Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1936/07.3TBFAF-U.G1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: CIRE
VERIFICAÇÃO ULTERIOR DE CRÉDITOS
PRAZO
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
SEPARAÇÃO OU RESTITUIÇÃO DE BENS
CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA
CADUCIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/26/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª CÍVEL
Sumário: I – O prazo de seis meses previsto na alínea b) do nº 2 do artigo 146º do CIRE, apenas é aplicável a situações de reclamação de créditos e não às de separação ou restituição de bens.
II – As pretensões emergentes do não cumprimento de contrato promessa de compra e venda ainda que dotado de eficácia real – execução específica e reconhecimento do direito de retenção – constituindo providências de natureza obrigacional ou creditícia, não se integram no exercício do “direito à restituição ou separação de bens” da massa falida a que alude o artigo 146º, nº 2, do CIRE.
III – Os pedidos assim formulados em acção fundada nesse incumprimento contratual estão sujeitos ao regime de caducidade cominado no artigo 146º, nº 2, al. b), do CIRE.
Decisão Texto Integral: Acordam nesta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO

AA…intentou, por apenso ao processo de insolvência de BB & C.ª Lda., acção declarativa comum, contra a Massa Insolvente daquela e seus credores, pedindo que: a) seja reconhecido e declarado a favor da autora o direito de propriedade sobre as fracções identificadas nos artigos 1º e 8º da petição inicial; b) seja reconhecido o direito de retenção sobre as mesmas fracções; c) seja reconhecido e considerado reclamado o seu crédito no montante de € 87.000,00.
Para tanto alegou, em síntese, que em 3 de Agosto e 25 de Setembro de 2005, entre a insolvente e a autora foram celebrados contratos-promessa de compra e venda das fracções autónomas AE e aparcamentos n.º 43 do prédio sito em Felgueiras inscrito na matriz sob o art. …, para os quais foram estabelecidos prazos de pagamento faseados e atribuída eficácia real, sendo que desde as referidas datas tem a posse e a fruição dos bens prometidos vender e que só em Março de 2014 teve conhecimento da declaração de insolvência e da apreensão para a massa insolvente.
Contestaram a Massa Insolvente e a CC, S.A., por excepção e impugnação, tendo ambas as rés invocado a caducidade do direito da autora propor a presente acção, por se encontrar ultrapassado o prazo a que alude o artigo 146º, nº 2, alínea b), do CIRE, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 16/2012, de 20 de Abril.
A autora respondeu para sustentar que a acção diz respeito ao direito de separação ou à restituição de bens, o qual pode ser feito valer a todo o tempo.
No despacho saneador julgou-se procedente a excepção peremptória de caducidade suscitada e absolveu-se as rés do pedido.
Inconformado com o assim decidido, apelou a autora, tendo rematado a respectiva alegação com as seguintes conclusões:
«- O direito à separação ou restituição de bens pode ser exercido a todo o tempo;
- O prazo de propositura de acção de verificação ulterior de créditos a que se refere o artº 146º, nº 2, alínea b], do CIRE, não tem natureza substantiva, não integra a respectiva relação jurídica obrigacional, nem se lhe aplica o regime de caducidade previsto nos artºs 298º, nº 2, e 333º, nº 2, C. Civil».
Termina pedindo a revogação da decisão proferida.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II - MBITO DO RECURSO
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões da recorrente, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), coloca como questão a apreciar saber se caducou ou não o direito da autora instaurar a presente acção.

III – FUNDAMENTAÇÃO
A) OS FACTOS
A decisão contida no saneador-sentença assentou nos seguintes elementos de facto:
- A sentença que declarou a insolvência da devedora BB & C.ª Lda. foi decretada em 25.09.2005;
- As fracções a que respeitam os contratos-promessa celebrados entre a autora e a insolvente foram apreendidas pelo senhor administrador da massa insolvente em 12.9.2008 (fls. 7 do apenso de apreensão de bens);
- A presente acção deeu entrada em 17 de Julho de 2014.

