Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
298/13.4TAVCT.G1
Relator: JOÃO LEE FERREIRA
Descritores: NULIDADE INSANÁVEL
ACUSAÇÃO PARTICULAR
CRIME SEMI-PÚBLICO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/20/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO PROCEDENTE
Sumário: I – Instaurado inquérito por crime de natureza semipública, ocorre a nulidade insanável do art. 119 al. c) do CPP se o Ministério Público encerrar o inquérito, determinando a notificação do assistente para deduzir acusação particular e, posteriormente, limitar-se a acompanhar o impulso processual do assistente.
II – Constatada a existência de tal nulidade, não deve o juiz rejeitar a acusação particular e decidir o arquivamento dos autos, mas declarar a nulidade do despacho de encerramento do inquérito e do processado subsequente e determinar que o processo regresse aos serviços do Ministério Público para que seja suprido o vício.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães,

I – RELATÓRIO

1. Por despacho proferido em 12 de Setembro de 2013, o Exmº juiz do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Viana de Castelo decidiu rejeitar por considerar nula a acusação particular deduzida pelo assistente Melchior A... contra o arguido Paulo C... e determinou o arquivamento dos autos, considerando, em síntese, que o crime imputado tem natureza semipública e a legitimidade para a acusação pertence apenas ao Ministério Público.

2. Inconformado, o assistente interpôs recurso, em 15 de Outubro de 2013, pugnando pela revogação daquele despacho judicial.

O recorrente extraiu das motivações as seguintes conclusões (transcrição) :

“1-Foi a acusação particular deduzida pelo Assistente rejeitada porquanto se entendeu que está em causa a imputação de factos susceptíveis de configurarem três crimes de difamação por causa e no exercício de funções a uma das pessoas mencionadas no art. 132.°, n.° 2, al. l) do Código Penal, neste caso “cidadão encarregado de serviço público”.
2-Nessa conformidade, os crimes imputados ao Arguido revestem natureza semi-pública e não particular, carecendo o Assistente de legitimidade para proceder à acusação, tal como resulta dos arts. 48.° a 50.° do CPP, o que, nos termos do disposto no art. 1 19.°, al. b) deste diploma legal, origina uma nulidade insanável.
3-O despacho recorrido enferma do vicio de contradição entre o fundamento de nulidade insanável, prevista no art. 119.°, al. b) do CPP, que presidiu à rejeição da acusação particular deduzida pelo Assistente e aqui recorrente, acompanhada pela Digníssima Procuradora do Ministério Público, e a decisão de arquivamento dos autos - al. b) do n.° 2 do art. 410.° do CPP.
4-Pois a falta de promoção do processo pelo Ministério Público, que fez uma inadequada qualificação jurídica dos factos — conferindo-lhes natureza particular — quando, na verdade, estes revestem natureza semi-pública, faz despoletar a invalidade do acto em que a mesma ocorreu, isto é, o despacho de encerramento do inquérito, bem como de todo o processado subsequente, no qual se inclui o despacho de notificação para deduzir a acusação particular, a própria acusação particular e o despacho de acompanhamento da mesma pelo MP.
5-Assim, ao abrigo do art. 122.° do CPP, o Meritíssimo Juiz do tribunal a quo deveria ter declarado a invalidade do despacho de encerramento do inquérito e processado posterior, ordenando a remessa dos autos para os Serviços do Ministério Público de Viana do Castelo com vista a suprir o vício cometido desde a sua verificação e a partir do último acto válido, por via de um despacho de arquivamento ou de acusação, pelo que tal só ocorrerá se o juiz “devolver” os autos ao MP, e não arquivar, sem mais, os autos.
6-Ao decidir da forma como decidiu, ordenando o arquivamento dos presentes autos ao invés da remessa dos mesmos para os Serviços do Ministério Público da Comarca de Viana do Castelo, o Tribunal a quo violou o estatuído nos n.os 2 e 3 do art. 122.° do CPP.”

O arguido, Paulo C..., formulou resposta concluindo que deve ser negado provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida. No prazo estabelecido na lei para o efeito, o Ministério Público, por intermédio da magistrada no Juízo Criminal de Viana do Castelo, apresentou igualmente resposta, entendendo, em síntese, que a acusação não deveria ter sido rejeitada, impondo-se assim, a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que imponha o recebimento da acusação”.

3. Neste Tribunal da Relação de Guimarães, onde o processo deu entrada a 13 de Novembro de 2013, a Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu fundamentado parecer concluindo que deve ser declarada a invalidade do despacho de encerramento do inquérito, devendo os autos regressar aos serviços do Ministério Público para sanação do vício e para os termos subsequentes, assim procedendo o recurso do assistente.

Não houve resposta ao parecer.

