Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
881/07.7TBVCT-U.G1
Relator: ANTÓNIO SOBRINHO
Descritores: INSOLVÊNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/02/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: O facto do administrador da insolvência não ter apresentado o seu parecer quanto à qualificação da insolvência no prazo legalmente previsto, não faz precludir a possibilidade de o fazer posteriormente, sendo tal apresentação atendível para todos os efeitos legais.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:


I – Relatório;

Recorrente (s): Sandra…
2º Juízo Cível de Viana do Castelo – proc. de insolvência nº 881/07.
Incidente de qualificação da insolvência
*****
No âmbito do processo de insolvência de A… , veio o Administrador da Insolvência a apresentar, no dia 22 de Fevereiro de 2010, parecer nos termos do nº 2 do art. 188º do CIRE.
Entretanto, a assembleia de credores para apreciação do relatório fora realizada no dia 28 de Maio de 2008.
Nesse parecer defende o Administrador que a insolvência deve ser considerada culposa e que (entre outros) deverá Sandra… , vice-presidente da insolvente, aqui agravante, ser afectada pela qualificação da insolvência.
A visada deduziu oposição, invocando a nulidade do processo por falta de citação ou notificação e defendendo que o parecer do Administrador era extemporâneo, pelo que não devia ser admitido, indeferindo-se o incidente de qualificação da insolvência.
Veio a ser proferido despacho a desatender, quer a alegada nulidade por falta de citação, quer o pretendido indeferimento de qualificação culposa da insolvência, com base na aludida extemporaneidade do parecer do Sr. Administrador.
Inconformada com o assim decidido, agrava a oponente Sandra… , em cujas alegações formula, em suma, as seguintes conclusões:

1ª. A recorrente não está identificada na sentença de declaração de insolvência como administradora ou dirigente da insolvente, não lhe foi a propósito fixada residência, nunca foi chamada aos autos, nomeadamente para prestar esclarecimentos ou entregar documentos - de que nunca dispôs mas que também não lhe foram solicitados -, e não lhe foram apontados quaisquer actos ou omissões na direcção e gestão da insolvente – que nunca exerceu -, mais precisamente relacionados com o requerimento de providência de recuperação ou de declaração de insolvência, pelo que, a proposta de qualificação da insolvência como culposa com afectação da recorrente é injustificada e injustificável.
2ª. A recorrente é, para efeitos do presente incidente de qualificação da insolvência, parte ilegítima, o que se invoca.
3ª. A recorrente jamais foi citada ou notificada quanto aos seus termos ou para quaisquer efeitos, cuja existência, aliás, até à ocasião em que foi citada no âmbito deste incidente, desconhecia por completo, pelo que não corresponde à realidade o vertido no Ponto 1.4 do parecer do Administrador da Insolvência, cuja impugnação ora se renova.
4. Não tendo a petição inicial sido apresentada pelo próprio devedor, o Juiz tem de o mandar citar pessoalmente, para que o mesmo possa deduzir oposição, o que não aconteceu.
5ª. Acresce que, na sentença que declara a insolvência, o Juiz tem de fixar residência aos administradores do devedor, o que não se verificou com a recorrente.
6ª. Os administradores do devedor a quem tenha sido fixada residência são notificados pessoalmente da sentença, nos termos e pelas formas prescritos na lei processual para a citação, sendo-lhes igualmente enviadas cópias da petição inicial, o que também não ocorreu.
7ª. A audiência da recorrente, incluindo a sua citação, para qualquer destes trâmites nunca foi objecto de despacho de dispensa.
8ª. Tão pouco consta dos autos qualquer tentativa, prévia à sua citação para efeitos da qualificação da insolvência, de chamar a recorrente aos autos de insolvência ou a qualquer um dos seus apensos.
9ª. Ao decidir como fez, olvida-se o Mmo. Juiz a quo que a recorrente não pôde – porque não conhecia a sua existência e o conteúdo -, no decurso de mais de três anos de “vida” dos autos principais, pronunciar-se nem defender-se, até para “(...) arguir qualquer irregularidade (...)” e fazer chegar-lhe todos os elementos que a afastam, irremediavelmente, de toda a actividade e gestão da insolvente, por que só pôde diligenciar com a citação em crise.
10ª. Pronúncia e defesa estas, aliás, que todos os demais administradores desde sempre indicados para o efeito terem apresentado, e na sequência do que um destes administradores acabou até por ser arredado dessa mesma posição.
11ª. Contrariamente ao que sustenta o Tribunal a quo, a invocada falta de citação ou notificação da recorrente para os termos dos autos principais influenciou – negativamente - o exame e a decisão da causa.
12ª. Omitiu-se a prática de actos que a lei prescreve, o que viola o princípio do contraditório e constitui uma irregularidade que influi na decisão da causa, geradora de nulidade, a importar a revogação da decisão em recurso.
13ª. Por outro lado, para fundamentar o despacho recorrido no que respeita à extemporaneidade do parecer do Administrador da Insolvência, o Tribunal a quo concedeu que o mesmo foi, injustificadamente, apresentado para lá do prazo que lhe é concedido.
14ª. No entanto, ordenou o Tribunal a quo o prosseguimento dos autos socorrendo-se do princípio do inquisitório e do facto de no processo constarem “elementos factuais indiciários com virtualidade para, caso resultem provados, fundamentarem (...) a qualificação da insolvência como culposa. Elementos que foram juntos aos autos ao longo da tramitação do processo, destacando-se aqui o relatório de peritagem (...), sendo ao Tribunal lícito a ele recorrer, para efeitos de Condensação”.
15ª. Ora, dúvidas não restam de que o parecer do Administrador da Insolvência foi apresentado quase dois anos após a apresentação do relatório e subsequente submissão à apreciação da Assembleia de Credores, o que, notoriamente, resulta na respectiva extemporaneidade.
16ª. O exercício dos poderes inquisitórios só permite ao Tribunal a quo conhecer e pronunciar-se quanto a factos não alegados pelas partes, investigá-los livremente, recolhendo as provas e as informações que entenda convenientes à prolação da sua decisão, mas já não que se apresente a suprimir e a colmatar as faltas e os incumprimentos do Administrador da Insolvência, concretamente quanto ao não cumprimento dos prazos legalmente determinados.
17ª. Muito menos está o Tribunal a quo habilitado, valendo-se do princípio do inquisitório, a promover, a instruir e a conduzir ele próprio – como quer manifestamente fazer, subrogando-se nas funções legalmente cometidas ao Administrador da Insolvência - o incidente de
qualificação culposa da insolvência, e, a final, julgá-lo.
18ª. Não deve ser recebido nem considerado o parecer emitido pelo Administrador da Insolvência e, consequentemente, deve ser indeferido e não admitido o incidente de qualificação culposa da insolvência, assim se revogando a decisão em recurso.
19ª. Ou, quando muito, deve ao parecer do Administrador da Insolvência ser dado o valor equiparado ao do parecer que, apresentado tempestivamente, concluísse por uma qualificação fortuita da insolvência, o que também expressamente se invoca.
20ª. O douto despacho recorrido, neste domínio, violou o disposto nos artigos 11º e 88º do C.I.R.E., o que importa a sua revogação.

Não houve contra-alegações.


II – Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar;

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, nos termos dos artigos 660º, nº 2, 664º, 684º, nºs 3 e 4 e 690º, nº 1, todos do Código de Processo Civil (doravante CPC).

