Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
512/09.0TBPVL.G1
Relator: ANTÓNIO SOBRINHO
Descritores: SERVIDÃO DE VISTAS
JANELAS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/06/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. A existência de uma abertura com grades fora do âmbito da previsão dos artºs 1363º e 1364º, do CC, é susceptível de constituir uma servidão de vistas por usucapião.
2. A retirada do gradeamento de uma janela existente no prédio dominante e a colocação de portadas a abrir para o exterior, sobre o prédio serviente, traduz uma violação do direito de propriedade deste.
3. Tal alteração das características da janela corresponde a uma modificação do conteúdo, extensão e exercício da servidão de vistas constituída, tanto mais que os donos do prédio dominante passaram a poder lançar sujidades através dela, onerando e agravando a servidão em causa.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:


I – Relatório;

Recorrente(s): A… e mulher G… (Autores);
Recorrido(s): M… e mulher R… (Réus);
Comarca de Póvoa de Lanhoso.

*****

Na presente acção declarativa sob a forma de processo sumário, pediram os AA. a condenação dos RR. no seguinte:
a) A reconhecer que os Autores são proprietários e legítimos possuidores do prédio misto composto de casa de dois andares, duas dependências, pátio e “L...”, sito no lugar de ..., concelho da Póvoa de Lanhoso, inscrito na matriz urbana no art. 95 e na rústica no art. 224;
b) A pagar aos Autores a quantia de € 2.546,74 que estes despenderam com a reparação do veículo sua propriedade, matrícula ...-LC, em resultado dos danos que os Réus lhe causaram com o lançamento de restos de materiais construtivos;
c) A pagar aos Autores a quantia de € 770,00 que estes despenderam com a limpeza e arrumação do seu prédio, em resultado dos danos que os Réus lhe causaram com o lançamento de restos de materiais construtivos;
d) A pagar juros sobre tais quantias, à taxa legal, contabilizados desde a citação para a presente acção e até efectivo e integral pagamento;
e) A repor a janela existente no alçado lateral esquerdo do seu prédio com as características e configuração que anteriormente tinha, nomeadamente com a recolocação da grade e com a remoção das portadas metálicas.
Os réus apresentaram contestação, defendendo-se por impugnação, alegando, em síntese, que os Autores colocaram o veículo junto à parede de casa dos Réus depois de as obras começarem, tendo estes remetido uma carta alertando do facto de poderem ocorrer danos; que o lixo provocado pelas obras não foi suficiente para os referidos danos, como aliás os do veículo, tendo os Autores rejeitado a intervenção dos Réus na limpeza. Mais acrescentam que a janela sempre teve a mesma configuração desde 1969.
Em resposta, os autores pugnaram pela procedência do pedido.
Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento.
Seguidamente foi proferida sentença, decidindo-se da seguinte forma:
«condeno os Réus M… e R… a reconhecer que os Autores A… e mulher G… são proprietários e legítimos possuidores do prédio misto composto de casa de dois andares, duas dependências, pátio e “Leira do Olival”, sito no lugar de Corredoura, freguesia de Taíde, concelho da Póvoa de Lanhoso, inscrito na matriz urbana no art. 95 e na rústica no art. 224 e no pagamento a estes na quantia de € 1.500,00 (Mil e quinhentos Euros), acrescido de juros de mora legais desde a prolação da sentença até efectivo e integral pagamento.
Absolvo os Réus do restante peticionado».

Inconformados com tal decisão, dela interpuseram recurso os Autores, de cujas alegações extraíram, em suma, as seguintes conclusões:
(…)

Houve contra-alegações pugnando pelo julgado.

II – Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar;

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, nos termos dos artigos 660º, nº 2, 664º, 684º, nºs 3 e 4 e 690º, nº 1, todos do Código de Processo Civil (CPC).

A questão suscitada pelos Recorrentes radica no seguinte:

a) Houve ou não alteração das características, configuração e modo de exercício do direito de servidão relativo a janela e, em caso afirmativo, se há lugar à reposição dessa janela na situação em que se encontrava anteriormente;
*****
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

III – Fundamentos;