Recolhidos os vistos do juiz presidente da secção e do juiz adjunto e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTOS

4. Como tem sido entendimento unânime, os limites e o objecto do recurso definem-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, onde sintetiza as razões da discordância do decidido e resume as razões do pedido - artigos 402º, 403.º e 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, naturalmente que sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso (cfr. Silva, Germano Marques da, Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994, p. 320; Albuquerque, Pinto de, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª ed. 2009, pag 1027 e 1122, Santos, Simas, Recursos em Processo Penal, 7.ª ed., 2008, p. 103; entre outros os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).

Pela forma como o assistente estrutura o seu recurso, a questão fundamental a resolver consiste apenas em saber se, tendo sido suscitada e declarada no despacho a que se reporta o artigo 311.º do C.P.P. uma nulidade processual por omissão de acusação do Ministério Público em crime de natureza pública, o processo deve ser imediatamente arquivado ou, antes, determinada a remessa dos autos aos serviços do Ministério Público para sanação do vício e os termos subsequentes.

5. Para compreensão e apreciação neste âmbito impõe-se relembrar aqui que o despacho judicial recorrido tem o seguinte teor: (transcrição):

“O Tribunal é o competente.
O assistente Melchior A... deduziu acusação particular contra Paulo C..., imputando-lhe a prática de três crimes de difamação. p. e p. pelos artºs. 180, n.° 1, 182 e 183, todos do CP.
A fls. 299, a digna M.P. acompanha a acusação particular.
Cumpre emitir o despacho a que alude o art. 311 do C.P.C..
Este despacho destina-se a sanear o processo.
Para o efeito, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
O presidente rejeita ainda a acusação, não tendo pronúncia, se a considerar manifestamente infundada.
Finalmente, o presidente não aceita a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.° 1 do artigo 284 e do n.° 4 do artigo 285, respectivamente.
Estabelece o n.° 3 do referido artigo que a acusação considera-se manifestamente infundada: quando não contenha a identificação do arguido; quando não contenha a narração dos factos; se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou se os factos não constituírem crime.
Comete o crime de difamação “quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias” (cfr. art. 180, n. 1, do C.P.).
Para o cometimento do crime é necessário que o agente aja com dolo, bastando o dolo genérico.
Da acusação particular verifica-se que o Assistente imputa ao Arguido factos que este alegadamente lhe terá imputado ofensivos da sua honra ou consideração, enquanto e por causa das funções de Presidente de Pessoa Colectiva de Direito Público.
Aliás, é bem patente a alusão, que é feita na douta acusação particular, à circunstância de o Arguido — alegadamente — se dirigir ao “Presidente remunerado do Turismo , que, pelos dizeres ali mencionados, o toma identificável, assim como se refere que — alegadamente — o motivo que terá levado o Arguido a tal comportamento terá origem numa acção judicial em que eram partes a empresa do Arguido e o Turismo do Norte (tal como consta do artigo 39 da referida acusação).
Assim, é bom de ver que, salvo o devido respeito por opinião contrária, no caso em análise — alegadamente — são imputados factos ao Presidente do Turismo do Porto e Norte de Portugal, ER, sendo esta instituição uma pessoa colectiva de direito público de natureza associativa, com autonomia administrativa e financeira e com património próprio, pelo que está em causa a imputação de factos — por causa e no exercício das funções — a uma das pessoas mencionadas no art. 132, n.° 2, ai. 1), do Cl a saber, cidadão encarregado de serviço público.
Pelo exposto, acresce, necessariamente à imputação subsunção legal — feita pelo Assistente o disposto nos artigos 184 e 132, n.° 2, ai. 1), ambos do CP.
Acontece que esta alteração, por força do disposto no artigo 188 do referido diploma legal, importa que a natureza do ilícito seja distinta da inicialmente considerada. Isto é, o crime passa de particular a semi-público.
Nestes termos, porque a natureza dos crimes em confronto é diferente, passando este a revestir a natureza semi-pública, carece o Assistente de legitimidade para proceder à acusação, tal como decorre do disposto nos artigos 48 a 50 do CP o que, nos termos do art. 119, al. b), do CP, origina uma nulidade insanável.
Nestes termos, rejeito a acusação particular por a considerar nula.
Notifique.
Custas pela assistente fixando em 1 Ucs de taxa de justiça (art. 515 do CPP e art. 8, n.° 9, do RCP).
Registe e deposite.
Oportunamente, arquivem.”

6. Os presentes autos tiveram início com participação criminal formulada em 11 de Fevereiro de 2013 por Melchior M..., imputando a Paulo C... factos susceptíveis de integrarem o cometimento pelo requerido de três crimes de difamação através da inserção de mensagens e comentários em rede social da internet, previstos e punidos nos artigos 180º n.º 1, 182.º, 183.º n.º 1 alínea a) e 184.º, todos do Código Penal (cfr. fls. 2 a 24).

