Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1578/13.4TBVRL.G1
Relator: EVA ALMEIDA
Descritores: USUCAPIÃO
ACÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
COMPETÊNCIA MATERIAL
ACÇÃO DE JUSTIFICAÇÃO JUDICIAL
CONSERVADOR DO REGISTO PREDIAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I – Fundando-se o direito que os autores se arrogam na posse exclusiva sobre um prédio, resultante de fracionamento, consensualmente operado pelos comproprietários há tempo suficiente para o terem adquirido por usucapião, a esta acção não corresponde o processo especial de divisão de coisa comum.
II - A competência material do tribunal judicial para o reconhecimento do direito de propriedade com base na usucapião não é afastada pela circunstância dos autores, relativamente a alguns pedidos formulados (contra os réus não contestantes), terem podido utilizar em alternativa um dos meios processuais previstos no Título VI do Código do Registo Predial (artigos 116º e segs).
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I – RELATÓRIO
A… e mulher A…, intentaram acção declarativa, com processo comum sob a forma sumária contra B… e mulher M…, M… e marido A… e E… e mulher E…, pedindo:
a) Se declare dividido em substância desde há mais de 25 anos, o prédio rústico situado no lugar da…, concelho de Vila Real, composto de Vinha do Douro, com 2.000 m2 de superfície, que confronta de Norte com E…, Nascente D…, Sul M… e Poente E…, inscrito na matriz sob o art.º… e descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o n.º …, cuja divisão deu origem à parcela melhor descrita no art.º 1.º da P.I., com uma área total de 667 m2;
b) Que em resultado dessa divisão se autonomizou por usucapião como prédio rústico, há mais de 25 anos, uma parcela de terreno com as descrições constantes dos art.º 1ºda P.I., constituindo tal prédio, um prédio distinto daquele do qual se destacou, devendo ser desanexado da citada descrição na Conservatória do Registo Predial e ordenando-se o respectivo cancelamento da inscrição em vigor, relativamente aos AA. na restante parte do prédio;
c) Se declararem os AA. donos e legítimos proprietários do prédio, aludido no art.º 1º da P.I., ordenando-se o registo a seu favor.
d) Se declare que a favor do prédio melhor identificado no art.º 1.º da P.I. se encontra constituída uma servidão de passagem, com a descrição que consta dos art.ºs 42.º a 50.º e 58.º, que onera o prédio dos 1.ºs e 2.ºs RR. Melhor identificado no art.º 2.º da P.I., e o prédio dos 3.º RR. melhor identificado no art.º 25.º da P.I. e sobre o qual os AA., na qualidade de proprietários do prédio dominante, têm o direito de passar a pé sempre que o entendam;
e) Se declare que a citada servidão é o único meio existente para que os AA. acedam à parcela de terreno que cultivam de forma exclusiva e que se mostra delimitada do restante prédio, cultivado pelos seus irmãos, demais proprietários do prédio rústico em questão;
f) Se declare que o acesso, até à dita servidão de passagem, se faz pelo caminho de consortes, melhor identificado nos art.ºs 31.º a 41.º da P.I., propriedade dos AA.;
g) Sejam os RR. condenados a reconhecer estes direitos e em consequência absterem-se de praticar quaisquer actos perturbadores dos mesmos;
h) Em especial, sejam os 3.ºs RR. obrigados a reconhecer, respeitar e reconstruir a servidão de passagem melhor identificada nos art.ºs 42.º a 50.º da P.I., bem como a manter livre e desimpedido o caminho de consortes melhor identificado nos art.ºs 31.º a 41.º da P.I.;
i) Sejam os 1.ºs e 2.ºs RR. obrigados a reconhecer e respeitar a servidão de passagem melhor identificada no art.º 58.º da P.I.
Alegam os seguintes factos:
1º Os AA. são proprietários e legítimos possuidores de um prédio rústico composto de Vinha do Douro, sito no lugar da…, concelho de Vila Real com 667 m2 de área e que confronta a Norte com E…, Sul M… e Nascente com D… e a Poente com M….
2º O prédio supra descrito originariamente proveio do prédio rústico situado no lugar da…, concelho de Vila Real, composto de Vinha do Douro, com 2.000 m2 de superfície, que confronta de Norte com E…, Nascente D…, Sul M… e Poente E…, inscrito na matriz sob o art.º… e descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o n.º… (doc. nº 1 e 2 que aqui se juntam e se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais).
