Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1460/14.8TBGMR-D.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: INSOLVÊNCIA CULPOSA
REQUISITOS
PESSOA COLECTIVA
PESSOA SINGULAR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/28/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1 - São requisitos da insolvência culposa:
a) o facto inerente à actuação, por acção ou omissão, do devedor ou dos seus administradores, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência;
b) a culpa qualificada (dolo ou culpa grave);
c) e o nexo causal entre aquela actuação e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.
2 – Os factos descritos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 186.º do CIRE que fazem presumir a situação de insolvência apenas se aplicam a pessoas coletivas (estando pensados para a atuação dos seus administradores, de direito ou de facto), com exceção da ressalva contida no n.º 4, aplicando-se a pessoas singulares, com as necessárias adaptações e onde a isso não se opuser a diversidade de situações.
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1460/14.8TBGMR-D.G1
2.ª Secção Cível – Apelação
Relatora: Ana Cristina Duarte (R. n.º 445)
Adjuntos: Francisco Cunha Xavier
Francisca Mendes
***
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO
Por apenso aos autos de Insolvência de pessoa singular (apresentação), em que é insolvente J…, em face dos factos que fundamentaram o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, foi declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência.
O administrador de insolvência emitiu parecer no sentido da insolvência ser qualificada como culposa, no que foi acompanhado pelo Ministério Público.
Notificado, o requerido nada disse.
Após audiência de julgamento, foi proferida sentença onde se decidiu qualificar a insolvência de J… como culposa, decretando a sua inibição para o exercício do comércio, para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, durante um período de quatro anos.
Discordando da sentença, dela interpôs recurso o insolvente, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes
Conclusões:
I. Na decisão proferida pela Exma. Sr.a Juiz a quo, os fundamentos constantes da sentença estão em oposição com a decisão, sendo que, por esta contradição, padece a sentença recorrida do vício de nulidade. - Cfr. Art.º 615.°, n.º 1, c), e n.º 4, do CPC.
II. A Meritíssima Juiz a quo entrou, na sentença ora posta em crise, em "contradição real entre os fundamentos e a decisão: a construção da sentença é viciosa, uma vez que os fundamentos referidos pelo juiz conduziriam necessariamente a uma decisão de sentido oposto ... "
III. Se por um lado se diz, a determinado ponto do disposto no enquadramento jurídico da sentença ora posta em crise, que "Sendo o insolvente pessoa singular, sem que haja notícia de que à data da instalação da sua situação de insolvência explorasse qualquer empresa, sobre ele não recaía o dever de se apresentar à insolvência, ante a ressalva ínsita no art. 18.°/2 ClRE. Contudo, a factualidade dada como assente é subsumível à previsão do Art.º 186.º/2/al. g) ClRE.", depois qualifica-se a insolvência do Recorrente como culposa por este alegadamente ter prosseguido uma exploração deficitária .... existe uma clara contradição.
IV. Ora, do cotejo dos factos dados como provados não consta qualquer referência - porque inexistente - ao insolvente ter explorado qualquer empresa (como é previamente admitido nos fundamentos da sentença), com aqueles que são extraídos para a sua subsunção à previsão legal da ai. g) do n.º 2 do Art.º 186.° do CIRE, que exige a existência de uma "exploração deficitária" por parte do insolvente, pelo que não há um raciocínio lógico para que se possa justificar a decisão ora posta em crise.
V. Se o facto do insolvente não ter, à data da instalação da situação de insolvência, uma exploração deficitária, justifica a sua não condenação em insolvência culposa - Art.º 18.°, n.º 2, e al. a) do n.º 3 do Art.º 186.°, ambos do CIRE - mal se compreende que, depois, sem qualquer outro facto condizente com a previsão legal da al. g) do n.º 2 do Art.º 186.° do CIRE, seja condenado por ter prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saber ou dever saber que conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência.
VI. A Meritíssima Juiz a quo escreveu - e bem - o que queria escrever – não há notícia nos autos de que à data da instalação da situação de insolvência - nem depois - o insolvente explorasse uma empresa ou possuísse uma “exploração deficitária"- mas, logo depois, entende que o insolvente deve ser condenado porque, alegadamente e sem qualquer suporte fáctico, prosseguiu, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saber ou dever saber que conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência, construiu um raciocínio contraditório, contradição não aparente.