1. De facto;

A factualidade dada como assente na sentença recorrida é a seguinte:

a) Os Autores são donos e legítimos possuidores de um prédio misto composto de casa de dois andares, duas dependências, pátio e “Leira do Olival”, sito no lugar de Corredoura, freguesia de Taíde, concelho da Póvoa de Lanhoso, inscrito na matriz urbana no art. 95 e na rústica no artigo 224, e descrito na competente Conservatória sob o artigo 00324, por aquisição através de escritura pública outorgada no dia 5 de Junho de 1991.
b) A Sul do pátio do identificado prédio dos Autores situa-se um outro prédio urbano, propriedade dos Réus.
c) No ano de 2007, os Réus efectuaram obras de reconstrução do seu prédio.
d) Aquando da realização das obras, os Réus procederam à alteração da cobertura do alçado lateral esquerdo do seu prédio.
e) Ao executarem a obra referida em d) os Réus lançaram restos de tijolo, de telhas, de cimento e de caliça no pátio dos Autores, tendo muito desse material caído sobre o veículo dos Autores com a matrícula ...-LC e provocado danos no pára-brisas, no friso do pára-brisas, no pára-choques, nos frisos laterais, e amolgadelas na chapa e riscos na pintura.
f) Os Autores despenderam com a reparação do veículo a quantia de € 2.546,74.
g) Os Autores aparcam habitualmente o veículo automóvel no referido pátio, e após o início das obras e da queda de alguns materiais o Autor não retirou o veículo do local.
h) Os Autores contrataram terceiros a quem pagaram a quantia de € 770, tendo estes arrumado o entulho lançado da obra dos Réus para o seu prédio e procedido à respectiva limpeza.
i) Os RR. remeteram uma missiva datada de 19 de Setembro de 2007, alertando os AA. para o facto de poderem ocorrer alguns danos, inerentes à execução dos trabalhos que estavam a ser levados a cabo, solicitando para afastar a viatura.
j) Na sequência de carta remetida para os Autores, já depois da obra ter sido embargada, estes nada fizeram.
k) No alçado lateral esquerdo do prédio dos Réus, que confronta com o pátio do prédio dos Autores, existe uma janela que deitava directamente para o mencionado pátio, a cerca de 1,60 metros acima do nível do pátio dos Autores (isto ao nível do parapeito), que media cerca de 1 metro de largura por 1 metro de altura e dispunha de duas vidraças.
l) Durante um período de tempo não concretamente determinado, a janela referida teve duas vidraças que abriam para dentro e esteve dotada de uma grade em toda a sua dimensão, formada de barras metálicas verticais distantes cerca de 15 centímetros umas das outras e que há cerca de 10 anos a referida grade foi retirada e colocadas duas portadas metálicas que passaram a abrir para o exterior.
m) E, desde então, os Réus começaram a colocar material diverso no parapeito da dita janela, tal como tapetes ou roupas, limpando, escovando e ‘batendo’ tal material para o pátio dos Autores e sobre ele lançando sujidades.
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2. De direito;

a) Houve ou não alteração das características, configuração e modo de exercício do direito de servidão relativo a janela e, em caso afirmativo, se há lugar à reposição dessa janela na situação em que se encontrava anteriormente;

Pretendem os recorrentes a alteração da decisão recorrida com fundamento em erro de julgamento, ao não julgar procedente o pedido formulado na al. e) da petição, ou seja, reposição da janela existente no alçado lateral esquerdo do seu prédio com as características e configuração que anteriormente tinha.
Mais propriamente, argumentam os recorrentes que foi violado, quer o seu direito de propriedade, por ser ocupado o espaço aéreo do seu prédio com as ditas portadas, quer o modo de exercício da servidão, por as alterações em causa tornarem a servidão mais onerosa para o prédio serviente.
Apreciando.
Como salienta a sentença, mostra-se assente e as partes aceitam que estamos perante uma abertura que pode ser definida como janela, a qual importou a constituição de uma servidão de vistas por usucapião a favor do prédio dos recorridos (prédio dominante) – artº 1362º, do Código Civil (doravante CC).
O artº 1360º, nº 1, do CC, não define o que seja uma "janela", mas o conceito desta é-nos dado por exclusão de partes, com base no disposto no artigo 1363, o qual caracteriza as aberturas de tolerância, ou seja, as frestas, seteiras ou óculos para luz e ar - estas, com as reduzidas dimensões e os efeitos que lhes são peculiares, destinar-se-ão apenas a permitir a entrada da luz e do ar - ao passo que as janelas têm uma função mais ampla - estas, sendo aberturas maiores que aquelas, além de permitirem a entrada da luz e do ar, também possibilitam, em regra, caso não seja gradada, a vista e a saída de objectos com ocupação e devassamento do prédio vizinho; assim sendo, são de considerar janelas todas as aberturas na parede que não possam considerar-se frestas, seteiras ou óculos para a luz e ar e, claro está, maiores que estas últimas (neste sentido Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, Volume III, segunda edição, 223; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Boletim do Ministério da Justiça 203; 169; acórdão da Relação do Porto, Colectânea de Jurisprudência, 1988, T1, 198).

