Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3764/15.3T8BRG-A.G1
Relator: MARGARIDA ALMEIDA FERNANDES
Descritores: PROVA TESTEMUNHAL
SIGILO PROFISSIONAL
FUNCIONÁRIO DA ORDEM DOS ADVOGADOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – O segredo profissional a que estão sujeitos aos advogados e as pessoas que colaboram com estes é extensível aos funcionários da Ordem dos Advogados quanto a factos a ele abrangidos que tenham conhecimento no âmbito dessas funções.

II – Numa acção contra um advogado a título de responsabilidade civil, tendo em atenção a alegação do autor de que não conseguiu contactar com a patrona nomeada, nem com a intervenção que pediu à Delegação da O.A., e a versão oposta da patrona, afigura-se-nos imprescindível para a decisão da causa saber o que a funcionária daquela Delegação sabe a este propósito, assim prevalecendo o interesse na realização da justiça e tutela do direito à produção de prova pela parte onerada sobre o interesse tutelado com o estabelecimento do dever de sigilo.”
Decisão Texto Integral:
Incidente

Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório

Rui instaurou acção de condenação, sob a forma de processo comum, contra Ana, Maria e Companhia de Seguros X, S.A. pedindo a condenação das rés no pagamento de € 130.000,00 a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais com fundamento na responsabilidade contratual emergente do mandato no que concerne as 1ª e 2ª rés e na responsabilidade contratual transferida por contrato de seguro no que concerne a 3ª ré.

Alegou, em síntese, que instaurou no Julgado de Paz do Porto uma acção contra o condomínio do prédio sito na Rua …, Leça, Matosinhos devido à degradação da fracção “A” correspondente a loja para comércio, sua propriedade. Esta acção terminou com uma transacção nos termos da qual o condomínio se comprometeu a eliminar as deficiências. Como este não cumpriu o autor instaurou acção executiva para prestação de facto que, devido a oposição do executado, se arrastou no tempo. Nesta acção interveio como mandatária a 2ª ré. A paralisação da sua actividade comercial fez com que deixasse de poder fazer face aos encargos bancários, o que levou à instauração de duas execuções no âmbito das quais foram penhoradas e posteriormente alienadas, quer a referida loja, quer a fracção onde habitava. O comportamento ilícito do condomínio causou ao autor danos patrimoniais e não patrimoniais. A 1ª ré foi nomeada patrona oficiosa do autor em 09/11/09 com vista à instauração de acção de indemnização contra o condomínio, mas não a instaurou, o que já não é possível atento o decurso do prazo de prescrição que entende dever ser contado da data da sentença que julgou improcedente a oposição à acção executiva.
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As 3º e 2ª rés apresentaram contestação.

A 2ª ré requereu a intervenção principal provocada da Companhia de Seguros M., a qual foi admitida. Uma vez citada esta apresentou contestação.
A 1ª R contestou impugnando a matéria de facto alegada pelo autor dizendo ter, logo após a sua nomeação, entrado em contacto com o autor, ter tido uma reunião com este, na qual lhe pediu que entregasse documentos, o que aquele não fez durante largos meses. Reconhece ter recebido um telefonema da Delegação da O.A. comunicando-lhe que o autor se queixava de não a conseguir contactar, o que estranhou. Falou com o autor, mas apenas três meses depois é que aquele lhe entregou os documentos pedidos. A 1ª R comunicou-lhe que entendia que a sua pretensão carecida de base legal. Referiu que correu termos um processo disciplinar contra si (Proc. nº 799/2012-P/D), que teve origem numa participação do autor, o qual foi arquivado.
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Foi proferido despacho saneador, foi identificado o objecto do litígio, foram enunciados os temas da prova, foram admitidos os meios de prova e foi designada data para julgamento.

Por requerimento de 31/05/2017 o A requereu o aditamento da testemunha V. C., funcionária da Delegação da Ordem dos Advogados e a requisição do processo organizado na mesma delegação na sequência da participação do autor contra a 1ª ré, o que foi admitido.
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O autor desistiu do pedido contra a 2ª ré, o que foi homologado por sentença. Foi proferido decisão a julgar extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide quanto à Interveniente M., S.A..
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Na sessão da audiência de julgamento de 13/11/2017 a testemunha do autor V. C. declarou ser funcionária administrativa da Delegação da Ordem dos Advogados, entender encontrar-se abrangida pelo segredo profissional nos termos do art. 92º nº 1 e 7 do E.O.A. e referiu que aguarda autorização de levantamento do sigilo profissional por parte da sua entidade patronal. Face a estas declarações o Tribunal decidiu aguardar que a testemunha juntasse aos autos a referida autorização e designou a data de 29/11/17 para a sua inquirição.
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Foi emitido e junto aos autos parecer do Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados que se pronunciou no sentido de os funcionários da O.A. estarem sujeitos ao dever de segredo profissional nos termos do art. 92º nº 7 do E.O.A. e, como no caso em apreço não estão reunidos os requisitos previstos no referido art. 92º do E.O.A., conclui pela não autorização do depoimento da testemunha V. C..
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O autor pronunciou-se requerendo o levantamento do sigilo profissional ao abrigo do disposto nos art. 417º nº 4 do C.P.C. e 135º nº 3 do C.P.P..