B) O DIREITO
A acção foi intentada e seguiu os seus termos como de “Verificação ulterior de créditos ou outros direitos”, prevista no artigo 146º do CIRE, preceito que dispõe:
«1 - Findo o prazo das reclamações, é possível reconhecer ainda outros créditos, bem como o direito à separação ou restituição de bens, de modo a serem atendidos no processo de insolvência, por meio de acção proposta contra a massa insolvente, os credores e o devedor, efectuando-se a citação dos credores por meio de edital electrónico publicado no portal Citius, considerando-se aqueles citados decorridos cinco dias após a data da sua publicação.
2 - O direito à separação ou restituição de bens pode ser exercido a todo o tempo, mas a reclamação de outros créditos, nos termos do número anterior:
a) Não pode ser apresentada pelos credores que tenham sido avisados nos termos do artigo 129.º, excepto tratando-se de créditos de constituição posterior;
b) Só pode ser feita nos seis meses subsequentes ao trânsito em julgado da sentença de declaração da insolvência, ou no prazo de três meses seguintes à respectiva constituição, caso termine posteriormente».
Na sentença recorrida entendeu-se que os prazos de seis meses e três meses estabelecidos na transcrita alínea b) do nº 2 se aplicam ao caso de reclamação de novos créditos, deixando, porém tal preceito indefinida a natureza e o regime do prazo em causa.
E, na verdade, assim é, sendo que a jurisprudência diverge quanto a esta questão, entendendo uns que se trata de um prazo de caducidade, não sendo esta de conhecimento oficioso[1], e sustentando outros que se trata de um prazo de natureza processual, regulador da reclamação de créditos na insolvência pendente, a que se aplica, quanto aos efeitos e regime de conhecimento, a lei adjectiva[2].
Na sentença, depois de se afirmar que se subscrevia o entendimento de que se trata de um prazo de caducidade, reconduziu-se a questão a dirimir nos autos apenas e tão só a saber «se, para os fins previstos no artigo art. 146 n.º 2 do CIRE, os pedidos formulados nesta ação apresentam natureza meramente obrigacional, ou se, ao invés, são qualificáveis como de “restituição ou separação de bens”».
E parece-nos que se equacionou bem a questão a decidir.
Na verdade, a restituição de bens é «o meio próprio de o titular de um direito real de gozo – direito de propriedade ou direito real limitado ou menor – fazer valer o seu direito e reagir contra uma apreensão de que, com ofensa do direito do reivindicante, resultou uma “posse” indevida pela massa do bem que estava em seu poder aquando da declaração de falência ou insolvência.
Há-de poder ser, em qualquer caso, invocado um título de posse que legitime a exigibilidade da entrega ou a existência de um vínculo em virtude do qual o falido recebeu a coisa com a obrigação de a restituir ao reclamante»[3].
Será que as pretensões da autora, nesta acção, são de incluir no exercício ao direito de restituição, no âmbito do conceito cujos contornos se deixaram definidos?
A resposta não pode, a nosso ver, deixar de ser negativa.
Assim, se bem que a causa de pedir nesta acção assente na invocação de dois contratos-promessa, a cujas promessas foi atribuída eficácia real, e na posse prolongada no tempo sobre as fracções em causa, a verdade é que, algo surpreendentemente, não é formulado nenhum pedido consentâneo com essa situação - que seria o de restituição dos imóveis em causa -, mas sim a execução específica dos contratos-promessa, o reconhecimento do direito de retenção das fracções, e, finalmente, que seja reconhecido e considerado reclamado o crédito da autora no valor de € 87.000,00.
Assim, como bem se observou na sentença recorrida, «o objecto do pedido é, necessariamente, fazer cumprir a obrigação (de prestação de facto) de celebrar o contrato prometido com o contraente fiel, mediante a substituição do tribunal ao contraente inadimplente na emissão da declaração negocial em falta em correspondência com o conteúdo das obrigações livremente assumidas no contrato-promessa cuja execução forçada se peticiona».
O mesmo se diga, aliás, quanto ao direito de retenção, o qual se traduz no direito conferido ao credor que se encontra na posse de coisa que deve ser entregue a outra pessoa, de não a entregar enquanto esta não satisfazer o seu crédito, verificada alguma das relações de conexidade entre o crédito do detentor e a coisa que deva ser restituída a que a lei confere tal tutela (artigos 754º e 755º do Código Civil).
Trata-se de um direito real de garantia – que não de gozo - em virtude da qual o credor fica com um poder sobre a coisa de que tem a posse, o direito de a reter, direito que, por resultar apenas de uma conexão eleita pela lei, e não por exemplo da própria natureza da obrigação, representa uma garantia directa e especialmente concedida pela lei[4].
É, assim, conferido ao promitente-comprador para lhe garantir o crédito pela indemnização por incumprimento do contrato-promessa, e não para lhe conceder o gozo da coisa objecto da promessa cuja tradição obteve, pelo que o pedido de reconhecimento do direito de retenção não é subsumível “ao direito à restituição de bens que pode ser exercido a todo o tempo”.
Em suma, constituindo as pretensões formuladas pela autora providências de natureza obrigacional ou creditícia, não se integram no exercício do “direito à restituição ou separação de bens” da massa falida a que alude o artigo 146º, nº 2, do CIRE, pelo que só lhe resta, se assim o entender, instaurar nova acção na qual formule um pedido compatível com aquele direito.
Por último, a invocação pela autora da posse sobre a fracção e os aparcamentos dos autos, com o conteúdo de uma actuação correspondente ao direito de propriedade, além de não encontrar a mínima correspondência no pedido formulado, sempre careceria de relevância enquanto modo de aquisição originária da propriedade, pois segundo alegado, a posse só se iniciou com a tradição da fracção e dos aparcamentos, não havendo registo de título nem da mera posse (artigos 1295° e 1296° do Código Civil).
Assim, mesmo que se entenda que o prazo de propositura da acção de verificação ulterior de créditos a que se refere o artigo 146º, nº 2, al. b), do CIRE, por regulador da reclamação e verificação de créditos na insolvência pendente, tem natureza processual, o certo é que há muito se acha ultrapassado o prazo de seis meses a que alude aquele normativo, pelo que sempre teria de se considerar extinta a possibilidade do direito da autora ser verificado no processo de insolvência.
Nenhuma censura merece, pois, a decisão recorrida.

