Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3274/16.1T8VNF.G1
Relator: ANTÓNIO FIGUEIREDO DE ALMEIDA
Descritores: SEGURO DE DANO
FURTO
PRIVAÇÃO DO USO DE VEÍCULO
LEGITIMIDADE
LOCAÇÃO FINANCEIRA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/21/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
SUMÁRIO do relator

1) No seguro de danos próprios, em que há uma perda total do veículo, devido a furto, em regra, não há lugar ao ressarcimento da privação de uso, salvo se tal eventualidade tiver sido acordada entre as partes;

2) No caso da legitimidade, tratando-se de uma exceção de conhecimento oficioso, não existe impedimento legal ao seu conhecimento, pela Relação, mesmo que não tenha sido suscitada nos articulados e apenas em sede de recurso tenha sido levantada, dado que o tribunal sempre a poderia apreciar oficiosamente, desde que não transitada em julgado e uma vez respeitado o princípio do contraditório;

3) Na vigência do contrato de locação financeira qualquer ato ilícito praticado contra o bem locado confere ao locatário legitimidade para demandar quem com tais atos o prejudicou, ou tenha a obrigação de ressarcir.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

A) L. A. veio intentar ação declarativa com processo comum contra X Seguros, S.A., onde conclui pedindo que a ação seja julgada procedente, por provada e, em consequência, a ré ser condenada a pagar à autora quantia nunca inferior a €39.220,00, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento.

A ré X Seguros, S.A. veio apresentar contestação onde conclui entendendo dever a ação ser julgada improcedente, por não provada e, consequentemente, a ré ser absolvida do pedido.
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Foi elaborado despacho saneador, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova.
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Procedeu-se a julgamento e foi proferida sentença que decidiu julgar a presente ação parcialmente procedente, por provada e, em consequência:

a) Condenar a ré X Seguros, SA a pagar à autora L. A. a quantia de €25.200,00, acrescida de juros de 4%, contados desde o dia 16 de abril de 2015, até efetivo e integral pagamento;
b) Condenar a ré X Seguros, SA, a pagar à autora L. A., a título de danos não patrimoniais, a quantia de €1.000,00, acrescida de juros de 4%, contados desde a citação, até efetivo e integral pagamento;
c) Absolver a ré X Seguros, SA, do demais contra si peticionado pela autora L. A.;
d) Condenar a autora L. A. e a ré X Seguros, SA, no pagamento das custas processuais da ação, na proporção dos respetivos decaimentos.
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B) Inconformada com a decisão proferida, veio a autora L. A. interpor recurso independente (fls. 136 vº e segs.) e a ré X Seguros, SA, recurso subordinado (149 vº), os quais foram admitidos como sendo de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito devolutivo (fls. 162).
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C) Nas alegações de recurso (independente) da apelante L. A., são formuladas as seguintes conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto do conteúdo da douta sentença proferida pelo tribunal a quo, na parte em que decretou a absolvição da ré do pedido de indemnização a título de privação do uso, que naquele momento já se quantificava no valor de €36.540,00.
2. A ré falhou em provar a legitimidade da sua recusa/hesitação em pagar a indemnização, pelo que essa recusa permanece inexplicada e injustificada, tendo provocado prejuízos na esfera da recorrente, que se viu privada do seu veículo e da respetiva indemnização.
3. Tal atraso poderia ter sido evitado se a ré seguradora tivesse procedido ao pagamento da indemnização aquando do acionamento do seguro por parte da aqui recorrente.
4. A decisão, salvo melhor opinião, sobre o atraso no pagamento da indeminização, não poderia ser imputado à aqui recorrente (segurada), mas sim à seguradora.
5. A aqui recorrente intentou a ação no decurso dos 3 anos conforme a Lei substantiva aplicável ao caso.
6. A seguradora é que incumpriu o contrato celebrado entre as partes nomeadamente quanto à boa-fé e à pontualidade do seu cumprimento, nos termos dos artigos 406º e 762º do C.C., para além da violação da Lei do contrato de seguro.
7. O atraso no pagamento da indeminização não é imputável à aqui recorrente, mas sim à recorrida seguradora destes autos.
8. A recorrente foi lesada nos seus interesses de proprietária de um bem que lhe foi subtraído, por razões que lhe são alheias, vendo-se privada do seu uso e de todas as vantagens que este lhe trazia. Estes interesses devem ser tutelados.
9. Apesar de existirem acórdãos do Tribunal da Relação contraditórios sobre a mesma legislação e questão de direito, o que se invoca para todos os efeitos legais, a decisão (douta sentença) está em contradição com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Dezembro de 2014 (Revista nº 2604/13.2TBBCL.G1.S1) que enuncia que “a privação do uso de um veículo automóvel constitui um dano autónomo indemnizável na medida em que o seu dono fica impedido do exercício dos direitos de usar, fruir e dispor inerentes à propriedade, que o artigo 1305º do Código Civil lhe confere de modo pleno e exclusivo, bastando para o efeito que o lesado alegue e demonstre, para além da impossibilidade de utilização do bem, que esta privação gerou perda de utilidades que o mesmo lhe proporcionava.”
10. Ficou provado, na douta sentença recorrida, que a recorrente, até hoje, depende da ajuda de amigos e familiares, que lhe disponibilizam os próprios veículos, para se deslocar para o local de trabalho e para levar a cabo a sua rotina diária.
11. A ré nunca colocou à disposição da autora/recorrente um veículo de substituição ou qualquer quantitativo para aluguer de um veículo de substituição.
12. A autora padeceu de transtornos, aborrecimentos, abatimento e desassossego.
13. Fica, assim, provada a perda de utilidade que o veículo proporcionava à recorrente, que se tornou completamente dependente da boa vontade de amigos e familiares, para se deslocar diariamente ao local de trabalho e para levar a cabo outras tarefas diárias essenciais.
14. O acórdão do Supremo tribunal de Justiça enunciado enuncia que se a seguradora demora injustificadamente na resolução do caso resultante dessa mora para o segurado, responde por esse inadimplemento. Esta solução não conflitua com as disposições consagradas no regime de contrato de seguro.
15. Assim, entende a recorrente que estavam reunidos todos os pressupostos para cumprir este entendimento do acórdão, não entendendo porque o tribunal “a quo” não seguiu entendimento, visto que a seguradora não efetuou o pagamento após o prazo de 40 dias, conforme apólice, gerando assim um dano indemnizável à autora/recorrente.
16. Assim, deve ser reconhecida razão à recorrente/autora, sendo revogada a sentença na parte em que absolve a ré do pagamento da privação de uso à recorrente e devendo aquela ser condenada no pagamento de indemnização pela privação do uso do veículo até ao trânsito da decisão final.
17. A recorrente, pelo enunciado, considera que estão reunidos os pressupostos do artigo 678º do Código do Processo Civil, requerendo assim recurso per saltum para o Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo do artigo 678º do Código de Processo Civil.