3º Prédio que veio à posse dos AA. através de escritura de doação outorgada no Cartório Notarial de Vila Real (doc. n.º 3 que aqui se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).
4º Os 1.ºs e 2.ºs RR., por sua vez, são os proprietários dos restantes 2/3 (vide documento n.º 2).
5º Acontece que com a doação feita a favor dos AA., 1.º e 2.ºs RR., de imediato foi feita a divisão e demarcação da parcela melhor identificada no art.º 1.º da P.I. em relação ao restante prédio rústico.
6º Delimitação que, feita de comum acordo entre os seus então proprietários, foi feita através da atribuição, a cada um deles, dos diferentes patamares que compõe o prédio.
7º E desde aquela data até ao presente, vêm os muros que compõe os diferentes patamares servindo de limites das respectivas propriedades.
8º O que sempre foi aceite por AA., 1.ºs e 2.ºs RR.
9º Desde essa data até ao presente, AA., 1.ºs e 2.ºs RR. Sempre respeitaram a repartição das diferentes propriedades.
10º Limpando-as e cultivando-as.
11º Respeitando os seus limites.
12º Com total autonomia, sem que partilhem despesas ou os frutos do todo.
13ºMas utilizando e suportando as despesas relativas às partes que lhes couberam pela delimitação, em exclusivo.
14º Delimitando-se dessa forma as partes do prédio que ficaram a pertencer aos AA., 1.ºs e 2.ºs RR.
15º E são os AA. quem, desde essa data praticam sobre as parcelas melhor identificadas no art.ºs 1.º da P.I., em exclusivo, os actos próprios de proprietários que são, tal como limpar o mato, cultivar ou colher os frutos daquilo que produzem.
16º Divisão que perdura há mais de 25 anos, com mútuo acordo e integral respeito de todos os proprietários inscritos do prédio originário.
17º Constituem assim as referidas parcelas de terreno, pelas razões atrás expostas, prédios distintos e autónomos daquele que lhes deu origem.
18º Bem como de outra qualquer parcela de terreno existente no território nacional.
19º E como tal devem ser declarada.
20º Sendo que os AA. estão na posse, uso e fruição do seu respectivo prédio, pois passaram a detê-lo, dele colhendo os seus frutos, como prédio distinto e autónomo que é, respeitando rigorosamente as suas extremas e divisórias, com total de exclusividade e independência, como se de coisa sua e exclusiva se tratasse, na convicção e certeza de exercerem um direito de propriedade próprio, dele retirando todo o proveito.
21º Actos que os AA. têm vindo a exercer em relação à referida parcela de terreno, por si, de forma continuada e ininterrupta, há mais de 25 anos consecutivos, em nome próprio, à vista de toda a gente, de modo pleno e exclusivo, sem lesarem direitos de outrem, sem a oposição de quem quer que seja e de boa fé, na convicção e certeza de que tal direito lhes assiste.
22º Sucede que os AA. pretendem alterar a descrição e inscrição predial de acordo com a realidade factual, dando uma descrição e uma inscrição às referidas parcelas, autónomas, que são.
23º Porém, essa operação não é possível sem o recurso à presente acção, afim de obter título de divisão e autonomização da sua parcela para fins de registo.
Por outro lado,
24º Conforme se afere das confrontações constantes das certidões juntas aos autos, a Norte o prédio dos AA. confina com um prédio dos 3.ºs RR.
25º Prédio inscrito na matriz sob o art.º … da freguesia de… e melhor identificado na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ….
26º Acontece que desde tempos imemoriais, o prédio dos 3.ºs RR. encontra-se onerado com uma servidão de passagem constituída, inicialmente, a favor do prédio de que a parcela dos AA. se destacou.
27º E que, com a divisão passou a ser, também da parcela melhor identificada no art.º 1.º da P.I.
28º Servidão de passagem que se inicia num caminho de consortes ali existente e que no final, numa extensão aproximada de 100 m de comprimento e 70/80 cm de largura é composto por uma rampa de acesso a umas escadas.
29º Que entra no prédio dos 2.ºs RR.
30º E pelo qual, até à data em que os 3.ºs RR. levaram a cabo obras de saibramento no seu prédio, foi usado pelos AA. como único acesso que têm.
31º Isto é, para acederem ao seu prédio, os AA. usam um caminho de consortes que se inicia na Estrada Municipal, em terra batida, calcada pela constante passagem de pessoas e carros, e que segue sentido Poente-Nascente durante cerca de 300 a 310 m.
