão do presente recurso são os que decorrem do relatório supra – que por brevidade aqui se dão por integralmente reproduzidos –, a que acrescem os seguintes:

1. Os ora recorrentes, Manuel e Paula, apresentaram-se à insolvência, requerendo a concessão do benefício da exoneração do passivo restante, ao abrigo do disposto no art. 236.º, n.º 2 e ss. CIRE.
2. Por sentença proferida em 14.09.2012 e transitada em julgado em 03/10/2012, foi declarada a insolvência dos requerentes.
3. Na assembleia de credores para apreciação do relatório, realizada em 7/11/2012, considerando a votação da assembleia de credores, foi determinado o prosseguimento do processo para liquidação.
4. Em 13/12/2012, foi proferido despacho a:

− Admitir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante apresentado pelos devedores;
− Determinar que, por ora, os devedores não entregassem ao fiduciário qualquer quantia;
− Determinar que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, os devedores fiquem sujeitos às obrigações previstas no art. 239º nº 4 do Cód. da Insolvência e da Recuperação de Empresas;
− Nomear fiduciário o administrador da insolvência.
5. O encerramento do processo de insolvência, nos termos do art. 230º, n.º 1, al. a) do CIRE, foi declarado por despacho datado de 20-03-2015.
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IV. Fundamentação de direito

1.1 Sustentam os apelantes/insolventes que a contagem do período de cessão do rendimento disponível deverá iniciar-se não a partir da data do encerramento do processo de insolvência, mas, sim, retroagir à data da prolação do despacho inicial (positivo) do incidente de exoneração do passivo restante, como estatui a al. e) do n.º 1 do artigo 230.º do CIRE.
No dizer dos apelantes, a introdução do citado normativo permite encerrar o processo de insolvência quando for requerida a exoneração do passivo por pessoa singular e exista património por liquidar, sendo razoável uma interpretação extensiva do disposto no art. 239.°, n.º 2 do CIRE, que permita considerar que o período de cessão (de 5 anos) e a referida cedência do rendimento disponível pode legalmente e de facto ocorrer, independentemente da prolação do despacho de encerramento, após o despacho de admissão liminar do pedido de exoneração do passivo.
Diversamente, a decisão recorrida, estribando-se em jurisprudência que citou, perfilhou o entendimento de que, tendo sido ordenada a liquidação dos bens existentes, a contagem do período de cinco anos da cessão do rendimento disponível se iniciou após a data da realização do rateio final (cfr. o art. 230.°, n.º 1, al. a), do CIRE), momento em que a lei prevê o encerramento do processo de insolvência.
1.2. O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores [art.º 1º, n.º 1, 1ª parte do CIRE].
Segundo o n.º 1 do art. 230º do CIRE, prosseguindo o processo após a declaração de insolvência, o juiz declara o seu encerramento: a) Após a realização do rateio final, sem prejuízo do disposto no n.º 6 do artigo 239º; b) Após o trânsito em julgado da decisão de homologação do plano de insolvência, se a isso não se opuser o conteúdo deste; c) A pedido do devedor, quando este deixe de se encontrar em situação de insolvência ou todos os credores prestem o seu consentimento; d) Quando o administrador da insolvência constate a insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente; e) Quando este ainda não haja sido declarado, no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante referido na alínea b) do artigo 237º.
Estipula o art. 235º do CIRE que “se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo.”.
Inexistindo motivos para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, o juiz profere despacho inicial, na assembleia de apreciação do relatório, ou nos 10 dias subsequentes a esta ou ao decurso dos prazos previstos no n.º 4 do artigo 236.º (1) (art. 239º, n.º 1 do CIRE).
O despacho inicial de exoneração do passivo restante «determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, (…) designado pelo período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, (…) designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência (…)» - art.º 239º, n.º 2 do CIRE.