Sumário:
I – O prazo de seis meses previsto na alínea b) do nº 2 do artigo 146º do CIRE, apenas é aplicável a situações de reclamação de créditos e não às de separação ou restituição de bens.
II – As pretensões emergentes do não cumprimento de contrato promessa de compra e venda ainda que dotado de eficácia real – execução específica e reconhecimento do direito de retenção – constituindo providências de natureza obrigacional ou creditícia, não se integram no exercício do “direito à restituição ou separação de bens” da massa falida a que alude o artigo 146º, nº 2, do CIRE.
III – Os pedidos assim formulados em acção fundada nesse incumprimento contratual estão sujeitos ao regime de caducidade cominado no artigo 146º, nº 2, al. b), do CIRE.

IV – DECISÃO
Termos em que acordam os Juízes desta Secção Cível em julgar improcedente a apelação, confirmando o saneador/sentença recorrido.
Custas pela recorrente.

Guimarães, 26 de Fevereiro de 2015
Manuel Bargado
Helena Gomes de Melo
Heitor Gonçalves
________________________________
[1] Cfr., inter alia, o Acórdão desta Relação de 15.11.2012 (Manso Rainho), proc. 123/11.0TBPCR-I.G1, in www.dgsi.pt, tal como os demais que vierem a ser citados sem indicação diferente.
[2] Neste sentido, entre outros, os Acórdãos da Relação do Porto de 10.04.2014 (José Manuel de Araújo Barros), proc. 1218/12.9TJVNF-P.P1 e de 27.03.2014 (Judite Pires), proc. 1218/12.9TJVNF-W.P1.
[3] Ac. do STJ de 06.03.2014 (Alves Velho), proc. 652/03.0TYVNG-Q.P1.S1, na esteira, aliás, do Ac. do STJ de 07.07.1999 (Garcia Marques), BMJ, 489º-259.
[4] Cfr. Ac. do STJ de 20.10.2011 (Tavares de Paiva), proc. 2113/07.1TBSTR-B.E1.S1.