32º Com 3,5 metros de largura, em toda a sua extensão e que permite a circulação automóvel e pedonal, de todos os seus beneficiários, as vezes, nos dias e às horas em que o queiram fazer.
33º Caminho que, no início serve os proprietários dos vários prédios que com ele confrontam, o Sr. J…, a Sr.ª J…, o Sr. A…, os AA. e os RR. (doc. n.º 4 a 6 que aqui se juntam e se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais).
34º Sendo certo que actualmente os já citados A… e os RR. São proprietários dos demais prédios servidos pelo citado caminho.
35º Tanto que alteraram o trajecto inicial e, cedendo parcelas da área cultivada, procederam ao seu alargamento e melhoria.
36º Garantindo contudo a passagem dos demais consortes, neles se incluindo os AA. e os RR.
37º Após estes 300 a 310 metros iniciais, o caminho, na parte em que serv os AA., vira direita, sentido Norte-Sul, numa extensão de 60 m, em terra batida, calcada pela constante passagem de pessoas e carros, com cerca de 3,5 metros de largura.
38º Sendo que neste troço do caminho são beneficiários os AA., o citado A… e os RR. e que permite a circulação automóvel e pedonal, de todos, as vezes, nos dias e às horas em que o queiram fazer.
39º Até porque o caminho divide os prédios dos 3.ºs RR. e do A… que cederam área cultivável para o melhorarem e alargarem, na sequência do que haviam feito no troço anterior.
40º O que também já resultou da alteração de um caminho de consortes pedonal que antes existia e que por este foi substituído.
41º Este troço do caminho termina com um pequeno largo onde as viaturas automóveis, com direito de ali passar, conseguem efectuar a manobra de inversão de marcha.
42º Nesse mesmo largo, junto ao muro que delimita a propriedade dos 3.ºs RR., inicia-se a já citada servidão de passagem.
43º Composta de um carreiro em terra batida, calcado pelo tempo, que permite em exclusivo a passagem pedonal dos AA. e dos 1.ºs e 2.ºs RR., porque dá acesso ao prédio melhor identificado no art.º 2.º da P.I.
44º As vezes, nos dias e às horas em que o queiram fazer.
45º Este caminho, com cerca de 80 cm de largura em toda a sua extensão, inicia-se, conforme já foi referido, no largo já citado no art.º 41.º da P.I.
46º E desenvolve-se da forma infra descrita, em exclusivo, pelo prédio dos RR.
47º Pois que é uma parcela de terreno, de acesso exclusivo ao prédio dos AA., situada no prédio dos RR. citado no art.º 25.º da P.I.
48º Em rampa, sobe pelo muro delimitador da propriedade dos RR., cerca de 3 metros numa extensão de 10 metros, após o que prossegue por cima do muro, numa extensão de 50 metros, sentido Norte-Sul até ao limite inferior do prédio melhor descrito no art.º 2.º da P.I.
49º Local onde vira à esquerda, no sentido Poente-Nascente, prosseguindo no prédio dos 3.ºs RR., junto ao muro delimitador da propriedade dos AA., 1.ºs e 2.ºs RR., numa extensão de 30 metros, local onde se encontram as escadas de acesso à propriedade destes e dos 2.ºs RR.
50º Escadas que os AA. sempre utilizaram para aceder à sua propriedade e à qual só têm acesso pelo supra citado caminho de consortes e servidão de passagem.
51º Ora, tal como o prédio melhor identificado no art.º 1º da P.I., também a citada servidão de passagem veio à posse dos AA. através da escritura de doação junta aos autos como doc. n.º 3.
52º Pois, constituída que se mostra uma servidão de passagem a favor de um prédio, é aquela propriedade de quem quer que seja proprietário do prédio dominante.
53º Estão assim os AA. na posse, uso e fruição da citada servidão de passagem, pois passaram a detê-la e usa-la, nela passando a pé nos dias e número de vezes que entenderem, com total exclusividade e independência, como se de coisa sua se tratasse, na convicção e certeza de exercerem um direito próprio, dela retirando todo o proveito.
54º À posse dos AA. pode somar-se a dos seus antepossuidores, visto que a transmissão da posse foi titulada por escritura pública.