Termina entendendo dever o recurso subir diretamente para o Supremo Tribunal de Justiça, como Recurso Per Saltum, nos termos do artigo 678.º e seguintes do Código do Processo Civil ou, caso assim não se entenda, que suba como Recurso de Apelação para o douto Tribunal da Relação de Guimarães nos termos do artigo 644º/1 e seguintes do C.P.C., sem prescindir que estão em causa acórdãos contraditórios anteriormente proferidos conforme supra enunciado.

Em ambos os casos deve:

Ser reconhecida razão à recorrente/autora, sendo revogada a sentença na parte em que absolve a ré do pagamento da privação de uso à recorrente e devendo aquela ser condenada no pagamento de indemnização pela privação do uso do veículo até ao trânsito da decisão final.
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A ré X Seguros, SA, apresentou resposta onde entende dever o recurso ser julgado improcedente.
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D) Nas alegações de recurso (subordinado) da apelante X Seguros, SA, são formuladas as seguintes conclusões:

1. Apesar da ré só agora vir suscitar a ilegitimidade processual ativa da autora e de ter impugnado os factos alegados na petição inicial, sem objetivamente ter referido a ilegitimidade substantiva daquela, tal não obsta a que o Tribunal conheça desta última, sem que tal redunde na prolação de decisão surpresa (cfr., acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19-02-2015, no processo 148143/13.OYPRT.L1-2 em que foi Relator Ezaguy Martins e acessível in www.dgsi.pt).
2. Entende a ré, que a autora, enquanto locatária do veículo automóvel com a matrícula MS, não tem legitimidade para intentar (como intentou) a presente ação, porquanto tal legitimidade cabe à proprietária (Banco B GMBH, SUCURSAL PORTUGUESA).
3. A legitimidade das partes é um pressuposto processual.
4. A legitimidade das partes é um requisito de que depende o dever de o juiz proferir decisão sobre o mérito da causa, concedendo ou denegando a providência requerida.
5. Nos termos do disposto do artigo 30º nº 1 do Código Processual Civil, “o autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer”, sendo que, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 30º do CPC, “o interesse em demandar significa, assim, a utilidade para o autor e o prejuízo para o réu”.
6. Por conseguinte, a legitimidade das partes, como pressuposto processual, exprime a relação entre a parte no processo e o objetivo deste (a pretensão do pedido) e, portanto, a posição que a parte deve ter para que se possa ocupar do pedido, deduzindo-o ou contradizendo-o.
7. A legitimidade é, assim, no campo do direito material um conceito de relação entre o sujeito e o objeto do ato jurídico, entendendo-se que a ilegitimidade de qualquer das partes só se verificará quando em juízo se não encontrar o titular da alegada relação material controvertida ou quando legalmente não permitida a titularidade daquela relação.
8. A legitimidade não é, portanto, uma qualidade pessoal das partes, mas uma certa posição delas em face da relação material litigada, que se traduz no poder legal de dispor dessa relação, por via processual (cfr., Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1993, pág. 84).
9. Como refere o Ac. do STJ de 27 de Junho de 1995 (disponível in www,dgsi.pt), “a legitimidade resulta concretamente para o autor da utilidade derivada da procedência da ação”.
10. No caso concreto dos presentes autos, estamos perante um contrato de locação financeira.
11. De facto, tal como a autora configurou a pretensão, constata-se que o veículo com a matrícula MS está na posse da mesma na sequência da realização de um contrato de locação financeira com a proprietária desse mesmo veículo.
12. O artigo 1º do Decreto Lei 446/85, de 25 de outubro caracteriza o contrato de locação financeira como aquele “pelo qual uma das partes se obriga mediante retribuição, a conceder a outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o prazo acordado por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados”.
13. Pode assim dizer-se, que este é o contrato pelo qual certo indivíduo ou empresa – locatário – necessitando de certo bem, em lugar de o comprar, pede a outra – locador –, normalmente uma sociedade do sector financeiro, que esta o adquira ou construa por sua indicação com o compromisso de depois lhe ceder a sua utilização, por certo período de tempo, mediante uma renda periódica, com a faculdade de optar pela sua compra no final do contrato, nos termos próprios desse contrato, mediante um preço pré-estabelecido.
14. Resulta assim da definição deste contrato que ao locatário não lhe é cedida a propriedade do bem pelo locador, mas a sua posse e utilização para o potestativo direito de o adquirir, pelo preço que tenha sido ajustado, após a conclusão de todos os pagamentos que, em princípio, deverá corresponder ao seu presumível valor residual. Este valor é aquele pelo qual o locatário tem a opção (faculdade) de adquirir o bem. Será o preço de compra.
15. Tendo em conta o contrato de locação financeira junto aos autos, resulta – como assente – que em Março de 2013 a autora celebrou um contrato de locação financeira com a “Banco B, Sucursal Portuguesa” para aquisição do veículo automóvel ligeiro de passageiros da marca BMW, modelo 116d, com a matrícula MS, a que foi atribuído o nº 411110, em que esta se obrigou, mediante retribuição, a ceder à autora o gozo temporário da aludida viatura e que ela poderia comprar essa mesma viatura – no final do contrato – nos termos contratualmente fixados.
16. Sendo a autora detentora de um mero direito de gozo sobre o bem, a procedência, ou não, da ação não tem para si qualquer utilidade, porquanto a indemnização eventualmente a arbitrar está reservada ao proprietário da coisa, enquanto sujeito da relação material controvertida.
17. Assim sendo, a autora carece de legitimidade ativa na presente ação, pelo que deve a ré ser absolvida da instância (cfr., artigos 278º, nº 1, al. d), 577º, al. e) e 578º, todos do Código de Processo Civil).
18. Face a tudo o aqui exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente, com todas as consequências daí decorrentes.