Para tanto alegou o seguinte:

Dos documentos juntos aos autos resulta que a testemunha tem conhecimento de factos relacionados com diligências feitas por ela e outra funcionária da mesma Delegação de Braga da O.A. no sentido de contactar a 1ª ré e reacção desta ré às solicitações do autor, factos esses que são relevantes para o apuramento da verdade material. A gravidade da conduta da 1º ré sobrepõe-se ao interesse público subjacente à existência do sigilo profissional da testemunha.
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Foi proferida decisão que reproduzimos na parte relevante:
Requerimentos com as REFªs: 27604639 e 27604965:

Na sequência da decisão da Ordem dos Advogados, datada de 24.11.2017, no sentido de que não autoriza a prestação do depoimento de V. C., porque a mesma está reflexamente sujeita a sigilo profissional (cfr. fls. 806 a 811), veio o Autor requerer a intervenção do Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, com vista ao seu levantamento.

Apreciando:
Nos termos do artigo 417º, n.º 3, al. c), do Código do Processo Civil (CPCiv), na parte agora pertinente, a recusa de prestação de informações é legítima quando importar a violação de sigilo profissional.
A respeito do segredo profissional do advogado, o artigo 92º, nº 1, do Estatuto da Ordem dos Advogados, determina o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços.
De acordo com o n.º 7, dessa disposição, o dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua atividade profissional.
Embora, segundo cremos, a norma acabada de transcrever esteja especialmente vocacionada para os colaboradores do próprio advogado, ou porque fazem parte do seu escritório ou porque por este foi requisitado o seu auxílio, por interpretação extensiva, naquele conceito podem incluir-se, como faz a Ordem dos Advogados, os próprios funcionários do organismo profissional que disciplina a atividade de advogado.
Todavia, o segredo profissional não é absoluto, podendo ser dispensado através do incidente processual de quebra do segredo profissional, regulado no artigo 135º, do Código do Processo Penal (CPPen), aplicável ao processo civil, por força do disposto no artigo 417º, n.º 4, do CPCiv, por força do princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade.
Está em controvérsia nesta ação o apuramento dos pressupostos de responsabilidade civil profissional, por referência à conduta da patrona oficiosa nomeada ao Autor, que aqui ocupa a posição de Ré.
De harmonia com a versão apresentada pelo Autor (na petição inicial e nas declarações de parte produzidas em audiência), a Ré, não obstante a nomeação de que foi destinatária, negligenciou o patrocínio, não tendo chegar a intentar a respetiva ação para que foi designada e não tendo respondido às tentativas de contacto por ele efetuadas, inclusive através da intervenção da Delegação da Ordem dos Advogados de Braga.
A testemunha V. C. é funcionária da Delegação da Ordem dos Advogados e o seu depoimento versará sobre essa matéria.
Fazendo um juízo de prognose, o conteúdo desse depoimento poderá auxiliar decisivamente na decisão da matéria de facto, posto que a testemunha, por ter tido contacto direto e contemporâneo dos factos, será conhecedora dos motivos que o Autor lhe comunicou para solicitar a intervenção da Delegação da Ordem dos Advogados de Braga e, para além disso, saberá o seguimento que deu essa questão (nomeadamente, se procurou inteirar-se junto da Ré das queixas do Autor e da resposta que esta ter-lhe-á, ou não, dado).

Decidindo:

Deste modo, nos termos do que dispõe o artigo 135º, n.º 3, do CPPen, ex vi artigo 417º, n.º 4, do CPCiv, determino a suscitação da intervenção do Venerando do Tribunal da Relação de Guimarães, no sentido de tomar decisão sobre a prestação do depoimento por parte da testemunha V. C., funcionária da Delegação da Ordem dos Advogados de Braga, com quebra do segredo profissional.
(…).”.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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Tendo em atenção que requerido a questão em causa no presente incidente da quebra de sigilo profissional cinge-se a saber se existe fundamento legal para, no caso concreto, dispensar do sigilo profissional a testemunha V. C..
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II – Fundamentação

Os factos que relevam para a decisão a proferir são os que constam do relatório que antecede.
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No caso em apreço a testemunha V. C., chamada a depor, identificou-se como funcionária da Delegação da Ordem dos Advogados de Braga e recusou-se a prestar depoimento invocando a violação do segredo profissional a que está adstrita nos termos do art. 92º nº 1 e 7 do E.O.A., aprovado pela Lei nº 145/2015 de 9 de Setembro.

Posteriormente foi junto aos autos parecer do Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados que concluiu que a mesma estava abrangida pelo dever de segredo profissional e que, entendendo que não se mostram reunidos os requisitos previstos no art. 92º nº 4 do E.O.A., não autorizou o seu depoimento.

Vejamos.