55º Pelo que exercem os AA. tais actos de posse em relação à servidão de passagem, por si, de forma continuada e ininterrupta, há mais de 25 anos consecutivos, em nome próprio, à vista de toda a gente, de modo pleno eexclusivo, sem lesarem direitos de outrem, sem a oposição de quem quer que seja, de boa fé, na convicção e certeza de que tal direito lhes assiste.
56º Pelo que são titulares de uma servidão de passagem constituída a favor do prédio melhor identificado no art.º 1º da P.I. e que onera ambos os prédios dos RR., por via da usucapião, o que evocam para todos os efeitos legais.
57º Foi precisamente a existência da citada servidão de passagem que permitiu aos AA., e os seus irmãos, demais comproprietários, dividir o prédio em três parcelas, autónomas e distintas entre si, que desde a data da realização da escritura pública, cultivam em exclusivo e total independência.
58º Pois é a citada servidão o acesso directo à parcela propriedade dos 2.ºs RR. que, por sua vez, permitiram a constituição de servidão de passagem pedonal a onerar o prédio de que são proprietários a favor do prédio dos AA.
59º Até porque a servidão de passagem existente sempre foi respeitada por todas as pessoas da aldeia e arredores, em especial, por aqueles que tinham a obrigação de ceder passagem.
60º Acedendo desta forma os AA. ao seu prédio sem o terem de fazer escondidos ou sem necessitarem de pedir a outros confinantes que lhes cedam passagem.
61º Condição precária e que nos meios rurais representa uma situação de favor.
62º Acontece que recentemente os 3.ºs RR. resolveram levar a cabo obras de saibramento sobre o seu prédio.
63º E em consequência dessas obras destruíram por completo parte do citado caminho, impossibilitando os AA. de acederem, desde o troço docaminho melhor descrito no art.º 48.º da P.I. às escadas descritas nos art.ºs 49.º e 50.º desta peça processual, no fundo, de acederem à sua propriedade.
64º Além de destruírem a rampa ali existente.
65º Abriram um novo socalco.
66º Transformando o local onde antigamente existia o caminho num buraco com mais de 3 e até 4 metros de profundidade.
67º E apesar de serem visíveis as escadas de acesso à servidão de passagem que onera o prédio dos 3.ºs RR., verdade é que, o acesso pela dita servidão de passagem é agora impossível.
68º Os AA. já deram conhecimento deste facto aos RR. solicitando-lhes que procedessem às reparações necessárias à reposição do caminho de consortes.
69º Interpelando-os extra judicial e judicialmente.
70º Contudo os RR. nada disseram ou fizeram, pelo que continuam os AA. impedidos de usarem a servidão de passagem constituída a favor do seu prédio.
71º Vendo-se forçados a recorrer a presente acção para verem reconhecido o seu direito e obterem sentença que obrigue os 3.ºs RR. a reparar o dito caminho.
72º Além disso, conforme se referiu, a servidão de passagem tem origem num caminho de consortes que serve os AA. e os RR., entre outras pessoas. 73ºCaminho que se inicia na Estrada Municipal e termina junto à servidão de passagem melhor identificada nos autos, com cerca de 3/4 metros de largura.
74º Pelo qual podem circular a pé ou de carro, as vezes e nos dias que entenderem.
75º Acontece que desde que procuram a reparação da servidão, têm sido impedidos de usar o caminho de consortes, pois é habitual o caseiro dos RR. abandonar uma viatura automóvel, entre a Estrada Municipal e o prédio dos AA.
76º Bloqueando quer a entrada quer a saída do prédio.
77º Obrigando não só os AA. a carregar alfaias e produtos destinados à vinha, como a regressar a casa a pé, impossibilitados que ficam de retirar a carrinha que usam, do caminho de consortes. para isso factos que suportam a invocada usucapião sobre o prédio cujo direito pretendem ver reconhecido e sobre a constituição de servidão a seu favor.
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Os dois primeiros réus não contestaram.
Os terceiros réus E… e mulher E… contestaram, excepcionando a sua ilegitimidade, por coligação ilegal de réus, invocando a ineptidão da petição inicial e, subsidiariamente, por impugnação.