Termina entendendo dever o presente recurso subordinado ser julgado procedente e, consequentemente, deve ser lavrado acórdão nos termos e com os fundamentos aqui expostos.
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Foi apresentada resposta pela autora L. A., onde entende que o recurso deve ser julgado totalmente improcedente, por não provado
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E) Foram colhidos os vistos legais.

F) As questões a decidir nos recursos são as de saber:

I. Recurso (independente) da apelante L. A.

- Se a ré deverá ser condenada no pagamento à autora de indemnização a título de privação de uso.

II. Recurso (subordinado) da apelante X Seguros, SA

- Se a autora é parte ilegítima.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

A) Na 1ª instância resultou apurada a seguinte matéria de facto:

I. Factos Provados

1. Por contrato escrito celebrado no dia 12 de abril de 2013, denominado «contrato de locação financeira», ajustado entre BANCO B SUCURSAL e a autora L. A., entre o mais que consta de fls. 08 a 11 (e que aqui se dá por reproduzido), a primeira proporcionou à segunda, pelo período de 84 meses, o gozo do veículo automóvel BMW (modelo 1K4 VAR 1C91 VER 5H000 e com quadro nº …), com a matrícula MS, obrigando-se esta a pagar uma renda mensal, com a possibilidade de, findo o contrato, adquirir o automóvel, mediante o pagamento de um valor residual;
2. Por contrato de seguro ajustado no dia 14 de abril de 2013, válido pelo período de 01 ano e renovável por idênticos períodos, celebrado entre a ré X SEGUROS, SA (na qualidade de seguradora), a BANCO B SUCURSAL (na qualidade de tomadora do seguro) e a autora L. A. (na qualidade de segurada), titulado pela apólice nº 034/01858959/0001, a primeira assumiu a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo de matrícula MS, assim como, a título facultativo, aceitou pagar à terceira, o capital seguro de €25.200,00, em caso, entre o mais, de furto ou roubo, tudo mediante o pagamento de um prémio pela segunda, conforme condições gerais, particulares e especiais constantes de fls. 26 a 59 (que aqui se dão por reproduzidas);
3. Nas condições especiais da cobertura facultativa de «Furto ou Roubo» consta, entre o mais o seguinte: «Cláusula 1ª: Mediante a contratação desta condição especial, a X Seguros garante o pagamento dos danos do veículo seguro resultantes de desaparecimento, destruição ou deterioração em consequência de furto, roubo ou furto de uso, consumado ou tentado. A) Desaparecimento do Veículo: - A indemnização será paga decorridos 40 dias contados desde a participação da ocorrência às autoridades competentes, se no fim desse período o mesmo não tiver sido encontrado; - O valor da indemnização será calculado de acordo com o previsto na Cláusula 5.ª das Condições Gerais aplicáveis às coberturas facultativas do seguro automóvel (…)»;
4. Na cláusula 5ª das Condições Gerais aplicáveis às coberturas facultativas do seguro automóvel consta o seguinte: «1. O capital seguro corresponde, em cada anuidade do contrato, ao valor de compra do veículo, conforme fatura de aquisição do mesmo. 2. Em caso de sinistro, a X Seguros pagará: a) Em caso de perda total, o capital seguro calculado de acordo com o estabelecido na tabela de desvalorização, anexa às presentes Condições (… ) Anexo 2 - Tabela de desvalorização: De 0 a 2 anos – 0%»;
5. Na cláusula 4ª/al. b) («Exclusões»), relativa às Condições Gerais das Coberturas Facultativas do Seguro Automóvel, constam como excluídos «os danos causados, deliberadamente ou intencionalmente, com o veículo ou ao veículo seguro, pelo Tomador do Seguro, pelo Segurado, pelo condutor e restantes ocupantes ou por pessoas por quem eles sejam civilmente responsáveis»;
6. No período compreendido entre as 21h do dia 05 de março de 2015 e as 09,00h do dia 06 de março de 2015, o veículo de matrícula MS foi subtraído à autora, por terceiros não identificados, na Rua …, Vila Nova de Famalicão, local onde o havia estacionado;
7. O local referido em 6) fica em frente ao prédio onde residia a autora;
8. No dia 06 de março de 2015, após se ter apercebido do referido em 6), a autora apresentou denúncia do furto na P.S.P. de Vila Nova de Famalicão;
9. Na sequência da denúncia referida em 8), correu termos na 2ª Secção do DIAP da Comarca de Braga, com sede em Vila Nova de Famalicão, o inquérito nº 188/15.6PAVNF, o qual veio a ser arquivado por despacho proferido no dia 22 de abril de 2015, com o seguinte teor: «Não obstante as diligências efetuadas, não foi possível obter indício sobre a identidade do autor dos factos denunciados nos presentes autos. Por outro lado, não se vislumbram diligências de prova que possam conduzir à sua identificação. Em conformidade, determino o arquivamento dos autos, nos termos do artigo 277º, nº 2, do Código de Processo Penal»;
10. Até ao presente, o veículo de matrícula MS não foi recuperado, nem identificados os autores dos factos referidos em 6);
11. Na data referida em 6), o contrato de seguro descrito em 2) estava em vigor;
12. A autora participou à ré os factos referidos em 6);
13. Por carta datada de 24 de abril de 2015, a ré comunicou à autora o seguinte:

«Relativamente ao furto com data de ocorrência de 06-03-2015 e veículo seguro de matrícula MS, informamos que não podemos aceitar qualquer responsabilidade. O sinistro não ocorreu conforme participado.

Em face dos elementos que reunimos, é nosso entendimento de que não se encontra feita prova de que o sinistro tenha ocorrido conforme participado. Assim sendo, iremos proceder ao encerramento do nosso processo sem atribuição de qualquer indemnização»;
14. A autora servia-se do veículo de matrícula MS para ir e regressar do seu local de trabalho, sito em Joane, Vila Nova de Famalicão;
15. A autora servia-se do veículo de matrícula MS para tratar de afazeres pessoais, ir às compras e ao médico, visitar e passear com familiares e amigos, tanto à semana, como ao fim-de-semana;
16. Desde a data referida em 6), a autora está privada de fruir e usar do veículo de matrícula MS;
17. Desde a data referida em 6), a autora socorre-se do empréstimo de automóveis e de boleias, por parte de familiares e amigos;
18. A ré não disponibilizou à autora qualquer veículo de substituição ou qualquer quantitativo diário para aluguer de veículo sucedâneo;
19. Em consequência do referido de 12) a 18), a autora padeceu de transtornos, aborrecimentos, abatimento e desassossego.
20. Na data referida em 6), a autora tinha as duas chaves originais do veículo, sendo que a suplente estava guardada na sua residência, onde residia sozinha;
21. Na sequência de exame efetuado à chave suplente do veículo de matrícula MS, a ré teve conhecimento que constava, como data da sua última utilização, o dia 05 de março de 2015, pelas 23,45h;
22. A ré comunicou e explicou à autora, através da entidade vendedora, o conteúdo das cláusulas referidas de 3) a 5).
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II. Factos não provados

a) Desde a data referida em 6), a autora socorre-se de transportes públicos e táxis.
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B) O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo o tribunal conhecer de outras questões, que não tenham sido suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
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C) Recurso da apelante L. A.

A autora discorda unicamente da sentença, na parte em que decretou a absolvição da ré do pedido de indemnização a título de privação do uso, que naquele momento já se quantificava no valor de €36.540,00.
Recorde-se que decisão recorrida decidiu condenar a ré X Seguros, SA a pagar à autora L. A. a quantia de €25.200,00, acrescida de juros de 4%, contados desde o dia 16 de abril de 2015, até efetivo e integral pagamento e, ainda, a título de ressarcimento dos danos não patrimoniais, a quantia de €1.000,00, acrescida de juros de 4%, contados desde a citação, até efetivo e integral pagamento e, no mais, absolver a ré X Seguros, SA.

Vejamos.

Conforme se refere no Acórdão da Relação de Guimarães de 26/06/2014, no processo nº 384/12.8TBPTB.G1, no que se refere à privação do uso do veículo, defendeu-se a ressarcibilidade da sua privação de uso, nomeadamente, no acórdão desta Relação de Guimarães de 23/10/2012, na apelação nº 3118/11.0TBBRG.G1, onde, citando o Acórdão desta Relação de Guimarães de 29/03/2011, proferido na Apelação nº 2444/03.7TBGMR.G1, relatado pela Desembargadora Eva Almeida se pode ler que “a indemnização do dano de privação do uso de veículo automóvel encontra-se sobejamente debatida na nossa jurisprudência, embora não tenha obtido uma resposta uniforme quanto à sua natureza.

Na doutrina, sustentam a reparabilidade do dano de privação do uso, António dos Santos Abrantes Geraldes, Indemnização do Dano de Privação do Uso, Almedina, Coimbra, 2001, págs. 30 e ss., págs. 316 e 317, Luís Manuel Teles Menezes Leitão, Direito das Obrigações, 2ª edição, vol. I, Almedina, Coimbra, págs. 316 e 317 e nota (657) e Júlio Gomes, RDE, nº 12, 1986, págs. 169 e ss..