As questões suscitadas pelos recorrentes são as seguintes:

a) Se houve nulidade processual atinente a falta de citação ou notificação da oponente;
b) Se não devia ter sido admitido o parecer do Administrador, por ser extemporâneo, e, consequentemente, indeferir-se o incidente de qualificação da insolvência.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

III – Fundamentos;

1. De facto;

Dá-se aqui por reproduzida a materialidade fáctico-processual referida no relatório supra, bem como a que resulta do teor da certidão judicial de fls. 31 a 39 (parecer do Sr. Administrador), de fls. 109 a 113 (sentença de declaração de insolvência) e de fls. 122 a 132, a saber:
1. C… requereu, em O5 de Março de 2007, a insolvência de A… .
2. A A… requerida foi citada.
3. Na nota de citação é indicado como representante da requerida Miguel Ângelo da Silva Cruz.
4. Não foi deduzida oposição.
5. Em 02.11.2007, por sentença proferida foi declarada a insolvência da requerida e declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência com carácter pleno.
6. Em 16.04.2008, na publicação da mesma, na II série do DR, foram indicados como administradores da requerida: 1) José… ; 2) José… ; 3) Maria… ; 4) Miguel… ; S) João… .
7. A assembleia de credores reuniu em 28.O5.2008 e aprovou, por maioria, o relatório do administrador da insolvência.
8. O administrador da insolvência apresentou o parecer relativo ã qualificação da insolvência em 22.10.2010.
9. E indicou, entre outros, a recorrente como devendo ser afectada pela qualificação da insolvência.
10. A recorrente, citada para o incidente, deduziu oposição.


*****

2. De direito;

a) Da apontada nulidade por falta de citação ou notificação da recorrente;

Começa a recorrente por invocar a nulidade, por falta da sua citação ou notificação, no processo de insolvência.
Ora, nos termos do artº 29º do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresas (doravante CIRE), o que se impõe é a citação do devedor.
E, no processo de insolvência em apreço, devedora é a pessoa colectiva “A… ” e não a aqui recorrente, pessoa singular.
Tendo sido citada a referida devedora e insolvente, na pessoa de um dos seus legais representantes, mostra-se cumprida a obrigação de chamamento a juízo da referida devedora, como prescreve o mencionado artº 29º do CIRE.
Tão pouco a recorrente tinha de constar dos anúncios que publicitaram a insolvência ou de ser notificada do relatório a que alude o artº 155º do CIRE, por não ser ela a devedora, nem integrar a comissão de credores ou de trabalhadores – cfr. artº 156º, do CIRE.
Coisa distinta é já a sua própria citação para o incidente de qualificação da insolvência, por ter sido identificada como uma das pessoas que é afectada pela qualificação da insolvência como culposa, segundo o parecer do Sr. Administrador – artº 188º, nº 2, do CIRE.
E neste incidente, a recorrente foi devidamente citada.
Acresce apenas dizer que na sua conclusão 4ª afirma ainda a recorrente que é parte ilegítima para efeitos do presente incidente de qualificação da insolvência.
Esta questão foi somente agora colocada em sede de recurso.
Ora, do específico ponto de vista da instância recursiva, tem-se por certo que, como é jurisprudência uniforme, sendo os recursos meios de impugnação das decisões judiciais, destinados à reapreciação ou reponderação das matérias anteriormente sujeitas à apreciação do tribunal a quo e não meios de renovação da causa através da apresentação de novos fundamentos de sustentação do pedido (matéria não anteriormente alegada) ou formulação de pedidos diferentes (não antes formulados), ou seja, visando os recursos apenas a modificação das decisões relativas a questões apreciadas pelo tribunal recorrido (confirmando-as, revogando-as ou anulando-as) e não criar decisões sobre matéria nova, salvo em sede de matéria indisponível, a novidade de uma questão, relativamente à anteriormente proposta e apreciada pelo Tribunal recorrido, tem inerente a consequência de encontrar vedada a respectiva apreciação pelo Tribunal ad quem (art. 676º CPC; cfr. M. TEIXEIRA DE SOUSA, “Estudos ...”, 395 e ss.; AMÂNCIO FERREIRA, “Manual dos Recursos ...”, 138).
Ademais, como se disse, a recorrente foi indicada, nos termos do apontado artº 188º, pelo administrador de insolvência como pessoa que é atingida pelo dito incidente, atendendo à sua qualidade de vice-presidente da insolvente e durante período da sua gestão.