O aludido despacho inicial de exoneração do passivo restante não representa qualquer decisão relativamente à concessão da exoneração do passivo restante, representando apenas a passagem a uma nova fase processual, denominada período de cessão, onde o devedor é sujeito a determinadas exigências durante cinco anos, findos os quais o juiz tomará decisão final sobre a concessão ou não da exoneração (art. 244º do CIRE) (2).
Prevê o n.º 4 do citado art. 239º do CIRE que, durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a: a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado; b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto; c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão; d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego; e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores (n.º 4).
Sendo interposto recurso do despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante a realização do rateio final só determina o encerramento do processo depois de transitada em julgado a decisão (n.º 6 do art. 239º do CIRE).
Durante o período da cessão o devedor assume, entre outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível ao fiduciário (art.º 239º, n.º 4), para os fins previstos no art. 241º, entre os quais, principalmente, a distribuição do remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência [n.º 1, al. d)]; ou seja, durante o período da cessão o rendimento disponível que o insolvente venha a auferir é afetado ao pagamento ao pagamento das dívidas que restarem após a liquidação do ativo, sendo cedido ao fiduciário.
Durante esse período da cessão o devedor vai beneficiar de proteção perante os credores da insolvência, na medida em que estes não podem executar bens do devedor para satisfazerem créditos sobre a insolvência (art. 242º, n.º 1 do CIRE).
Decorrido o período da cessão, proferir-se-á decisão sobre a concessão ou não da exoneração e, sendo esta concedida, ocorrerá a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que for concedida, sem exceção dos que não tenham sido reclamados e verificados (cfr. arts. 241.º n.º 1 e 245.º do CIRE), ressalvando os créditos enunciados no n.º 2 do art. 245º do CIRE.
Extinguindo-se os créditos dos credores no fim do período de cessão, é perfeitamente justificado o sacrifício suplementar de cinco anos que o insolvente terá de fazer, para obter a consequente libertação definitiva do passivo.
1.3. Antes propriamente de analisarmos a questão concreta objeto da apelação importa tecer umas breves considerações sobre o instituto da exoneração do passivo restante.
O regime da exoneração do passivo restante, instituído nos arts. 235º a 248º do CIRE, específico da insolvência das pessoas singulares, é um instituto novo, ‘tributário da ideia de fresh start’, sendo o seu objectivo final a extinção das dívidas e a libertação do devedor, para que, «aprendida a lição», este não fique inibido de começar de novo e de, eventualmente, retomar o exercício da sua actividade económica (3).
Nas palavras de Assunção Cristas (4), «apurados os créditos da insolvência e uma vez esgotada a massa insolvente sem que tenha conseguido satisfazer totalmente ou a totalidade dos credores, o devedor pessoa singular fica vinculado ao pagamento aos credores durante cinco anos, findos os quais, cumpridos certos requisitos, pode ser exonerado pelo juiz do cumprimento do remanescente. O objetivo é que o devedor pessoa singular não fique amarrado a essas obrigações».

1.4. Como preliminar, importa ter como assente duas regras de direito transitório:

- A alínea e) do n.º 1 do art.º 230.º do CIRE, introduzida pelo art. 2.º da Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, é aplicável aos processos pendentes que ainda não tenham sido declarados encerrados (5) (como é o caso dos autos).
– O n.º 7 do art. 233º do CIRE, introduzido pelo Dec. Lei n.º 79/2017, de 30 de junho, que alterou o Código das Sociedades Comerciais e o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, não é (pelo menos diretamente) aplicável à situação dos autos, porquanto à data da sua entrada em vigor já havia sido declarado o encerramento do processo de insolvência (cfr. art. 6º, n.º 6 do citado diploma legal).
1.5. A resposta à questão objecto do recurso tem sido praticamente uniforme na jurisprudência dos Tribunais superiores, no sentido de que o período da cessão só se inicia quando o processo de insolvência esteja encerrado, seja por liquidação integral da massa, seja por insuficiência desta ou por outra causa (art.º 230º do CIRE) (6).