Entendemos e não estamos sós (acórdãos da Relação do Porto, processos 1070/04.8TBMDL.P1, 2247/08.2TBMTS.P1, 134/06.8TBARC.P1, 6020/07.7TBVNG.P1 e nº 3986/06.8TBVFR.P1 – da Relação de Lisboa proc. nº 8457/2007-7- da Relação de Guimarães, processos 880/08.1TBGMR.G1 e 8860/06.5TBBRG.G1 – todos em www.dgsi.pt), que o uso de bens de consumo duradouro, como uma habitação ou um veículo automóvel, tem um valor e que a privação desse uso é indemnizável.
No tocante aos veículos automóveis não se discute o dever de indemnizar quando o lesado aluga um outro veículo para substituir o sinistrado, enquanto este é reparado ou até adquirir uma nova viatura.
O dano e consequente indemnização correspondem ao preço do aluguer (renda) pago.
O mesmo sucede quando o lesado recorre a transportes alternativos.
O dever de indemnizar corresponde, neste último caso, ao valor despendido com tais transportes.
O que se discutiu durante algum tempo era se existiria dano indemnizável quando o lesado não alugava uma outra viatura.
Até há cerca de 20 anos só era atribuída indemnização nas primeiras hipóteses que referimos.
Contudo a jurisprudência passou a questionar este benefício dado ao lesante: se o lesado alugasse uma viatura, o lesante tinha de o indemnizar pelo valor despendido; se o lesado, recorresse a boleias ou ao empréstimo do veículo de algum amigo ou familiar, já o lesante não tinha de indemnizar.
Afinal, o favor dos amigos ao lesado ou a sua falta de transporte revertia a favor do lesante!
Reconhecendo que o não poder utilizar o respetivo automóvel constituía um transtorno considerável, parte da jurisprudência entendeu que tal dano tinha natureza não patrimonial e deveria ser indemnizado enquanto tal.

Outra parte, cujo entendimento, pelo menos ao nível da segunda instância (para além dos acórdãos citados na nota anterior ver ainda o acórdão da Relação do Porto de 11.2.2010, processo 765/08.1TBOVR.P1, cujo entendimento perfilhamos aqui e no nosso acórdão de 21.9.2010 - Processo nº 37/07.9TBVLN.G1), cremos que é hoje preponderante, concluiu que o proprietário que se vê privado do uso do seu veículo automóvel sofre um dano de natureza patrimonial, que mais não seja porque tal dano não existiria se lhe fosse proporcionada uma viatura idêntica, isto é, que se trata de um dano que pode ser totalmente reparado com dinheiro, o que é algo que nunca sucede com os danos de natureza não patrimonial.

A dificuldade em avaliar ou quantificar tal dano quando o lesado não aluga outra viatura poderia ser sempre obviada, faltando outros elementos, com o arbitramento da indemnização com base na equidade, como previsto no artº 566º nº 3 do Código Civil.

Assim, porque os bens têm um valor de uso, tal como no domínio dos bens imóveis se entendeu que a privação do seu uso deveria ser indemnizada com o valor correspondente às rendas que poderiam proporcionar, ainda que não estivessem arrendados, nem fosse essa a intenção do proprietário lesado, também os veículos automóveis têm um valor de uso, havendo apenas que o determinar.”

Na hipótese de não haver aluguer de veículo, qual deverá ser o critério para fixar o valor devido pela indemnização da privação do uso?

Se não houver aluguer de veículo, nem qualquer outro elemento que nos permita fixar um valor, não poderemos deixar de recorrer à equidade.
E, prossegue aquele aresto, “equidade não corresponde a arbitrariedade pura e absoluta – um valor qualquer que o juiz fixa, sem mais.

O artº 566º nº 3 diz-nos que, se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o Tribunal julgará equitativamente, dentro dos limites que tiver por provados.
Embora se trate do mesmo “juízo de equidade” que o legislador manda observar na fixação do preço na compra e venda (artº 883º), ou mesmo no artº 496º 3, não podemos esquecer que estamos no domínio do dano patrimonial e por isso trata-se antes de mais de avaliar o dano, de o quantificar (e não de fixar equitativamente uma indemnização em virtude do dano não ser quantificável, nem mensurável, como o é o dano não patrimonial).
Não estamos a compensar o lesado por incómodos e transtornos (embora os possa ter tido).

Mas não deixa de ser compensado ainda que possuísse outra viatura.”

Se se admite a ressarcibilidade do dano resultante da privação de uso de veículo, em caso de acidente de viação, independentemente de tal risco poder estar coberto pelo contrato, não será admissível tal indemnização quando se trata de uma situação de seguro de danos próprios em que há uma perda total do bem segurado e a seguradora não indemniza tempestivamente o beneficiário do seguro?

Poder-se-á argumentar – como o faz a apelada seguradora – que, com base no nº 2 e 3 do artigo 130º do Decreto-Lei nº 72/2008, de 16/04, que o ressarcimento da privação de uso não é admissível, uma vez que não foi contratualizada.

Refere-se no normativo citado que:

2. No seguro de coisas, o segurador apenas responde pelos lucros cessantes resultantes do sinistro se assim for convencionado.
3. O disposto no número anterior aplica-se igualmente quanto ao valor de privação de uso do bem.
Mas é importante notar que a mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor, que se considera constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efetuada no tempo devido (artigo 804º Código Civil).

Sucede, porém, que, por força do disposto no artigo 806º do Código Civil, no caso das obrigações pecuniárias, conforme sucede na presente situação, a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora, sendo os juros devidos os juros legais, salvo se antes da mora for devido um juro mais elevado ou as partes houverem estipulado um juro moratório diferente do legal, sendo certo que pode, no entanto, o credor provar que a mora lhe causou dano superior aos juros referidos e exigir indemnização suplementar correspondente, quando se trate de responsabilidade por factos ilícitos ou pelo risco.