Assim, importa dizer, desde logo, que, no caso em análise, não obstante se tratar de uma janela gradada, existente até há 10 anos, não é aqui aplicável o regime das frestas previsto no artº 1363º, nº 1, do CC, por força da remissão do artº 1364º, do CC, nem tão pouco o das janelas gradadas, estabelecido neste último preceito, uma vez que a dita abertura se situa a menos de 1,80 metros do solo (mais propriamente a 1,60 metros).
Em resumo, estamos perante uma abertura sujeita ao regime do artº 1362º, do CC, que onera o prédio dos recorrentes com uma servidão predial – servidão de vistas - constituída a favor do prédio dos recorridos.
Por estarmos perante uma janela e não fresta, pode constituir-se a referida servidão de vistas.
Por outro lado, o conteúdo da relação jurídica em que a servidão se analisa é composto por utilidades - art. 1544º - que representam, em relação ao pro­prietário serviente, um encargo, e em relação ao prédio domi­nante, um benefício.
Simplesmente, constituída a servidão de vistas por usucapião, o proprietário dominante só pode exercer o seu direito em harmonia com o respectivo título ou de acordo com o que é necessário para o seu uso e conservação. Em caso de dívida, entende-se constituída a servidão por forma a satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante com o menor prejuízo para o prédio serviente – artº 1565º, nº2.
In casu, a janela gradada permitiria a entrada de ar e luz no prédio dominante.
Em consequência, se essa servidão se constituiu em relação a certo tipo de janela - janela com grade em metal - não pode o proprietário dominante retirar a grade e colocar duas portadas metálicas a abrir para o exterior, uma vez que tal corresponde a uma alteração, quer do modo de exercício da servidão – artº 1564º - quer da extensão da mesma – artº 1565º.
Tanto mais que essa modificação corresponde de facto a um agravamento, a uma maior onerosidade da servidão para o proprietário serviente, já que, para além de o gradeamento da janela impedir ipso facto maior devassa do seu prédio, provou-se que os donos do prédio dominante, aqui réu/recorridos, com a retirada da grade e colocação das portadas metálicas passaram a colocar no parapeito tapetes e roupas, limpando-os e lançando sujidades sobre o prédio dos autores/recorrentes (alínea K dos factos provados).
Do mesmo modo, cabe dizer que, embora os donos do prédio serviente, ora AA., estejam sujeitos à limitação estabelecida na lei quanto à faculdade de construir no espaço correspondente ao interstício legal (artº 1362º, nº2), não perdem o seu direito de propriedade sobre este. Como tal, a colocação das aludidas portadas metálicas de forma a abrirem para o exterior (ocupando o espaço aéreo do prédio dos AA., traduz também uma violação do seu direito de propriedade (artºs 1305º e 1344º, do CC).

Nesta perspectiva, procede a apelação, mostrando-se infundadas as conclusões B), C) e D) da contra-alegação, sendo relevante a existência de grades na janela em questão, uma vez que tal característica define o conteúdo da servidão e regula o seu modo de exercício, independentemente de esta situação não ser enquadrável na previsão do citado artº 1364º, do CC.
Dito de outro modo, a retirada do gradeamento da janela consubstancia uma alteração do conteúdo da servidão de vistas constituída.
Por último, também não procede a conclusão A), uma vez que o prazo estabelecido para a constituição da servidão em causa, por usucapião, é de, pelo menos 15 anos, e não 10 anos, nos termos do artº 1547º, nº 1 e 1296º, ambos do CC. Daí que, face a factualidade provada, que beneficia os recorridos (a referida janela gradada existe durante período de tempo não concretamente determinado - alínea l) dos factos provados), se tenha constituído a servidão de vistas em proveito do seu prédio.
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Sumariando:
(servidão de vistas, janela gradada, extensão e exercício da servidão, maior onerosidade da servidão)
1. A existência de uma abertura com grades fora do âmbito da previsão dos artºs 1363º e 1364º, do CC, é susceptível de constituir uma servidão de vistas por usucapião.
2. A retirada do gradeamento de uma janela existente no prédio dominante e a colocação de portadas a abrir para o exterior, sobre o prédio serviente, traduz uma violação do direito de propriedade deste.
3. Tal alteração das características da janela corresponde a uma modificação do conteúdo, extensão e exercício da servidão de vistas constituída, tanto mais que os donos do prédio dominante passaram a poder lançar sujidades através dela, onerando e agravando a servidão em causa.


IV – Decisão;

Em face do exposto, na procedência da apelação, acordam os Juízes desta 1ª secção cível em revogar em parte a sentença recorrida e, por consequência:
a) Condenar os RR. a repor a janela existente no alçado lateral esquerdo do seu prédio com as características e configuração que anteriormente tinha, nomeadamente com a recolocação da grade e com a remoção das portadas metálicas.
b) Manter no mais o decidido.

Custas pelos Apelados.

Guimarães, 6 de Dezembro de 2011
António Sobrinho
Isabel Rocha
Jorge Teixeira