VII. Não consta dos factos dados por provados onde e quando o Insolvente prosseguiu, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saber ou dever saber que conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência.
VIII. A decisão ora posta em crise, contém fundamentos que estão em oposição com a decisão, nomeadamente, para os concretos meios de prova que sustentam a decisão da qualificação da insolvência do Apelante como culposa e a que a Exma. Juiz a quo se refere aquando da sua subsunção à norma da al. g) do n.º 2 do Art.º 186.° do CIRE, aludindo a dívidas contraídas pelo Apelante, sem que sequer se mencione que tenham sido contraídas por força de uma exploração deficitária, nunca demonstrada nos presentes autos, até porque inexistente - Veja-se o elenco dos factos dados por provados.
IX. A decisão ora posta em crise enferma do vício de nulidade por não haver sintonia lógica entre a fundamentação e a decisão, verificando-se, por isso, a causa de nulidade prevista no disposto no Art.º 615.°, n.º 1, al. c), do CPC.
X. A decisão objecto do presente recurso assenta apenas em matéria conclusiva e não em factos passíveis de se subsumir aos pressupostos concretos e constantes da al. g) do n.º 2 do Art.º 186.° do CIRE.
XI. Não consta dos autos qualquer elemento probatório de que o Apelante tenha explorado o que quer que seja, tanto mais que dos factos dados como provados, se demonstrou que o mesmo trabalhava por conta de outrem desde novembro de 2004, não cumulando qualquer outra atividade profissional, com a que exercia em modo dependente - Vide al. e) dos factos dados como provados.
XII. O facto do Apelante não ter cumprido com a sua obrigação de alimentos aos seus filhos menores, não ter pago as quotas de condomínio, e não ter pago alguns serviços telefónicos móveis, não parece ter qualquer conexão com a existência e o giro comercial de uma "exploração deficitária", e, portanto, sem qualquer ligação ou subsunção possível à previsão legal da al. g) do n.º 2 do Art.º 186.° do CIRE.
XIII. É entendimento da jurisprudência que o facto do insolvente ter-se mantido a contrair créditos, não obstante as dificuldades financeiras já instaladas, que o impossibilitava de cumprir as obrigações assumidas, não é subsumível ao Art.º 186.°, n.º 2, alínea g) do ClRE.- Cfr. Acórdão da Relação de Coimbra, de 14/01/2014, cuja Relatora foi o Juiz Desembargador Catarina Gonçalves, Processo n." 785/11.9TBLRA-A.C1, disponível no site www.dgsí.pt.
XIV. Sustentar, como se sustentou na sentença ora posta em crise, que o facto do Insolvente ter contraído um empréstimo em maio de 2013, quando ainda tinha emprego (ficou desempregado em setembro de 2013 - Vejam-se os factos provados - da empresa para quem sempre trabalho desde 01.11.2004), e no sucessivo vencimento de quotas de condomínio da fracção de que era titular é, ressalvada melhor opinião, excessivo, para ao abrigo do preceituado na alíneas g) do n.º 2 do Art.º 186.° do CIRE, qualificar a insolvência do Recorrente como culposa.
XV. Aliás, reportando-se especificamente tal comportamento à previsão da alínea g) do n.º 2 do Art.º 186.° do CIRE quando nunca, em nenhum momento, sequer se alegou e muito menos provou que o insolvente tivesse prosseguido, no seu interesse pessoal, ou de terceiro, uma exploração deficitária, pois que, como ficou a constar dos factos provados, o insolvente sempre trabalhou por conta de outrem desde 01.11.2004 e encontra-se desempregado desde setembro de 2013, razão que conduziu, esta sim, à sua situação de inexorável insolvência, não é subsumível na norma invocada na sentença recorrida, para justificar a qualificação da insolvência como culposa.