Porém há que notar que este último regime apontado – quanto à possibilidade de o credor provar que a mora lhe causou dano superior aos juros referidos e exigir indemnização suplementar correspondente, quando se trate de responsabilidade por factos ilícitos ou pelo risco – conforme resulta da parte final do artigo, apenas é aplicável no domínio da responsabilidade civil extracontratual (cfr. Acórdão STJ de 22/03/2007, in www.dgsi.pt)

Uma vez que a responsabilidade em apreço é apenas de natureza contratual, não pode a autora pretender prevalecer-se da possibilidade de ver ressarcida a privação de uso de veículo, uma vez que está em causa uma situação de seguro de danos próprios em que há uma perda total do bem segurado, em que a segurada é a autora, pelo que a resposta à questão acima colocada terá de ser negativa, a menos que houvesse uma manifesta e clamorosa violação das regras da boa-fé, o que não é o caso dos autos.

Assim sendo, resulta que no seguro de danos próprios, em que há uma perda total do veículo, devido a furto, por regra, não há lugar ao ressarcimento da privação de uso, salvo se tal eventualidade tiver sido acordada entre as partes, o que não ocorreu na situação dos presentes autos, pelo que se manterá a douta sentença e a apelação terá de improceder.
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D) Recurso (subordinado) da apelante X Seguros, SA

A ré X Seguros, SA, veio interpor recurso subordinado onde vem suscitar a questão da ilegitimidade da autora, enquanto locatária do veículo automóvel MS para intentar, como intentou a presente ação, porquanto tal legitimidade cabe à proprietária – Banco B, Sucursal Portuguesa.

Importa dizer que tal questão não foi suscitada nos articulados, na 1ª instância e apenas em sede de recurso veio a ser levantada.

Como se refere no Acórdão do STJ de 22.02.2017, na Revista nº 1519/15.4T8LSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt, “os recursos não visam criar e emitir decisões novas sobre questões novas, mas impugnar, reapreciar e, eventualmente modificar as decisões do tribunal recorrido, sobre os pontos questionados e “dentro dos mesmos pressupostos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento em que a proferiu”. Dito de outra forma, não pode o tribunal de recurso “conhecer de questões que não tenham sido objeto da decisão recorrida ou que as partes não suscitaram perante o tribunal recorrido” (arts. 627º, n.º 1 e 635º, n.º 2 e 4 do CPC) (cfr. neste sentido os acs. STJ de 6.06.2000, CJ STJ, II, 2000/101; de 15.09.2010, proc. 322/05.4TAEVR.E1.S1; de 27.05.1998, BMJ, 447º-362 e ainda o desta secção de 14.01.2015, proc. 2881/07.8TTLSB.L1.S1, entre muitos outros).”

No caso da legitimidade, tratando-se de uma exceção de conhecimento oficioso (cfr artigos 577º e) e 578º NCPC) não existe impedimento legal ao seu conhecimento, por esta Relação, dado que sempre poderia o tribunal apreciá-la oficiosamente, desde que não transitada em julgado.

Conforme refere o Conselheiro António Santos Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, página 88, sendo admissível recurso da “parte dispositiva da sentença”, é legítimo à parte confrontar o tribunal com questões de conhecimento oficioso, ainda que estas não tenham sido anteriormente suscitadas, desde que a sua decisão não esteja coberta pelo caso julgado. Do mesmo modo, para a decisão do recurso, pode o tribunal apreciar tais questões ex officio, posto que sobre as mesmas não tenha existido anterior pronúncia, ou ainda que não tenham sido suscitadas pelo recorrente ou pelo recorrido, embora deva acautelar o princípio do contraditório, a fim de evitar decisões-surpresa.

Ora, conforme se escreveu no Acórdão desta Relação de Guimarães de 09/07/2015, relatado pelo Desembargador António Santos, “nesta matéria (a da legitimidade das partes), dispõe o artigo 30º do Cód. de Proc. Civil que:

«1. O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse em contradizer.
2. O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer, pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
3. Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida tal como é configurada pelo autor.»

A disposição legal acabada de citar como que define a legitimidade como o poder de dirigir o processo através da titularidade do objeto do processo (a relação controvertida).

Assim, pelo lado ativo, será parte legítima quem tiver interesse direto em demandar e, será parte legítima, como réu (lado passivo), quem tiver interesse direto em contradizer, sendo que o interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer, pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
Já o nº 3 da disposição legal referida, ao fixar uma regra supletiva para a determinação da legitimidade, estipulando que sempre que a lei não disponha de outro modo, considerar-se-ão como titulares do interesse relevante os sujeitos da relação controvertida, tal com é ela configurada pelo autor, de uma vez por todas veio pôr termo à polémica entre os defensores da corrente subjetivista e os da corrente objetivista.

Elucidativa é, de resto e a propósito, o que no preâmbulo do D.L. 329-A/95, de 12/12 foi escrito, designadamente que "decidiu-se (..) após madura reflexão, tomar posição expressa sobre a vexata quaestio do estabelecimento do critério de determinação da legitimidade das partes visando" (…) “pôr termo a uma querela jurídico-processual que há várias décadas se vem interminavelmente debatendo na nossa doutrina e jurisprudência sem que se haja até agora alcançado consenso".