Assim, alegam que parte da pretensão dos autores corresponde a uma acção de divisão comum, a que no NCPC corresponde uma forma de processo especial regulada nos artºs. 925º e segs. (divisão de coisa comum), cumulando-se o pedido de divisão de coisa comum e justificação judicial, com o reconhecimento da servidão. Se quanto à servidão podem (e devem) os contestantes impugnar a sua existência, já quanto ao primeiro pedido (divisão de coisa comum) não têm qualquer interesse em contestar, uma vez que não são comproprietários do prédio identificado no artº.2º. Os contestantes são manifestamente parte ilegítima no pedido de divisão de coisa comum (ainda que por usucapião), o que parece traduzir-se num obstáculo à cumulação de pedidos. Na actual legislação vigente, a apreciação do pedido formulado pelos AA consubstanciado na alínea a) está legalmente atribuído às Conservatórias do Registo Predial, conforme dispõe o DL. 273/2001 de 13/10.
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Findos os articulados foi proferido despacho saneador em que se decidiu:
«Pelo exposto, julgo verificada a excepção dilatória prevista no art.º 577.º, al. f), do NCPC de coligação de autores e réus, quando entre os pedidos não existe a conexão exigida no art.º 36.º do mesmo diploma legal e absolvo os réus da instância.»
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Inconformados, os autores interpuseram o presente recurso, que instruíram com as pertinentes alegações, em que formulam as seguintes conclusões.
1.º- A Acção Declarativa na Forma Comum é aquela que permite aos Recorrentes ver reconhecido o direito de propriedade sobre uma parcela de terreno, por via da usucapião, invocando para o efeitos factos constitutivos do direito originário de aquisição e visando que o Tribunal reconheça que a realidade material está em desconformidade com a inscrição registral;
2.º- Atenta a causa de pedir e o pedido formulado no processo em apreço, não é a Acção de Divisão de Coisa Comum o meio processual legalmente admissível a decretar a divisão de facto, há mais de 25 anos da propriedade;
3.º- Atento o exposto é o processo declarativo comum o meio processual adequado a todos os pedidos formulados pelos Recorrentes, sendo, por via disso, não só possível cumular todos os pedidos formulados, como coligar todos os Recorridos;
4.º- Mas, ainda que assim não se entendesse, a apreciação conjunta dos pedidos dos Recorrentes deve sobrepor-se à mera diversidade formal da tramitação processual tanto por razões de economia processual como também porque a apreciação conjunta dos pedidos dos AA. se revela indispensável a um correcto entendimento e julgamento do litígio, pelo que se impõe a adequação processual ao objecto do litígio e não a propositura de duas acções distintas;
5.º- Pelo que a decisão proferida não teve em conta os princípios da economia processual e da celeridade na realização da justiça uma vez que o tribunal é materialmente competente para apreciar a totalidade dos pedidos.
6.º - Ao assim decidir, está a M.me Juiz do Tribunal recorrido a violar o disposto nos art.ºs 30.º, 36.º, 37.º, 38.º, 546.º, 547.º, 548.º, 549.º, 590.º e 925.º, todos do Cód. Proc. Civ., bem como os art.ºs 1.251.º, 1.252.º, 1.263.º, 12.68.º, 1.287.º a 1.297.º e 1.316º do Cód. Civ.;
7.º Se Vossas Excelências, em face das conclusões atrás enunciadas revogarem a sentença que absolve os réus da instância e em sua substituição proferirem decisão no sentido de que a Petição Inicial não sofre de qualquer vício, ordenando o prosseguimento dos autos, farão uma vez mais serena, sã e objectiva JUSTIÇA.
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Dos autos não constam contra-alegações.
Admitido o recurso, os autos foram remetidos a este Tribunal da Relação, onde foi recebido sob a forma, modo de subida e efeito atribuídos pela 1ª instância.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR.
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente, tal como decorre das disposições legais dos artºs 635º nº4 e 639º do NCPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões “salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras” (artº 608º nº2 do NCPC).
As questões a apreciar são as constantes das conclusões que acima reproduzimos.
III – FUNDAMENTOS DE FACTO
Os factos com interesse para a apreciação deste recurso constam do relatório supra, onde se reproduziu o teor da P.I. essencial à apreciação das questões que no presente recurso cumpre apreciar
IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO
Contrariamente ao que é afirmado na decisão recorrida os factos alegados e os pedidos formulados não respeitam a uma acção de divisão de coisa comum.
Os autores alegam que possuem em exclusivo um determinado prédio, a forma como o mesmo adveio à respectiva posse, as características desta e a sua duração por tempo suficiente para a aquisição originária, via usucapião, do direito de propriedade sobre esse prédio, direito que pretendem ver declarado e reconhecido, acrescido do direito de servidão, em benefício desse prédio sobre prédio dos réus contestantes, que estes lhes negam.