XVI. No caso concreto dos autos, não se encontram preenchidos ou verificados os pressupostos previstos na alínea g), do n.º 2, do Art.º 186.° do CIRE, e por isso, não existe fundamento para a qualificação da insolvência do Apelante como culposa.
Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença que qualificou como culposa a insolvência do Recorrente, e o inibiu para o exercício para o exercício do comércio para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa durante um período de 4 (quatro) anos, nos termos das conclusões referidas supra, fazendo-se desse modo a habitual JUSTiÇA!

Não foram oferecidas contra alegações.
O recurso foi admitido como de apelação, a subir nos próprios autos, imediatamente e com efeito meramente devolutivo.
A Sra. Juíza pronunciou-se pela inexistência da nulidade invocada no recurso.
Foram colhidos os vistos legais.

As questões a resolver traduzem-se em saber se a sentença é nula por contradição entre os fundamentos e a decisão e se há factos que permitam qualificar a insolvência como culposa.

II. FUNDAMENTAÇÃO
Na sentença foram considerados os seguintes factos:
Factos Provados:
a) Por sentença datada de 02.07.2014, a fls. 68ss dos autos principais, já transitada em julgado, foi declarada a insolvência de J…, no seguimento da apresentação à insolvência efectuada pelo insolvente em 02.06.2014;
b) Ao apresentar-se à insolvência o insolvente não juntou a relação de bens a que alude o art. 24.º/1/al. e) CIRE, tendo afirmado que “Em cumprimento do disposto na alínea e) do n.º 1 do art. 24.º do CIRE informa-se que o requerente não possui qualquer bem pessoal, a não ser os estritamente necessários para a sua economia pessoal.” (art. 26.º da petição inicial);
c) Ao insolvente foram apreendidos os bens móveis relacionados a fls. 3ss do apenso A, avaliados em €285, e um imóvel, melhor descrito a fls. 6 do apenso A, com um valor de venda rápida de € 46.000 (cfr.fls. 3ss e 6 do apenso A);
d) O insolvente está desempregado desde pelo Setembro de 2013, por extinção do seu posto de trabalho, auferindo subsídio de desemprego no valor mensal de €485 (cfr. fls. 24ss dos autos principais);
e) Entre 01.11.2004 e Setembro de 2013 o insolvente trabalhou sempre para a mesma empresa;
f) O insolvente é pai de dois menores, de 13 e 17 anos, tendo ficado vinculado ao pagamento de uma prestação de alimentos no valor mensal global de €200 (cfr. fls. 34 dos autos principais); contudo, nada pagou no ano de 2011, tendo sido requerida a condenação substitutiva do FGADM (cfr. certidão a fls. 443ss dos autos principais);
g) O insolvente reside no imóvel apreendido (cfr. relatório a fls. 174ss dos autos principais);
h) Foram reconhecidos créditos no valor global de €77.953,99, sendo que (pastas contendo as reclamações de créditos):
€560,21 foram reclamados pelo B… com fundamento em saldo devedor (desde 18.06.2012) de cartão de crédito emitido em 09.05.2007;
€5.590,59 foram reclamados pelo BN… com fundamento em contrato de mútuo (no valor de €6.000) celebrado em 08.06.2011 e incumprido desde 27.11.2013;
€6.617,59 foram reclamados pelo BP… com fundamento em: 1. Contrato de mútuo no valor de €5.500 celebrado em 03.05.2013; 2. Saldo devedor (desde Março de 2014) de uma conta de depósitos à ordem;
€58.472,77 foram reclamados pelo D…, com fundamento em dois contratos de mútuo (garantidos por hipoteca sobre o imóvel apreendido) celebrados em 07.02.2007 e incumpridos desde 01.08.2013 e 01.12.2013); para cobrança coerciva do valor em dívida foi instaurada contra o insolvente a execução que sob o n.º 773/14.3TBGMR corre termos pela secção central de execução de Guimarães (cfr. certidão a fls. 371ss dos autos principais);
€4.174.09 foram reclamados pela H… SA, com fundamento em contrato de crédito em conta corrente celebrado em 02.10.2008 e incumprido desde 01.02.2013;