E, no caso concreto, adiantando desde já a nossa posição não vemos razões para alterar esta jurisprudência.
Explicitando.
A construção jurídica que vem ensaiada pelos insolventes no recurso não se mostra suportada na redação que apresenta o n.º 2 do artigo 239.º do CIRE, pois dele decorre que o termo inicial do período de cessão do rendimento disponível do insolvente devedor se verifica aquando do encerramento do processo de insolvência. É este acto processual que determina o início da contagem do prazo fixo de cinco anos estabelecido para o período da cessão.
Igualmente, não se mostra alicerçada na letra da alínea b) do artigo 237.º do CIRE, pois este mais uma vez baliza o período da cessão aos “cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência”.
É, pois, tal despacho de encerramento do processo de insolvência que vai marcar o termo inicial do período de cinco anos para a cessão dos rendimentos que o tribunal dela não excecione nos termos do n.º 3 artigo 239.º do CIRE.
Mas o encerramento do processo pode ocorrer em momentos diferentes, previstos no artigo 230°, consoante as vicissitudes do mesmo.
Vejamos, no caso, as implicações decorrentes do estatuído na alínea e) do n.º 1 do art. 230.º do CIRE – segundo a qual “[p]rosseguindo o processo após a declaração de insolvência, o juiz declara o seu encerramento”: “e) Quando este ainda não haja sido declarado, no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante referido na alínea b) do artigo 237.º” –, na medida em que os insolventes defendem que, quando for requerida a exoneração do passivo por pessoa singular e mesmo existindo património por liquidar, o citado normativo permite encerrar o processo de insolvência, pelo que o início da contagem do período de cessão de rendimentos deveria reportar-se à data do despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante.
Resulta do normativo citado (art. 230º, n.º 1, alínea e), do CIRE), ser o próprio legislador que, implicitamente, admite e reconhece como traduzindo ocorrência processual regular (não anómala) a possibilidade de, em sede de prolação do despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante, não declarar o juiz titular dos autos o encerramento do processo. Ou seja, implicitamente, é o próprio legislador que entende existirem circunstâncias que obstam a que, no despacho liminar do referido incidente a que alude a alínea b) do art. 237º, do CIRE, seja declarado o encerramento do processo.
De igual modo, da alínea a), do n.º 1, do art. 230º, do CIRE [segundo a qual, prosseguindo o processo após a declaração de insolvência, o juiz declara o seu encerramento “após a realização do rateio final, sem prejuízo do disposto no n.º 6 do artigo 239º”], por interpretação “a contrario” podemos concluir que até ao encerramento da liquidação e rateio final não deve o juiz declarar o encerramento do processo (7).

Neste sentido, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, no âmbito da anotação à alínea e) do n.º 1 do art. 230º do CIRE (8), consideram que, “tendo sido requerida a exoneração do passivo restante, duas situações podem ocorrer: ou há património actual que deve ser liquidado, ou não há. Neste último caso, tanto pode suceder que a inexistência já seja conhecida à data do proferimento do despacho inicial, como não.
Ora, se houver património a liquidar, não se vê como deva ou possa o despacho inicial declarar o encerramento do processo de insolvência, o qual só terá lugar após a concretização da liquidação e rateio.
Porém, não havendo bens, o processo de insolvência, qua tale, não faz mais sentido (…).
Pois bem, o que parece resultar da atual al. e) do n.º 1, é que a dedução e prosseguimento do incidente da exoneração não obsta ao encerramento do processo de insolvência de que depende, replicando-se – embora por meio distinto –, uma situação substancialmente equivalente à que emerge do art. 39º (…).
Então, se à data do despacho inicial do incidente de exoneração há já elementos que revelem a inexistência de bens, é nele que o tribunal, por iniciativa própria, deve declarar o encerramento.