Segundo a exposição formulada na participação crime, os juízos e considerações ofensivos da honra e da consideração do requerente terão sido efectuados pelo denunciado por causa das funções que o ofendido exerce de Presidente da Direcção do Turismo do Porto e Norte de Portugal, E.R..

O organismo denominado Turismo do Porto e Norte de Portugal assume a natureza de pessoa colectiva de direito público, sendo a entidade regional responsável pela gestão e promoção turística, sob a tutela do membro do Governo responsável pela área do turismo, visando o aproveitamento sustentado dos recursos turísticos, no quadro das orientações e directrizes da politica de turismo definida pelo Governo e nos planos plurianuais das administrações central e local, dispondo para o efeito além do mais de receitas provenientes de dotações que forem confiadas no Orçamento do Estado ao Instituto do Turismo de Portugal, I.P. para a prossecução do desenvolvimento do turismo regional e sub-regional (vide artigos 1.º, 3.º n.º 1, 5.º, 16.º e 27.º, todos do Decreto-Lei nº 67/2008, em vigor na data dos factos, e os artigos 1.º, 3.º n.º 1, 5.º, 6.º, 30.º e 31.º, todos do Decreto-Lei nº 33/2013, de 16 de Maio, actualmente vigente).

Podemos assim concluir que o ofendido nestes autos, enquanto titular do cargo de Presidente da Direcção do Turismo do Porto e Norte de Portugal E.R., se integra no conceito de cidadão encarregado de serviço público.

Uma vez que os factos teriam sido cometidos por causa do exercício dessas funções, o correspondente procedimento criminal não depende de acusação particular, em conformidade com o disposto no artigo 184.º, com referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l) e 188.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Penal.

Assim, uma vez que os crimes destes autos assumem natureza semipública, a queixa do ofendido sempre seria suficiente para atribuir ao Ministério Público o poder-dever de promoção do processo criminal e a legitimidade exclusiva para a acusação pública (artigos 48.º a 50.º). Sendo de notar ainda que só após a notificação da acusação do Ministério Público, “o assistente pode também deduzir acusação pelos factos acusados pelo Ministério Público, por parte deles ou por outros que não importem uma alteração substancial daqueles” (artigo 284.º, todos do Código do Processo Penal).

Porém, a Exmª magistrada do Ministério Público decidiu encerrar o inquérito, determinando a notificação do assistente para deduzir acusação particular e, posteriormente, limitou-se a acompanhar o impulso processual do assistente (fls. 133 e 299).

Como se escreveu no despacho recorrido e o recorrente não contesta, tem aplicação nestes autos a jurisprudência fixada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2000, DR 06-01-2000: o Ministério Público, ao não deduzir acusação por crime público ou semipúblico devendo fazê-lo, viola o dever de promover a acção penal (…), o que constitui nulidade como expressamente prevê o artigo 119.º, n.o 1, alínea b), e não a simples irregularidade do artigo 123. E porque de nulidade insanável se trata, não pode a mesma vir a ser sanada por posterior acusação do assistente a que o Ministério Público adira (vide, além do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07-04-2010, Proc. 547/08.0PAMTJ.L1, já citado nos autos, também o Acórdão do mesmo Tribunal da Relação de Lisboa de 14-12-2011,Proc. 1288/10.4TAOER.L1, in http://www.pgdlisboa.pt/jurel/jur_busca.php?busca=assunto&buscajur=acusa%E7%E3o+particular&areas=000&exacta=on&buscaprocesso=&buscaseccao=&pagina=1&ficha=1.

Concluímos assim pela verificação nestes autos de uma nulidade insanável por falta de promoção do processo pelo Ministério Público.

Apesar de o processo ter transitado da fase de inquérito, de ter de se respeitar sempre a autonomia do Ministério Público, não se vislumbra fundamento que afaste a aplicabilidade do regime geral das invalidades processuais constante dos artigos 118.º a 123.º do Código do Processo Penal.

Nestes termos, a nulidade afecta todos os efeitos do acto processual de encerramento de inquérito, bem como os trâmites subsequentes dele dependentes (artigo 122.º n.º 1 do Código do Processo Penal), devendo o procedimento ser retomado pelo Ministério Público, nos termos que o magistrado titular entender adequados.

Sem necessidade de outros considerandos, procede o recurso do assistente.

III - DECISÃO

7. Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso do assistente e, em consequência, declaram a nulidade do despacho de encerramento do inquérito e do processado subsequente dele dependente, incluindo a decisão recorrida, e determinam que os autos regressem aos serviços do Ministério Público no Tribunal Judicial de Viana do Castelo para que seja suprimido o vício processual.

Sem tributação.