Alegam ainda que o prédio de que se arrogam proprietários resultou da divisão de um outro prédio de que eram comproprietários, divisão que dizem ter sido operada há mais de 25 anos, verbalmente, por mútuo acordo dos comproprietários, aqui réus não contestantes.
O pedido principal é o do reconhecimento do respectivo direito de propriedade exclusiva sobre o prédio resultante de tal fracionamento ou divisão e, por isso mesmo, qualquer acção de divisão de coisa comum, nestas circunstâncias, estaria votada ao fracasso.
A este propósito a jurisprudência seguir citada não deixa dúvidas:
Ac. do TRC de13-05-2014, proc. nº 315/08.0TBAVR.C1: «A usucapião uma vez comprovada obsta à apreciação do mérito da acção de divisão, pondo em causa a compropriedade, condição de procedência da acção.»
.Ac. do STJ de 29-01-2008 «I -É condição de procedência de uma acção de divisão de coisa comum a existência de uma situação de compropriedade. II - Se, quando a acção foi proposta, a compropriedade já tinha cessado por se ter verificado a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade singular de parte determinada do prédio, o pedido de divisão tem de improceder. III - Se, por escritura pública de partilha de uma herança, foi adjudicada metade de um prédio indiviso a cada um de dois dos herdeiros, que já se encontravam, cada um, na posse de parte determinada do prédio desde que fora celebrado o contrato-promessa correspondente, exercendo sobre ela em exclusivo os poderes próprios do direito de propriedade singular, é desde essa data que se conta o prazo necessário à aquisição, por usucapião, desse direito. IV - Não tendo chegado a possuir o prédio como comproprietários, não é condição de aquisição daquele direito, por usucapião, a inversão do título da posse.»
Ac. do TRC de 07-05-2013, proc. 874/06.1TBTNV.C1
«(…) A cessação da situação de compropriedade implica, como é manifesto, o termo do concurso de vários direitos de propriedade pertencentes a pessoas diferentes, tendo por objecto a mesma coisa, tendo lugar a constituição de situações de propriedade singular sobre cada uma das parcelas da coisa dividida. Sendo a acção de divisão de coisa comum um instrumento próprio - processual ou judicial – art.1413º, n.º 1 do Código Civil e arts. 1052º a 1057º do Código do Processo Civil - para reduzir a pluralidade de direitos à unidade, outros meios - actos - existem conducentes a esse efeito. (…) o estado de facto criado pela divisão amigável efectuada pelos comproprietários sem ter sido precedida de escritura ou auto público, pode converter-se em estado de direito, através do instituto da usucapião, se cada um dos comproprietários tiver exercido posse exclusiva sobre o quinhão que ficou a pertencer-lhe na divisão e tal posse se revestir dos requisitos legais (…)»
Assim, esta acção, como bem esclarecem os autores no petitório, não visa efectuar a divisão do prédio descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o n.º 00737/040595, por, alegadamente, já se encontrar dividido há mais de 25 anos.
Esclarecido que a pretensão dos autores, tal como configurada pela narrativa em que se estriba a causa de pedir e pelos pedidos, não é a divisão do prédio, já ocorrida, à presente acção, ou aos pedidos formulados na presente acção, não corresponde o processo especial de divisão de coisa comum previsto nos artºs 925º a 929º do NCPC, mas sim o processo comum.
Lateralmente (porque os pedidos formulados em a) e b) não são essenciais, nem sequer necessários à procedência do pedido formulado em c), este sim o pedido principal) visa também que se reconheça ter sido efectuada tal divisão.
Essa divisão consensual é o marco histórico do início da posse exclusiva dos autores e, nessa medida, importante para a génese da posse sobre o prédio assim autonomizado, de que os autores se arrogam proprietários.
Fundando-se o direito dos autores na posse exclusiva sobre uma parte de um prédio autonomizada de facto, não careciam de pedir ao Tribunal que declarasse o prédio dividido em substância há mais de 25 anos, nem o mais que consta dos pedidos a), b) e parte final do c).
Contudo tais pedidos encontram a sua justificação em exigências do registo predial, como alegam os autores nos artºs 22º e 23º da P.I.