Mas se, acaso, omite essa declaração, deve então lançar mão de um despacho autónomo para o efeito, o qual não fica dependente de requerimento do devedor nem do administrador. E assim parece dever ser também quando só após o despacho inicial se vem a revelar a inexistência de activo a liquidar, competindo ao juiz decidir logo que tenha conhecimento da situação”.
Em sentido similar, Alexandre de Soveral Martins (9) explicita que a letra do preceito [art. 230º n.º 1, al. e) do CIRE] “não diz tudo e uma leitura apressada conduziria a soluções indesejáveis. Vejamos porquê.
O despacho inicial é proferido na assembleia de apreciação do relatório ou nos 10 dias subsequentes (art. 239º, 1). Se nesse despacho inicial o juiz decretasse sempre o encerramento do processo quando nessa altura o processo de insolvência ainda não estivesse encerrado, o devedor com bens sairia profundamente beneficiado. Com efeito, o início da venda dos bens só tem lugar, em regra, após a assembleia de apreciação do relatório (art. 158º, 1). Mas nessa mesma assembleia ou nos 10 dias subsequentes é proferido o despacho inicial, que declararia encerrado o processo. Não haveria assim tempo para proceder à venda de bens do devedor.
Daí que a existência de bens na massa para liquidar impeça que o Juiz decrete o encerramento no despacho inicial”, razão por que inevitável é o art. 230º, n.º 1, alínea e) do CIRE, dever “ser objecto de interpretação restritiva”, tudo apontando que tenha ele surgido para “situações em que se verifica a insuficiência e bens do insolvente e este beneficia do deferimento do pagamento das custas”.
Acrescenta o citado autor que, “[s]e não há insuficiência da massa e há liquidação, o encerramento do processo de insolvência terá lugar após a realização do rateio final (art. 230, 1, a)). Não faz então qualquer sentido aplicar nesta hipótese o art. 230º, 1, e) (…).
Havendo bens para liquidar, se o despacho inicial do incidente de exoneração declara o encerramento do processo (art. 230º, 1, e), fica impossibilitada a liquidação porque se produzem os efeitos do encerramento (art. 233º)”.
(…)
Importa ter presente que, de acordo com o artigo 182.º, n.º 1, CIRE, a distribuição e o rateio final só podem ter lugar depois de encerrada a liquidação da massa insolvente, donde para se proceder ao pagamento aos vários credores é necessários conhecer o produto da liquidação.
Neste sentido, e para além de Catarina Serra (10), veja-se Luís Manuel Teles de Menezes Leitão (11), o qual refere: “O encerramento do processo de insolvência constitui a fase final do mesmo, pelo que logicamente devera ocorrer uma vez realizados os fins previstos nesse mesmo processo, a que se refere o art. 1º, ou seja, a liquidação do património do devedor e a repartição do respectivo produto pelos seus credores (cfr. Arº 230º, nº1, a)), ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, cuja decisão de homologação tenha transitado em julgado, se a isso na se opuser o conteúdo deste
Por conseguinte, a contagem do prazo fixo de cinco anos, previsto para a duração da cessão do rendimento disponível do devedor, não tem como referência a data em que é proferido o despacho liminar, mas sim a data de encerramento do processo de insolvência, que poucas vezes coincide com a data em que é proferido o despacho inicial. O período de cessão inicia a sua contagem na data do despacho inicial apenas quando se determina a insuficiência da massa, nos termos dos artigos 232.º e 230.º, n.º 1, al. e) do CIRE.
Tudo ponderado, afigura-se-nos que por referência aos elementos histórico, atualista, sistemático teleológico e até literal, a alínea e), do n.º 1, do artº. 230º, do CIRE deverá ser interpretada no sentido de que, apenas nos casos em que inexiste activo a liquidar, deve o processo de insolvência ser encerrado, proferido que seja o despacho liminar sobre o pedido de exoneração do passivo restante. Com efeito, não faz qualquer sentido uma declaração de encerramento do processo, com a inevitável cessação das atribuições do administrador da insolvência (art. 233º, n.º 1, al. b), do CIRE), num momento em que persiste ainda por realizar a proeminente função do administrador de insolvência, qual seja, a de promover e diligenciar pela alienação dos bens que integram a massa insolvente (arts. 55º, n.º 1, al. a) e art. 158º, ambos do CIRE) (12).

