Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
41/12.5TBAMR.G1
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: INVENTÁRIO
TRAMITAÇÃO NORMAL DO PROCESSO
DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/28/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: O artigo 29.º da Portaria 278/2013, conjugado com o artigo 7.º da Lei 23/2013, tem que se interpretar no sentido de que as "disposições legais" aplicáveis aos "processos de inventário" que "mantêm a sua tramitação no tribunal" são, unicamente, as que se reportam à regulamentação própria do processo de inventário.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I
No processo de inventário para a partilha das heranças abertas por óbito de R… e de M…, requerido por H… e J…, o Meritíssimo Juiz a quo proferiu despacho em que decidiu:
"Os presentes autos estão parados, por exclusiva negligência das partes, há mais de 6 meses.
Assim, por força do disposto no artigo 281.º, n.º 1, do C.P.C., declaro extinta a instância por deserção. - cfr. artigo 277.º, al. c), do C.P.C.."
Inconformados com esta decisão, os requerentes dela interpuseram recurso, que foi recebido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo, findando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:
1 - No dia 30 de Janeiro de 2012, foi intentado o presente processo de inventário.
2 - Em 13 de Outubro de 2014 os interessados foram notificados para impulsionar os autos.
3 - Em 12 de Fevereiro de 2015 foi requerida nos autos, pela cabeça de casal, certidão que foi emitida a 17 de Fevereiro de 2015.
4 - Da sentença ora recorrida, proferido em 13 de Outubro do corrente ano, consta que o processo se encontra parado há mais de seis meses por negligência das partes.
5 - Mesmo que se entenda que o pedido e emissão de certidão em 17 de Fevereiro do corrente ano não corresponda a acto judicial terá que se entender então que o processo só se encontra sem impulso das partes desde a notificação do despacho de 13 de Outubro de 2014, que notificava as partes para impulsionarem o processo.
6 - Salvo o devido respeito por opinião diferente, o Tribunal a quo não fez uma aplicação correta do direito, conforme já foi reconhecido no douto acórdão da Relação de Lisboa proferido no processo 875/12.0TBLNH.L1-6, de 16-10-2014 e acima referido.
7 - O Tribunal a quo aplicou aos presentes autos de inventário o Novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, cujas disposições normativas entraram em vigor no dia 1 de Setembro de 2013.
8 - No entanto, o art.º 29.º da portaria n.º 278/2013, de 26 de Agosto, que regulamenta o processamento dos actos e termos do processo de inventário no âmbito do Regime Jurídico do Processo de Inventário aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 5 de Março, tendo ambos os diplomas entrado em vigor no dia 2 de Setembro de 2013, consigna, no art.º 29.º Processos pendentes), que: "Os processos de inventário instaurados até à data da entrada em vigor da Lei n.º 23/2013, de 5 de Março, mantêm a sua tramitação no tribunal, aplicando-se as disposições legais em vigor a 31 de Agosto de 2013",
9 - Em 31 de Agosto de 2013, a norma constante do artigo 281.º n.º 1 do Novo Código de Processo Civil e na qual o Tribunal se baseou para proferir e sua decisão, não esteve em vigor.
10 - E nos termos do art.º 29.º, o da portaria n.º 278/2013 não pode o Novo Código de Processo Civil ser aplicado aos processos de inventário instaurados até ao dia 2 de Setembro de 2013, aplicando-se, nestes casos o Código de Processo Civil em vigor a 31 de Agosto de 2013.
11 - Como tal, a referida norma - art.º 281.º n.º 1 do Novo CPC - não pode ser aplicada aos presentes autos de inventário, pelo que não pode o Tribunal a quo julgar a instância extinta por deserção, como julgou.
12 - Assim, esta decisão está juridicamente errada, e viola as disposições legais supra invocadas, nomeadamente, o art.º 29.º da Portaria n.º 278/2013, de 26 de Agosto e o art.º 3.º n.º 3 do Código de Processo Civil.
Não foram apresentadas contra-alegações.