Aqui surge outra questão colocada pelos réus na respectiva contestação (artº 9º), que, não tendo sido apreciada pelo Tribunal a quo, o deve ser nesta Relação (artº 665º nº 2 do NCPC).
Com efeito, relativamente aos réus não contestantes (comproprietários do prédio com a descrição º … da CRP) face aos pedidos formulados em a) e b) e parte final do c), ao objectivo que com eles se visa prosseguir, a acção assume os contornos da antiga justificação judicial (acção declarativa simultaneamente de simples apreciação positiva e constitutiva, nos termos do artº 4º, nº 2, als. a) e c), do CPC) que, com a publicação do D.L. nº 273/2001, de 13/10, revogando o D.L. nº 284/84, passou a ser objecto de decisão por parte do conservador, tendo saído da competência material dos tribunais comuns a decisão conducente às justificações para efeitos registrais.
A incompetência material do Tribunal relativamente a estes pedidos obstaria à coligação (artº 37º nº 1 do NCPC) conduzindo à absolvição da instância – artºs 577º al. f) e 278º nº 1 al. e)].
Contudo, entendemos, tal como se decidiu no acórdão do TRC em 7.9.2010, proc. nº 872/08.0TBPBL.C1, que não estamos perante um caso de incompetência material, isto é, os autores não estão impedidos de recorrer a Tribunal para ver reconhecido o seu direito. Efectivamente, como se diz nesse acórdão “nem o legislador através do DL nº 273/01 de 13 de Outubro, ao dar nova redacção ao Código do Registo Predial e revogar o regime de processo de justificação judicial de registo, atribuiu competência exclusiva às Conservatórias do Registo Predial e notários para o reconhecimento do direito de propriedade com base na usucapião, nem o legislador através de alguma outra lei, designadamente através da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais (Lei nº 3/99 com sucessivas alterações), retirou alguma matéria da competência destes para a atribuir a outras entidades, não judiciais ou jurisdicionais”.
É direito fundamental dos cidadãos o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, e a todo o direito corresponde, salvo lei que determine o contrário, a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo.
Assim a competência material do tribunal judicial para reconhecimento do direito de propriedade com base na usucapião não é afastada pela circunstância dos autores, relativamente a alguns pedidos formulados (contra os réus não contestantes), terem podido utilizar em alternativa um dos meios processuais previstos no Título VI do Código do Registo Predial (artigos 116º e segs) para efeitos de registo.
Mesmo que não se subscreva este entendimento (nomeadamente pelas especificidades da acção de justificação, no tocante quer à publicidade, quer às possibilidade de impugnação, ou aos efeitos, que na presente acção são limitados a quem nela é parte) certo é, que, no presente caso, os autores não pedem apenas o reconhecimento do respectivo direito de propriedade sobre o prédio resultante da divisão consensualmente operada no prédio descrito no nº º 00737/040595, com fundamento na usucapião, mas também a condenação dos réus (todos), na al. g), a reconhecerem tal direito, assumindo a acção feição não meramente declarativa (ou constitutiva para efeitos de registo), mas também de condenação, não se confundindo assim, mesmo no tocante aos réus não contestantes, com a acção de justificação notarial.
Assim sendo, como os pedidos estão entre si numa relação de dependência (o reconhecimento do direito de propriedade dos autores sobre o prédio resultante da divisão material daquele de que foram comproprietários é condição do reconhecimento de um direito e servidão constituído a favor do seu prédio sobre o prédio dos réus contestantes) e a procedência dos pedidos principais depende essencialmente da apreciação dos mesmos factos, entendemos que coligação é admissível (artºs 36º nºs 1 e 2) não se verificando os obstáculos à coligação previstos nos nºs 1 e 2 do artº 37º, nem à cumulação de pedidos no artº 555º nº 1, todos do NCPC.
Procedem assim as conclusões dos apelantes, impondo-se a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que, julgando improcedentes as invocadas excepções dilatórias e arguidas nulidades processuais, determine o prosseguimento dos autos com a prolação de despacho que identifique o objecto do litígio e enuncie os temas da prova.
V- DECISÂO
Nestes termos acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação revogando a decisão recorrida e, julgando improcedentes as excepções dilatórias invocadas e nulidades arguidas pelos réus, determina-se o prosseguimento dos autos com a prolação de despacho que identifique o objecto do litígio e enuncie os temas da prova.
Custas pelos apelados.
Guimarães 5.3.2015
Eva Almeida
Filipe Caroço
António Santos