€2.189,09 foram reclamados pelo Condomínio do Edifício P…, com fundamento em quotas de condomínio devidas e não pagas reportadas ao período compreendido entre Dezembro de 2011 e Março de 2014; para cobrança coerciva deste crédito foi instaurada contra o insolvente, em 27.03.2014, a execução que sob o n.º 926/14.4TBGMR corre termos pela secção central de execução de Guimarães (cfr. certidão a fls. 261ss dos autos principais);
€280,74 foram reclamados pela Fazenda Nacional e reportam-se a IMI do ano de 2013 e custas;
i) Esteve pendente contra o insolvente, entre 20.07.2007 e Fevereiro de 2012, a execução n.º 3324/07.2TBGMR, instaurada pela Optimus com vista à cobrança coerciva da quantia de €758,31, referente a serviços de comunicações prestados em 1999 e 2000 e não pagos (cfr. certidão a fls. 315ss dos autos principais);
j) Esteve pendente contra o insolvente, entre 19.12.2005 e data posterior a 03.11.2011, a execução n.º 91023/005.0YYLSB, instaurada pela TMN com vista à cobrança coerciva da quantia de €358,15, referente a serviços de comunicações prestados em 2002 e não pagos (cfr. certidão a fls. 468ss dos autos principais);
k) Encontra-se pendente contra o insolvente, desde 19.10.2010, a execução n.º 3802/10.6TBGMR, instaurada pela TMN com vista à cobrança coerciva da quantia de €546,67, referente a serviços de comunicações prestados em 2007 e não pagos (cfr. certidão a fls. 454ss dos autos principais).

Entende o apelante que se verifica a nulidade da sentença prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil por “os fundamentos estarem em oposição com a decisão”.
Vejamos.
Uma sentença é nula, sob este prisma, quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão, isto é «quando os fundamentos invocados devessem, logicamente, conduzir a uma decisão diferente da que a sentença expressa» - Antunes Varela, in ‘Manual de Processo Civil’, 1.ª edição, pág. 671.
Conforme se refere no Acórdão da Relação de Coimbra de 24/05/2005, in www.dgsi.pt/jtrc: «A nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão apenas se verifica quando a decisão proferida padeça de erro lógico na conclusão do raciocínio jurídico, por a argumentação desenvolvida ao longo da sentença apontar claramente num determinado sentido e, não obstante, a decisão ser no sentido oposto».
Tal não se verifica no caso dos autos, pese embora, o percurso seguido na motivação não seja muito claro. A verdade é que, como se esclareceu, posteriormente, aquando do despacho que se pronunciou sobre a apontada nulidade, o disposto no artigo 186.º, n.º 2, alínea g) do CIRE, foi aplicado por remissão do seu n.º 4 (“o disposto nos n.ºs 2 e 3 é aplicável, com as necessárias adaptações, à atuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade de situações”), e não por se ter considerado que o insolvente explorasse qualquer empresa, quando nos factos provados ficou a constar o contrário – a aplicação daquela norma ao devedor singular, segundo o entendimento da sentença recorrida, fez-se constar de nota de rodapé, o que poderá não ser uma prática muito correta, sobretudo se considerarmos que todo o raciocínio jurídico subsequente depende do entendimento que tal norma se aplica aos devedores singulares.
A verdade é que está explicado o raciocínio jurídico que conduziu à aplicação daquele artigo 186.º, n.º 2, alínea g) do CIRE, pelo que não ocorre qualquer oposição entre os fundamentos e a decisão, motivo pelo qual improcede a invocada nulidade.

Outra questão é a de saber se havia motivos para qualificar esta insolvência como culposa.
Pensamos que não.
Nos termos do artº 185º do CIRE a insolvência é qualificada como culposa ou (por exclusão de partes) fortuita.
Estamos perante insolvência culposa quando a situação (de insolvência) tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência (nº 1 do artº 186º do CIRE).
São, assim, requisitos da insolvência culposa:
1) o facto inerente à actuação, por acção ou omissão, do devedor ou dos seus administradores, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência;
2) a culpa qualificada (dolo ou culpa grave);
3) e o nexo causal entre aquela actuação e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.