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635.º n.º 3 e 639.º n.os 1 e 3 do Código de Processo Civil , delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir consiste em saber se o "art.º 281.º n.º 1 do Novo CPC - não pode ser aplicada aos presentes autos de inventário, pelo que não pode o Tribunal a quo julgar a instância extinta por deserção, como julgou."
II
1.º
São relevantes para a decisão desta questão os seguintes factos:
a) O presente processo de inventário foi instaurado em Janeiro de 2012.
b) A 13 de Outubro de 2014 foi proferido despacho em que se determinou:
"Notifique-se os interessados para impulsionar os presentes autos, sem prejuízo do prazo previsto no artigo 281.º, n.º1, do C.P.C.."
c) A 12 de Fevereiro de 2015 a cabeça-de-casal apresentou requerimento em que dizia vir:
" (…) junto de V. Exª requerer se digne mandar passa-lhe certidão judicial donde conste a identificação completa e residência dos inventariados, bem como cópia das declarações de cabeça-de-casal, com a menção de que as mesmas não foram impugnadas e já transitaram em julgado, e ainda dos testamentos juntos a fls. 15 a 17 destes autos e 12 a 16 do apenso A) dos autos, pois dela precisa para efeitos de registo predial e participações matriciais."
d) O despacho recorrido foi proferido a 13 de Outubro de 2015.
2.º
O artigo 281.º n.º 1 do actual Código de Processo Civil estabelece que "sem prejuízo do disposto no n.º 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses."
É pacífico que perante o despacho de 13 de Outubro de 2014 cabia aos interessados praticarem nos autos os actos processuais necessários para se retomar a marcha do processo.
Sucede que após este despacho, com excepção do requerimento de 12 de Fevereiro de 2015, nada foi dito pelos interessados, assumindo todos eles uma conduta processual passiva.
Ora, o requerimento de 12 de Fevereiro de 2015, onde o cabeça-de-casal se limita a pedir uma certidão de parte do processo, "pois dela precisa para efeitos de registo predial e participações matriciais", é, manifestamente, inidóneo para fazer reiniciar a marcha do processo; é insusceptível de produzir tal resultado.
Consequentemente, tal requerimento não interferiu nos efeitos processuais decorrentes do despacho de 13 de Outubro de 2014, o que significa que, à luz do citado artigo 281.º n.º 1, quando foi proferido o despacho recorrido, já há muito que tinha findado o prazo de seis meses mencionado nessa norma.
Porém, os requerentes defendem que este artigo não se aplica aos autos, na medida em que "o art.º 29.º da portaria n.º 278/2013, de 26 de Agosto, que regulamenta o processamento dos actos e termos do processo de inventário no âmbito do Regime Jurídico do Processo de Inventário aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 5 de Março (…) consigna (…) que: "Os processos de inventário instaurados até à data da entrada em vigor da Lei n.º 23/2013, de 5 de Março, mantêm a sua tramitação no tribunal, aplicando-se as disposições legais em vigor a 31 de Agosto de 2013".
Como é sabido, o Regime Jurídico do Processo de Inventário , em ruptura com o sistema que há muito vinha de trás, consagrou o princípio de que "compete aos cartórios notariais sediados no município do lugar da abertura da sucessão efectuar o processamento dos actos e termos do processo de inventário e da habilitação de uma pessoa como sucessora por morte de outra."
Passando, então, para os "cartórios notariais (…) o processamento dos actos e termos do processo de inventário", evidentemente que tal competência deixou de estar atribuída aos tribunais, pelo que as regras processuais consagradas no (anterior) Código de Processo Civil , relativas à tramitação de tais processos, à partida, não seriam mais aplicáveis.
No entanto, o legislador sabia que à data da entrada em vigor deste novo regime estariam ainda, seguramente, pendentes nos tribunais processos de inventário, pelo que havia que estabelecer um regime transitório de forma a salvaguardar a actividade processual já desenvolvida nesses processos e os legítimos interesses dos respectivos intervenientes.