São, por conseguinte, destrinçáveis três situações:

- Se à data do despacho inicial do incidente de exoneração já existirem elementos nos autos que revelem a inexistência de bens, deve então na referida decisão e de imediato o Juiz titular declarar o encerramento do processo de insolvência (art. 230º, n.º 1, al. d), do CIRE).
- De igual modo, se após o despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante se vem a constatar a insuficiência dos bens apreendidos para a massa insolvente, deverá de imediato ser declarado o encerramento do processo, em conformidade com o estatuído nos arts. 232º, n.º 2 e 230º, n.º 1, al. e) do CIRE.
- Existindo bens que integram a massa insolvente, e estando ainda a decorrer a sua liquidação pelo administrador de insolvência, não se pode declarar o encerramento do processo e insolvência antes de concluída a liquidação, pois que se torna necessário aguardar pelo rateio final nos termos estabelecidos na alínea a), do n.º 1 do art. 230º do CIRE.
Como elemento meramente auxiliar de interpretação, importa ter presente a alteração legislativa em sede do CIRE, estabelecida pelo Dec. Lei n.º 79/2017, de 30 de junho, no que concerne à fixação do momento relevante para determinar o termo inicial do período de cessão de rendimentos.
Com relevância para a matéria em análise, o citado diploma legal aditou o n.º 7 ao art. 233.º do CIRE, que regula os efeitos do encerramento do processo, estatuindo o seguinte: «O encerramento do processo de insolvência nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 230.º, quando existam bens ou direitos a liquidar, determina unicamente o início do período de cessão do rendimento disponível
Com esta alteração legislativa pretendeu o legislador atribuir autonomia à al. e) do n.º 1 do art. 230.º do CIRE, devendo ser declarado o encerramento do processo de insolvência no despacho inicial de exoneração do passivo restante, quando tal não tenha ainda ocorrido, sendo certo que, existindo bens ou direitos a liquidar, os efeitos do encerramento se repercutem unicamente no início do período de cessão do rendimento disponível (13).
Certamente consciente das críticas apontadas às dificuldades de articulação dos arts. 230.º, n.º 1, al. e) e 232º, n.º 6 do CIRE e das desvantagens decorrentes da referência do início do período de cessão ao encerramento do processo (14), o legislador decidiu alterar o quadro legal então vigente, de modo a que o fundamento de encerramento da al. e) do n.º 1 do art. 230.º do CIRE se aplicará a todos os processos em que tiver sido requerida a exoneração do passivo restante, se bem que os efeitos desse encerramento, na hipótese de haver bens ou direitos a liquidar, produzir-se-ão apenas quanto ao início do período de cessão do rendimento disponível.
Tem-se em vista acautelar os interesses do devedor insolvente - colocando-o a salvo da demora em que frequentemente se traduz a atividade de liquidação e a própria tramitação do processo de insolvência -, sem que daí resultem prejuízos para os credores - pois o período de cessão nunca poderá ser inferior aos 5 anos fixados na lei.
Afigura-se-nos não se tratar de uma norma interpretativa (15), até porque se tomarmos em atenção a norma transitória (art. 6º, n.º 6 do citado Dec. Lei n.º 79/2017, de 30/06) constatamos que o legislador teve o cuidado de ressalvar que «[n]os casos previstos na alínea e) do n.º 1 do artigo 230.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, em que não tenha sido declarado o encerramento e tenha sido proferido o despacho inicial de exoneração do passivo restante, considera-se iniciado o período de cessão do rendimento disponível na data de entrada em vigor do presente decreto-lei», ou seja, no dia 1 de julho de 2017 (art. 8º do citado Dec. Lei n.º 79/2017).