Por sua vez, estabelece o n.º 2 deste artigo – aplicável, tal como o n.º 3, por força do n.º 4, a pessoas singulares, com as necessárias adaptações e onde a isso não se opuser a diversidade de situações - que se considera sempre culposa a insolvência do devedor quando os seus administradores tenham incorrido em algum dos comportamentos elencados nas suas diversas alíneas.
Segundo a generalidade da doutrina, estas alíneas constituem presunções legais jure et jure, isto é, inilídiveis, conducentes à qualificação da insolvência como culposa, enquanto que, no dizer do Tribunal Constitucional (acórdão de 26.11.2008), estaríamos perante a enunciação legal de situações típicas de insolvência culposa, ou seja, face a factos-índice de insolvência culposa.
Mas, independentemente da opção por um ou outro entendimento, a verdade é que, no caso das várias alíneas deste nº 2, uma vez demonstrado o facto nelas enunciado, fica, desde logo, estabelecido o juízo normativo de culpa do administrador (ou do insolvente singular, quando a ressalva do n.º 4 seja de operar), sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas do n.º 2 e a situação de insolvência ou o seu agravamento.
O mesmo já não acontece com o n.º 3 do mesmo artigo, que contempla meras situações de presunção de culpa grave do administrador ou gerente que incumpriu algum dos deveres mencionados nas suas alíneas a) e b), ou seja, o dever de requerer a declaração de insolvência e a obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial – veja-se Acórdão da Relação de Guimarães de 29/06/2010, in www.dgsi.pt, que identifica a diferença de regimes entre os dois números do citado artigo
Trata-se, aqui, de presunções juris tantum, ilidíveis por prova contrária (artigo 350.º, n.º 2, do CC).
Significa isto que, uma vez constatada a omissão de algum dos deveres enunciados nas ditas alíneas, a lei faz presumir a culpa grave do administrador ou gerente.
Mas porque a culpa grave, assim presumida, por si só não é suficiente para qualificar a insolvência como culposa, por faltar um dos requisitos previstos no nº1 do citado art. 186º, necessário se torna demonstrar o nexo de causalidade entre aquela omissão culposa e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.

Assim, quanto ao devedor singular, que é o caso que temos nos autos, não há dúvida que se aplica a noção geral de insolvência culposa estatuída no n.º 1 do artigo 186.º do CIRE, só se aplicando as alíneas dos n.ºs 2 e 3 do mesmo artigo (desenhadas para pessoas coletivas e por referência a comportamentos dos seus administradores de direito ou de facto) nos termos da ressalva contida no n.º 4 do mesmo artigo, ou seja, com as necessárias adaptações e onde a isso não se opuser a diversidade de situações.
No caso dos autos, face aos factos provados, pensamos que se foi longe de mais ao equiparar o comportamento do devedor ao de um administrador de pessoa coletiva que tenha “prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saber ou dever saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência”, nos termos da alínea g) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE.
Esta é, aliás, uma das alíneas que mais dificilmente se conseguirá adaptar a uma pessoa singular, que sempre trabalhou por conta de outrem, face ao conceito de “exploração deficitária”, claramente ligado à administração de uma pessoa coletiva.
Se analisarmos os factos, veremos que o insolvente trabalhou desde 2004 até setembro de 2013 para a mesma entidade patronal que, conforme decorre dos elementos existentes nos autos, era um comerciante de automóveis, auferindo um vencimento base, acrescido de comissões resultantes de vendas realizadas e que só deixou de trabalhar por extinção do seu posto de trabalho (sabido como é que a venda de automóveis sofreu, nos anos imediatamente anteriores a 2013, um grande retrocesso que conduziu ao encerramento de vários stands).
Ora, que a partir de 2011, o insolvente tenha deixado de pagar a prestação alimentar a favor de seus filhos menores, a que estava obrigado, e as prestações do condomínio, terá certamente a ver com o facto de a componente variável (comissões) do seu vencimento ter decrescido em função da menor venda de veículos automóveis, sabendo-se que o seu vencimento base era de, apenas, € 475,00 ilíquidos.