Nessa medida, a Lei 23/2013, no seu artigo 7.º, enunciou o princípio de que "o disposto na presente lei não se aplica aos processos de inventário que, à data da sua entrada em vigor, se encontrem pendentes" e, no seguimento de tal solução, na Portaria 278/2013 o mencionado artigo 29.º veio afirmar que "os processos de inventário instaurados até à data da entrada em vigor da Lei n.º 23/2013, de 5 de Março, mantêm a sua tramitação no tribunal, aplicando-se as disposições legais em vigor a 31 de agosto de 2013."
Resulta claro do artigo 7.º da Lei 23/2013 que o legislador não quis que o novo Regime Jurídico do Processo de Inventário se aplicasse, de imediato e sem mais, "aos processos de inventário que, à data da sua entrada em vigor, se encontrem pendentes", o que bem se compreende, não só pela dimensão das modificações introduzidas, como também por elas serem dificilmente compatíveis com o regime anterior e a circunstância de "na falta de norma transitória, será de aplicação imediata a nova lei processual não só às acções que sejam instauradas posteriormente à sua entrada em vigor, mas também aos actos que houverem de ser praticados nas acções ainda não terminadas .
O n.º 1 do artigo 9.º do Código Civil diz-nos que "a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada", e o seu n.º 3 impõe que na interpretação dos textos legais "o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas". E, "não se sabendo ao certo qual tenha sido a vontade do legislador efectivo, é natural imaginar-se que ele entendeu a lei tal como a teria entendido um bom legislador" , tendo-se presente que as palavras em que o legislador se expressa "têm por trás de si um espírito, uma alma, e só quando a lei é vista no conjunto dos dois aspectos é que pode ser perfeitamente conhecida."
Neste contexto, ao afirmar-se no artigo 29.º da Portaria 278/2013, o qual decorre do princípio estabelecido no artigo 7.º da Lei 23/2013, que os "processos de inventário instaurados até à data da entrada em vigor da Lei n.º 23/2013" "mantêm a sua tramitação no tribunal" e se lhes aplica "as disposições legais em vigor a 31 de agosto de 2013", tem que se interpretar este preceito no sentido de que as "disposições legais" aplicáveis aos "processos de inventário" que "mantêm a sua tramitação no tribunal" são, unicamente, as que se reportam à regulamentação própria e específica do processo de inventário; dito de outra forma, a esses processos aplicam-se as regras (próprias) do processo de inventário que figuram no anterior Código de Processo Civil, conjugadas com tudo o mais que se encontra no novo Código de Processo Civil .
Portanto, em matéria de deserção da instância, há que observar o artigo 281.º do actual Código de Processo Civil, e não o artigo 291.º do anterior Código de Processo Civil .
E, ao adoptar-se esta solução, não se fale em decisão surpresa, pois no despacho 13 de Outubro de 2014 menciona-se aquele artigo 281.º, menção essa que não mereceu observação alguma por parte de qualquer interessado. Os interessados já sabiam que, bem ou mal, o Meritíssimo Juiz considerava que em matéria de deserção da instância se aplicava o artigo 281.º do actual Código de Processo Civil.
III
Com fundamento no atrás exposto, julga-se improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pelos requerentes.


28 de Janeiro de 2016

(António Beça Pereira)
(António Santos)
(Maria Amália Santos)
________________________
1) São deste código todas as disposições adiante mencionadas sem qualquer outra referência.
2) Cfr. conclusão 11.ª.
3) Os requerentes não o questionam.
4) Cfr. conclusão 8.ª.
5) Cfr. Lei 23/2013 de 5 de Março.
6) Artigo 3.º n.º 1.
7) Cfr. artigos 1122.º a 1405.º.
8) E do artigo 29.º da Portaria 278/2013 que vem consagrar igual solução, usando diferentes palavras.
9) Pais de Amaral, Direito Processual Civil, 8.ª Edição, pág. 64.
10) Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 29 e 30.
11) Inocêncio Galvão Telles, Introdução ao Estudo do Direito, Vol. I, 11.ª Edição, pág. 235. Lex non est textus sed contextus.
12) Com as necessárias adaptações, se necessário.
13) Veja-se o princípio enunciado nos artigos 5.º e 6.º da Lei n.º 41/2013 de 26 de Junho.
14) Artigo 291.º.
15) Como aliás já sucedera no de 23 de Junho de 2014.