Ora, no caso em apreço, aquando da prolação do despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante não foi (e bem) declarado o encerramento do processo de insolvência porquanto a fase da liquidação do activo ainda não se mostrava ultimada, o que só ocorreu posteriormente, tendo nessa sequência sido declarado o encerramento do processo de insolvência, nos termos do art. 230º, n.º 1, al. a) do CIRE, por despacho datado de 20-03-2015.

Assim, no circunstancialismo concreto dado que o início da contagem do prazo fixo de cinco anos, previsto para a duração do período da cessão do rendimento disponível do devedor insolvente, não tinha como referência a data em que foi proferido o despacho inicial, mas sim a data do encerramento do processo de insolvência (art. 239º, n.º 2 do CIRE), forçoso será concluir pelo acerto da decisão recorrida.
Ademais, no caso em apreço os insolventes nem sequer podem invocar em sua defesa que o atraso no encerramento do processo de insolvência lhes acarretou prejuízos, sob a alegação de que nesse período viram os seus rendimentos apreendidos à ordem da massa insolvente, pelo que deveriam os mesmos ser imputados na contagem do período da cessão. Desde logo porque, conforme decorre dos autos, os seus rendimentos não foram apreendidos no decurso do processo de insolvência por se encontrarem numa situação de desemprego e a cedência ao fiduciário do rendimento disponível apenas produziu efeitos a partir do encerramento do processo de insolvência e não antes. Mas mesmo que se tivesse verificado a apreensão de parte dos rendimentos do insolvente – o que, como se disse, não sucedeu, pelo que a hipótese é colocada para efeitos meramente argumentativos –, inexistiria fundamento legal para converter o período em que perdurou essa apreensão, ao abrigo do disposto no artigo 46.º do CIRE, em período de cessão do rendimento disponível nos termos e para os efeitos previstos no artigo 239.º, n.º 2 do CIRE, nomeadamente para a contagem do prazo de cinco anos aqui estabelecido (16).
Daí que se revele infundada a argumentação dos insolventes de que, a considerar-se o início do período de cessão na data do encerramento do processo, ficarão prejudicados, porque poderão ter de ceder rendimentos, não pelo período de cinco anos, mas por um período superior.
Aliás, a sufragar-se o entendimento por si propugnado, o período da cessão do rendimento disponível seria substancialmente inferior a cinco anos, pois lograriam ver nele incluído o período compreendido entre a prolação do despacho inicial de exoneração e a data do encerramento do processo (correspondente a 828 dias), sem que nesse decurso temporal tivessem efetivamente cedido ao fiduciário o seu rendimento disponível com vista à afetação aos fins enunciados no art. 242º do CIRE, o que é de rejeitar.
O prazo de cinco anos estabelecido no n.º 2 do art. 239º do CIRE, constituindo o período que o legislador reputou adequado para assegurar aos credores uma razoável satisfação dos seus créditos, é fixo, não dependendo, portanto, do prudente arbítrio do juiz (17). Nessa medida, se em atenção aos interesses do devedor insolvente é de reputar como irregular ou ilegal a extensão da duração do período da cessão para além dos 5 anos, por outro lado tomando em conta os interesses dos credores do insolvente também não é de aceitar que esse prazo seja inferior aos indicados 5 anos.
A solução alcançada tão pouco é suscetível de ferir o princípio constitucional da igualdade, invocado genericamente pelos recorrentes.
Segundo o Ac. do TC n.º 395/2017, de 12/07/2017 (relator Gonçalo de Almeida Ribeiro), in www.dgsi.pt., o «princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, impõe que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e que se trate diferentemente o que for essencialmente diferente. Na verdade, o princípio da igualdade, entendido como limite objetivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a adoção de medidas que estabeleçam distinções. Todavia, proíbe a criação de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objetiva e racional. O princípio da igualdade enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se numa ideia geral de proibição do arbítrio»
No caso dos autos, como se subentende do já anteriormente explicitado, existem ponderosas razões que determinam uma diferenciação no caso de o devedor ser titular de património que deva ser liquidado, daqueloutra de o devedor não ser detentor de bens.