Verifica-se, também, que o mútuo (crédito pessoal) junto do BP… foi celebrado quando o insolvente ainda estava empregado e que este só deixou de pagar as prestações devidas pelo crédito hipotecário (compra da casa) quando ficou desempregado, sendo este, de longe, o maior crédito em causa na insolvência (€ 58.472,77 num total de € 77.953,99 de créditos reconhecidos), o mesmo tendo acontecido com os créditos reclamados pelo BN… e BP…, que também só entraram em incumprimento em novembro de 2013 e março de 2014 (tendo a insolvência sido requerida em 2 de junho de 2014), respetivamente.
Por outro lado, veja-se que, enquanto esteve empregado, o devedor conseguiu liquidar as dívidas que tinha para com os operadores telefónicos, extinguindo-se, pelo pagamento, as execuções respetivas.
O próprio administrador judicial (pese embora o parecer que deu neste apenso), ao elaborar o Relatório previsto no artigo 155.º do CIRE, foi de opinião que “a situação atual do insolvente não se funda em culpa pessoal, mas antes nas circunstâncias descritas…a declaração de insolvência na presente data não teve qualquer incidência na situação económica e financeira deste, pois não implicou um acréscimo de passivo, nemtão pouco inviabilizou ou dificultou a cobrança dos seus créditos, mas apenas fez causar um aumento do valor dos juros…sou de opinião que a exoneração do passivo restante deve ser concedida…”
Ou seja, a conclusão a retirar é que todo o processo que conduziu à insolvência do requerente esteve demasiado conexionado com o desemprego de que foi vítima e as condições conjunturais do sector em que trabalhava, podendo, assim, concluir-se que a sua insolvência “se terá ficado a dever à conjuntura económica, a razões externas e independentes da sua vontade”, o que fará com que a mesma tenha que considerar-se fortuita – veja-se, neste sentido, o Acórdão da Relação do Porto de 24/09/2007, disponível em www.dgsi.pt.
Veja-se, também, e no mesmo sentido, Acórdão da Relação de Guimarães de 12/03/2009, in www.dgsi.pt: “A qualificação da falência como culposa exige uma relação de causalidade entre a conduta (dolosa ou gravemente culposa) do devedor e a situação de insolvência (a situação de insolvência está tipificada nos nºs 1 e 2 do artº 3º do CIRE: é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas). Isto resulta aliás muito claro da letra do artº 186º, nº 1 do CIRE. Daqui que (…) o devedor pode ter agido dolosamente ou com culpa grave, mas em nada ter contribuído para a criação ou agravamento da insolvência. E se assim acontecer, então não pode a insolvência ser qualificada de culposa (…). Por exemplo, se a insolvência resultar de fatores económicos alheios à vontade dos responsáveis (variáveis incontroláveis pelo devedor insolvente, como as dificuldades do sector de atividade em que se insere e a conjuntura do mercado), poderemos, então, concluir que fica ilidida a presunção de culpa grave”.
Veja-se que o devedor foi pagando as prestações devidas aos bancos e às operadoras de telecomunicações, enquanto esteve empregado e que foi a situação de desemprego que originou o incumprimento (com ressalva das prestações alimentares que, infelizmente, e por um vício de mentalidade a que é difícil pôr cobro em Portugal, são sempre as primeiras a deixar de ser pagas – no caso dos autos, substituído o progenitor faltoso pelo FGADM).
Não podemos, assim, concordar com o raciocínio expendido na sentença sob recurso.
Por um lado não nos parece correta a aplicação a uma pessoa singular do disposto no artigo 186.º, n.º 2, alínea g) do CIRE (que conduziria a uma presunção inilidível de culpa) e, por outro, face aos factos provados, entendemos não estarem preenchidos os requisitos enumerados no n.º 1 do mesmo artigo para que a insolvência se possa considerar culposa, motivos pelos quais, iremos julgar procedente a apelação, com a consequente revogação da sentença recorrida e a necessária qualificação da insolvência como fortuita.

III. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida e qualificando-se a insolvência de J…, como fortuita.
Custas pela massa insolvente.

***
Guimarães, 28 de janeiro de 2016