E logo se acrescenta em seguida que “partiu-se, para tal, de uma formulação de legitimidade semelhante à adotada no D.L. 224/82 (de 8/06) e assente, consequentemente, na titularidade da relação material controvertida, tal como a configura o autor, próxima da posição imputada a Barbosa de Magalhães na controvérsia que historicamente o opôs a Alberto do Reis".

Conforme se refere no Acórdão da Relação do Porto de 15/12/2016, no processo 28/16.9T8FLG.P1 (www.dgsi.pt), relatado pelo Desembargador Oliveira Abreu, “o contrato de locação financeira rege-se pelas disposições do Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de junho, com as alterações introduzidas pelos Decreto-Lei nº 265/97, de 02 de outubro, Decreto-Lei nº 285/01, de 3 de novembro, e Decreto-Lei nº 30/08, de 25 de fevereiro.

Assim, o artº 1º do Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de junho (alterado pelo Decreto-Lei nº 265/97, de 2 de outubro, e pelo Decreto-Lei nº 285/2001, de 3 de novembro), define a locação financeira como “o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados”.

A consignada noção de locação financeira assume um cariz mais económico que jurídico e da qual podemos retirar os seguintes elementos: - a cedência temporária de uma coisa pela locadora: - a aquisição ou construção dessa coisa por indicação do locatário; - a retribuição correspondente à cedência; - a fixação de um prazo para a cedência; - a possibilidade de compra, total ou parcial, por parte do locatário; e - determinação ou determinabilidade do preço a pagar pela compra, nos termos do contrato.
O contrato de locação financeira, como esta própria denominação o revela, tem uma finalidade creditícia.

Como defende Diogo Leite de Campos, apud, Ensaio de Análise Tipológica do Contrato de Locação Financeira, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade Católica, volume XXIII, página 10, “a locação financeira pode ser definida como o contrato a médio ou a longo prazo dirigido a financiar alguém, não através da prestação de uma quantia em dinheiro, mas através do uso de um bem. Proporciona-se ao locatário não tanto a propriedade de determinados bens, mas a sua posse e utilização para determinados fins”.

Ou, como sustenta Abrantes Geraldes, apud, Temas da Reforma do Processo Civil, Procedimentos Cautelares Especificados, IV volume, 4ª edição revista e atualizada, Almedina, páginas 338, 339, “o contrato de locação financeira reúne elementos que normalmente caracterizam outros tipos de contratos mas que aqui se encontram conjugados: por um lado, a cedência temporária de um bem adquirido ou construído por indicação do locatário; por outro, a opção de compra, findo o período contratual, mediante o pagamento de um valor previamente definido ou, ao menos, determinável de acordo com critérios prefixados. Através de tal contrato conseguem-se alcançar benefícios de ordem económica e financeira, na medida em que se associam formas de financiamento e modos capazes de proporcionar a fruição de bens, sem que o fruidor tenha de desembolsar imediatamente a totalidade do preço”.

No mesmo sentido, entre outros, Calvão da Silva, apud, Locação Financeira e Garantia Bancária, Estudos de Direito Comercial, páginas 14 e 15; Sebastião Pizarro, O Contrato de Locação Financeira, páginas 27 e seguintes; Gravato de Morais, Manual da Locação Financeira, página 114.

Acerca das especificidades do regime do contrato de locação financeiras, e porque ao caso interessa, consignamos o que a propósito defende Diogo Leite de Campos, apud, Ensaio de análise tipológica do contrato de locação financeira, publicado no Boletim da Faculdade de Direito da Universidade Católica, volume LXIII, ao enunciar que “resulta do regime do contrato, tal como consta da lei, a sociedade de locação financeira entrega ao locatário um bem (fração autónoma), escolhido por este e adquirido para o efeito por aquela, que o locatário usará e fruirá durante todo o tempo de duração do contrato, ficando ainda investido no direito de, no final do contrato, exercer a opção de compra do bem, por um valor residual.
O risco de perecimento da coisa corre por conta do locatário. E bem se compreende que assim seja: a coisa é-lhe apenas dada em locação; mas é-o por ter sido comprada para ele, no seu interesse (em atenção às suas necessidades de investimento) e não oferecida em locação pelo locador.
É sobre o locatário que recai o dever de conservar e reparar a coisa.
O locador, na locação financeira, não explora o bem. Não tem intenção de correr os riscos próprios do proprietário, nomeadamente o risco económico da não rentabilidade da coisa e do seu perecimento. Ele desinteressa-se da coisa. Não escolhe o bem, não determina as suas características, não se preocupa com a sua rentabilidade: são tudo assuntos que respeitam ao locatário.
(…) Os riscos de exploração da coisa são assumidos pelo locatário. É este que a escolhe, de acordo com as suas necessidades. O locador só comprou o bem para o dar em locação.
Na locação financeira há (economicamente) uma obrigação única do locatário, correspondente, “grosso modo”, ao custo do bem, com prestações fracionadas no tempo.
O locatário aparece, pois, como o “proprietário” (económico) do bem que paga integralmente durante o preço do contrato, e cujos riscos assume.
O locatário procura, não obter o uso de um bem durante um período mais ou menos longo, mas obter o próprio bem, durante toda a sua vida útil. O contrato é dirigido a oferecer ao locatário a faculdade de aceder à propriedade do bem – faculdade que este exerce normalmente.
(…) é ao locatário que incumbe a obrigação de efetuar o seguro do bem locado, contra o risco da sua perda ou deterioração e dos danos por ela provocados.