Improcede-se assim o argumento de falta de citação ou notificação da agravante nos autos principais de insolvência.

b) Extemporaneidade do parecer do Sr. Administrador e pretendido indeferimento do pedido de qualificação da insolvência como culposa;

Sustenta ainda a agravante que a apresentação do parecer a que se refere o artº 188º, do CIRE foi extemporâneo, o que acarretaria o indeferimento do pedido de qualificação da insolvência como culposa.
O parecer do administrador da insolvência tendente à qualificação da insolvência é apresentado dentro dos 15 dias subsequentes aos 15 dias, contados sobre a data da realização da assembleia de apreciação do relatório, que qualquer interessado dispõe para alegar o que tiver por conveniente quanto à qualificação da insolvência como culposa, como preceitua o citado artº. 188º, nºs 1 e 2, do CIRE,
In casu, o parecer não foi apresentado dentro daqueles 15 dias, mas depois.
Tal implica a rejeição do parecer e indeferimento do incidente de qualificação?
Entende-se que não.
O parecer do administrador da insolvência constitui elemento relevante na decisão do incidente de qualificação da insolvência - e na sua própria tramitação - pelo que não pode deixar de ser apresentado, e daqui que “(…) não pode ser atribuído valor ao silêncio, cabendo ao juiz, se for o caso, providenciar para que, mesmo tardio, o parecer seja emitido” Neste sentido Carvalho Fernandes e João Labareda (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, II, p. 22),
.
Por seu turno, como é salientado no Ac. da RP de 29 de Outubro de 2009 (disponível em www.itij/jurisprudência [da Relação do Porto]), e que o recente Ac. desta RG, de 14.11.2011, Proc. 881/07.7TBVCT-S.G1, também acolhe e que seguimos de perto nesta problemática, “o administrador da insolvência é um colaborador do tribunal; não é uma parte no processo. Como tal, a emissão do parecer não é um direito dele, mas um dever funcional. Não está na disponibilidade do administrador emitir ou não emitir o parecer com formulação de uma proposta para qualificação da insolvência. Deve fazê-lo, sob pena de ser considerado relapso no cumprimento das suas competências, devendo então ser advertido, mesmo multado nos termos das regras gerais, ou até demitido pelo tribunal e substituído por novo administrador (…). O incidente da qualificação da insolvência não é uma fase facultativa do processo. É obrigatório e indispensável (…). Além de obrigatório, pode ser dado fora dos prazos em causa nos art.ºs 188º e 191° (…)”
Logo, a apresentação tardia do parece a que se reporta o dito artº 188º, do CIRE, não tem sequer a virtualidade de configurar a pretendida preclusão do pedido de incidente pleno de qualificação da insolvência, pela simples razão de que, ainda assim, o conteúdo de tal parecer pode ser apreciado e atendível.
Isto porque se está perante “um prazo regulador, ordenador ou de organização processual, sem cominação processual (e muito menos substantiva), e cujo decurso, podendo embora gerar responsabilidade do administrador no âmbito do processo, não pode nunca fazer caducar um direito que o administrador não detém”.
Perfilha-se este entendimento nos citados Acórdãos da RP e da RG e ainda João Botelho (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, p. 162).
O parecer apresentado pelo Administrador, ainda que é, pois, válido e atendível, não se verificando a suposta preclusão.
Isto, não obstante o despacho recorrido ter perspectivado o indeferimento do requerido pela oponente, com base em fundamento distinto, ou seja, o princípio do inquisitório, previsto no artº 11º, do CIRE.
Na verdade, esta prerrogativa legal tem aplicação na livre indagação dos factos pelo julgador, o que se distingue dos pressupostos apriorísticos de promoção do incidente, conferidos na lei.

Não se concede, assim, provimento ao agravo, ainda que sejam distintos os fundamentos jurídicos expedidos.

IV – Decisão;

Em face do exposto, acordam os Juízes desta secção cível em não conceder provimento ao agravo, mantendo-se a decisão recorrida, ainda que com fundamento diverso.

Custas pela recorrente.

Guimarães, 2 de Junho de 2011
António Sobrinho
Isabel Rocha
Manuel Bargado