Isto porque só se deve declarar o encerramento do processo de insolvência no despacho liminar de deferimento do pedido de exoneração do passivo restante se inexistirem bens a liquidar (art. 230º, n.º 1, al. d) do CIRE); de igual modo, sendo subsequentemente dada notícia nos autos da insuficiência dos bens apreendidos para a massa insolvente, após cumprimento do disposto no art. 232º, n.º 2 do CIRE deverá de imediato ser declarado o encerramento do processo, em conformidade com o estatuído nos arts. 232º, n.º 2 e 230º, n.º 1, alínea e) do CIRE.
Mas a aplicar-se a mesma solução na hipótese de haver bens por liquidar no momento de proferir o despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante, a aplicação do estatuído no art. 230º, n.º 1, al. e) do CIRE determinaria, por um lado, o encerramento do processo de insolvência sem que estivesse terminado a liquidação dos bens do devedor e, por outro, o início do período da cessão. Na hipótese de estarem em causa bens de elevado valor, por um lado, e de rendimentos reduzidos, por outro, a produzirem-se os restantes efeitos do encerramento do processo de insolvência previstos no art. 233º do CIRE ficava impossibilitada a liquidação.
E, como salienta Alexandre de Soveral Martins (18), não «julgamos sequer convincente o argumento «do coração» ou do «sentimento» justificado pela eventual demora processual decorrente da liquidação. O regime da exoneração do passivo restante não tem apenas em contra os interesses do devedor insolvente. Bem pelo contrário: a lei optou por uma via que obriga aquele a respeitar determinadas exigências. E na perspetiva da lei não se justifica obrigar os credores a suportar todo o regime da exoneração do passivo restante se o devedor insolvente tem bens que permitiram efectuar o pagamento dos créditos sobre a insolvência».
No caso, embora se desconheçam as razões do alegado atraso, ainda que não sejam imputáveis aos apelantes, carece de fundamento legal a pretensão de fazer reportar, retroactivamente, o início do período ao momento da prolação do despacho inicial de exoneração do passivo restante.
Pelo exposto, não nos merecendo a decisão recorrida qualquer censura, forçoso será concluir pela sua confirmação, improcedendo as conclusões dos apelantes.
*
Sumário (ao abrigo do disposto no art. 667º, n.º 3 do CPC):

Só se deve declarar o encerramento do processo de insolvência no despacho liminar de deferimento do pedido de exoneração do passivo restante, se inexistirem bens a liquidar; existindo património dos insolventes a liquidar e tendo sido requerida a exoneração do passivo restante, o encerramento do processo de insolvência terá lugar após a realização do rateio final (art. 230.º, n.º 1, al. a) do CIRE), data à qual se reporta o início do período de cessão (art. 239.º, 2, al. a) do CIRE).
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V. – DECISÃO

Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso de apelação apresentado pelos apelantes, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes.
*
Guimarães, 8 de março de 2018

Alcides Rodrigues
Espinheira Baltar
Eva Almeida


1. Este último segmento foi introduzido pelo Dec. Lei n.º 79/2017, de 30 de junho.
2. Cfr. Luís Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 2017, 7ª ed., Almedina, pág. 344.
3. Cfr. Catarina Serra, O Regime Português da Insolvência, 5ª edição, Almedina, 2012, pp. 154/155.
4. Cfr. Exoneração do devedor pelo passivo restante, Themis, 2005, p. 167. Para mais desenvolvimentos sobre o instituto em apreço, ver o Ponto 45 do preâmbulo do CIRE.
5. Cfr., neste sentido, o Ac. da RG de 02/05/2013 (relator Moisés Silva) in www.dgsi.pt. e Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2013, Almedina, p. 637.