Dispõe o art. 92º do E.O.A., sob a epígrafe “Segredo profissional”:
1 – O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:

a) a factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação, por revelação do cliente (…);
b) a factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;
(…)
4 – O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respectivo, (…).
(…)
7 – O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no nº 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua atividade profissional, (…).
(…).
No Ac. da R.G. de 18/02/16, in www.dgsi.pt, lê-se “Por segredo profissional entende-se, na generalidade, a reserva que todo o indivíduo deve guardar dos factos conhecidos no desempenho das suas funções ou como consequência do seu exercício, factos que lhe incumbe ocultar, quer porque o segredo lhe é pedido, quer porque é inerente à própria natureza do serviço prestado e da profissão.”.
A razão de ser do dever de guardar segredo profissional por parte dos advogados é, por um lado, a confiança e a lealdade entre advogado e cliente e, por outro, a dignidade da advocacia. Assim, ao lado do interesse privado do cliente, existe o interesse público na confiança do advogado e na sua função.
Concordamos com o Tribunal recorrido no sentido de, do mesmo modo que o dever de segredo profissional é extensivo aos colaboradores do advogado, dever igualmente ser extensivo aos funcionários da Ordem dos Advogados e respectivas Delegações quanto a factos a ele abrangidos que tomem conhecimento no âmbito destas funções.

Dispõe o art. 417º do C.P.C., sob a epígrafe “Dever de cooperação para a descoberta da verdade”:
1 – Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os actos que forem determinados.
(…)
3 – A recusa é, porém, legítima se a obediência importar:
(…)
c) Violação do sigilo profissional ou dos funcionários públicos, ou do segredo do Estado, sem prejuízo do nº 4.
4 – Deduzida a escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.

E dispõe o art. 135º do C.P.P., sob a epígrafe “Segredo profissional”:
1 – Os ministros da religião ou confissão religiosa e os advogados, (…) e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.
2 – Havendo dúvidas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante o qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene a prestação do depoimento.
3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
4 – Nos casos previstos nos nº 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, (…).
(…).
Face a estes preceitos, uma vez invocado o direito de escusa, o tribunal pode tomar uma das seguintes atitudes:

a)ou aceita a legitimidade da recusa e o silêncio da testemunha;
b) ou, tendo dúvidas acerca da legitimidade da recusa, procede a averiguações, caso conclua pela ilegitimidade insiste pelo depoimento, ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa;
c) ou, concluindo pela legitimidade da recusa, requer ao tribunal superior àquele em que o incidente tiver sido suscitado que ordene a quebra do segredo profissional se esta se mostrar justificada, ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa.

No caso em apreço, está em causa a eventual responsabilidade civil da 1ª ré por incumprimentos dos deveres inerentes à sua nomeação como patrona do autor com vista à instauração de acção de indemnização contra o condomínio.

Tendo em atenção o alegado pelo autor de que, a partir de determinada altura, não conseguiu contactar com a 1ª ré, nem com a intervenção que pediu à Delegação da O.A. de Braga, e a versão da 1ª ré de que aquele sempre soube onde encontrá-la, afigura-se-nos imprescindível para a decisão da causa saber o que a testemunha V. C., funcionária daquela delegação, sabe a este propósito.

Assim, perante os interesses em conflito, a saber, por um lado o interesse na realização da justiça e tutela do direito à produção de prova pela parte onerada, e por outro o interesse tutelado com o estabelecimento do dever de sigilo, afigura-se-nos que, no caso sub judice, o interesse preponderante é, sem dúvida, o primeiro justificando-se consequentemente a quebra do sigilo profissional.
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Sumário – 663º nº 7 do C.P.C.:

I – O segredo profissional a que estão sujeitos aos advogados e as pessoas que colaboram com estes é extensível aos funcionários da Ordem dos Advogados quanto a factos a ele abrangidos que tenham conhecimento no âmbito dessas funções.
II – Numa acção contra um advogado a título de responsabilidade civil, tendo em atenção a alegação do autor de que não conseguiu contactar com a patrona nomeada, nem com a intervenção que pediu à Delegação da O.A., e a versão oposta da patrona, afigura-se-nos imprescindível para a decisão da causa saber o que a funcionária daquela Delegação sabe a este propósito, assim prevalecendo o interesse na realização da justiça e tutela do direito à produção de prova pela parte onerada sobre o interesse tutelado com o estabelecimento do dever de sigilo.
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III – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente o presente incidente e, consequentemente, considera-se justificado o levantamento do sigilo profissional de V. C., funcionária da Delegação da Ordem dos Advogados de Braga, para que a mesma possa prestar o seu depoimento relativamente às questões de saber se o autor alegou que não conseguia contactar a 1ª Ré, se solicitou a intervenção daquela Delegação, as eventuais diligências feitas pelas funcionárias desta e a reacção da 1ª Ré
Sem custas.

Guimarães, 08/03/2018

(Margarida Almeida Fernandes)
(Margarida Sousa)
(Afonso Cabral de Andrade)