Pode, pois, afirmar-se que, embora não tendo o título jurídico de proprietário, o locatário exerce, durante o período do contrato, um domínio sobre o bem dado em locação financeira – ou seja, um direito de o usar, retirando, em exclusividade, as suas utilidades – em termos de poder praticamente excluir o proprietário jurídico.
Não é, juridicamente, o proprietário do bem locado; mas é, como acima ficou referido, o “proprietário” económico desse bem, de que, por via de regra, se tornará verdadeiro dono no termo do contrato”.

Há no contrato de locação financeira, como defende a Doutrina e Jurisprudência, um desmembramento do direito de propriedade, sendo que em relação ao locador, conquanto seja titular de um direito real, não suporta os danos inerentes ao uso do bem, obrigando-se, somente a “conceder o gozo” de uma coisa sem sequer ter tido qualquer tipo de contacto material com ela, apenas lhe sendo legítimo ceder a sua posição no contrato de locação financeira, transmitindo a propriedade da coisa, em todo o caso não pode dispor isoladamente da coisa dada em locação, ao passo que em relação ao locatário, este dispõe de um direito de gozo do bem, tendo um direito de natureza obrigacional, apesar de onerado com os riscos que normalmente impendem sobre o típico proprietário, neste sentido, Gravato de Morais, apud, Manual da Locação Financeira, páginas 260-262, 163-164 e 114-115.

O direito de propriedade do locador está na proporção inversa do aumento da “propriedade útil” do locatário.

Pela celebração do contrato de locação financeira, reconhece a Doutrina, a locadora assume uma “vocação de intermediária financeira, de capitalista, de financiadora, a propriedade da coisa dada em leasing financeiro apenas representa uma garantia de pagamento do financiamento que a locadora fez, à semelhança (de algum modo) da compra e venda com reserva de propriedade”.

O locatário financeiro “comunga da propriedade económica” do bem, como defende Rui Pinto Duarte, apud, O Contrato de Locação Financeira – Uma Síntese, Themis - Ano X - n.º 19 – 2010, páginas 7 a 10.
O locador só “reserva” a propriedade da coisa a título de garantia, como reserva da propriedade.
Na locação financeira é o locatário que suporta o risco de perecimento da coisa (artº 15º do Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de junho).
Outrossim, o dever de conservar e reparar a coisa incumbe, na locação financeira, ao locatário (artº 10º do Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de junho).
O locador não tem a intenção de usar o bem, de correr os riscos próprios do proprietário, ao passo que o locatário, não pretende obter o (simples) uso de um bem disponível no mercado de locação, operando, isso sim, um investimento, traduzido em parte ou na totalidade do valor do bem, correndo o risco equivalente do seu perecimento.

Assim, defende a Doutrina e Jurisprudência, o locador desinteressa-se da coisa, sob o ponto de vista económico-financeiro que não sob o ponto de vista jurídico, ao passo que, sob o ponto de vista económico-financeiro, o locatário tem uma “verdadeira” “propriedade útil” do bem.
O locatário aparece, pois, como “proprietário económico” do bem que paga integralmente, ou na sua maior parte, durante o período do contrato, e cujos riscos assume.

O contrato de locação financeira, conquanto pressuponha que em campos jurídicos distintos se situam o dono/locador da coisa e o locatário financeiro/fruidor, constitui uma realidade económica que tendo de muito relevante o financiamento da aquisição de bens, estabelece um regime legal que visa, em função do nodal aspeto de fruição económica em vista da expectativa de aquisição do direito de propriedade que constitui um direito potestativo do locatário contra o qual o locador nada pode, impõe ónus e riscos que, na pura lógica do direito de propriedade, ainda que comprimido por outro direito real ou obrigacional, mal se compreenderiam.

A enunciada particularidade e ampla proteção dispensada ao locatário, enquanto “dono económico” da coisa na vigência do contrato, mereceu do Professor Calvão da Silva o seguinte comentário que se retira da sua obra, Direito Bancário, 2001, página 425, e passamos a consignar:
“Por um lado, a vocação principal do locador é a de intermediário financeiro, de “capitalista” financiador.

Por outro lado, foi o locatário que fez a prospeção do mercado, que escolheu o equipamento destinado à sua empresa e é ele que o vai utilizar, com opção de compra findo o contrato.

Nada mais natural, portanto, do que a transferência legal para o locatário dos riscos e responsabilidades conexos ao gozo e disponibilidade material da coisa que passa a ter após a entrega, incluindo a sua manutenção e conservação (artº 10º, nº 1, als. q) e f), do Decreto-Lei 149/95 de 24 de junho) e o risco do seu perecimento ou da sua deterioração (ainda que) imputável a força maior ou caso fortuito (artº 15º do Decreto-Lei 149/95, de 24 de junho).

No fundo é conatural ao leasing que a sociedade locadora se obrigue a adquirir e a conceder o gozo da coisa ao locatário, mas se desinteresse ou exonere dos riscos e da responsabilidade relativos à sua utilização”.

Durante o tempo por que perdura o contrato, o locatário entra na posse material do bem dado em locação e, tal como um mero arrendatário, tem poderes de fruição temporária, pelo que, qualquer ato ilícito praticado contra o bem locado, não pode deixar de conferir-lhe legitimidade para demandar quem com tais atos o prejudicou.

Termos em que, sendo a autora parte legítima, se decide julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmar a douta sentença recorrida.
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III. DECISÃO

Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar as apelações – principal e subordinada - improcedentes, confirmando-se a douta sentença recorrida.
Custas pelas apelantes.
Notifique.
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Guimarães, 21/06/2018

António Figueiredo de Almeida
Maria Cristina Cerdeira
Raquel Baptista Tavares