6. Cfr., para além dos acórdãos citados na decisão recorrida [Ac. da RP de 24/01/2017 (relatora Márcia Portela) e Ac. da RE de 9/02/2017 (relator Mário João Canelas Brás)], ver entre outros, Ac. da RG de 19/10/2017 (relatora Eugénia da Cunha), Ac. RE de 11/05/2017 (Relator Bernardo Domingos; Ac. RP de 07/11/2016 (Relator Oliveira Abreu); Ac. RC de 07/06/2016 (Relator Arlindo Oliveira); Ac. RE de 20/06/2013 (Relator Mata Ribeiro); Ac. da RL de 10.09.2015 (relator António Martins); Ac. RG de 7/05/2015 (Relator António Santos); Ac. RG de 3/11/2016 (Relator António Sobrinho); Ac. RC de 28.10.2014 (Relatora Moreira do Carmo); Ac. da RC de 7/07/2016 (Relator Arlindo Oliveira) e o Ac. RP de 28/11/2013 (Relator Amaral Ferreira); em sentido contrário, porém, o Ac. RE de 28/09/2017 (Relatora Isabel de Matos Peixoto Imaginário); Ac. RC de 18/10/2016 (Relator Fonte Ramos), com voto de vencido, e o Ac. da RG de 21/05/2013 (Relator Edgar Gouveia Valente), todos consultáveis in www.dgsi.pt.
7. Cfr. Ac. da RG de 7/05/2015 (António Santos), in www.dgsi.pt.
8. Cfr., Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, reimpressão, 3ª ed., Quid Iuris, Lisboa, 2015, pp. 827/829.
9. Cfr. Um Curso de Direito da Insolvência, 2ª ed, 2017, Almedina, p. 596/599.
10. Cfr. no mesmo sentido, Catarina Serra, obra citada, p. 144.
11. Cfr., In Direito da Insolvência, 2017, 7ª Edição, Almedina, p. 311.
12. Cfr. Ac. RG 7/05/2015 (Relator António Santos) e Ac. RP de 07/11/2016 (Relator Oliveira Abreu), ambos consultáveis in www.dgsi.pt.
13. Cfr. Ac. RE 28/09/2017 (Relatora Isabel de Matos Peixoto Imaginário), in www.dgsi.pt.
14. De que, a título meramente exemplificativo, enunciamos as explicitadas por Cláudia Oliveira Martins, in Especificidades do Processo de Insolvência de Pessoas Singulares, ebook do CEJ subordinado ao tema “Insolvência e processo especial de revitalização”, in www.cej.pt.
15. Lei interpretativa é “aquela que intervém para decidir uma questão de direito cuja solução é controvertida ou incerta, consagrando um entendimento a que a jurisprudência, pelos seus próprios meios, poderia ter chegado”. - cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª ed, Coimbra Editora, 1987, p. 62. Para que a lei nova possa ser interpretativa são necessários dois requisitos: que a solução do direito anterior seja controvertida ou pelo menos incerta; e que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei. Se o julgador ou o intérprete em face de textos antigos não podiam sentir-se autorizados a adoptar a solução que a lei nova veio a consagrar, então esta é decididamente inovadora”. - cfr. J. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1995, pág. 247.
16. Cfr., neste sentido, o Ac. da RE de 26.10.2017 (Relator Vítor Sequinho dos Santos), in www.dgsi.pt., nos termos do qual a apreensão, a favor da massa insolvente, de uma parte do salário do insolvente nos termos do n.º 1 do artigo 46.º do CIRE, não se confunde com a cessão do rendimento disponível prevista do artigo 239.º do mesmo código, pelo que tendo sido determinada e efetuada a apreensão de uma parte do salário do insolvente ao abrigo do disposto no artigo 46.º do CIRE, não poderá o tempo de duração dos correspondentes descontos ser, posteriormente, contabilizado no prazo previsto no n.º 2 do artigo 239.º do mesmo código
17. Cfr., Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, obra citada, p. 858.
18. Cfr. obra citada, p. 599/600.