Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1216/13.5TBBCL-A.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
PENHOR
CRÉDITO LABORAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/13/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: Os créditos garantidos por penhor devem graduar-se à frente dos créditos laborais (com privilégio mobiliário geral), relativamente aos bens sobre os quais foram constituídos.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO
No apenso de reclamação de créditos relativo à insolvência de “O…, Lda.”, proferida a sentença de graduação de créditos, veio o reclamante “Banco…, SA” interpor recurso, cujas alegações terminou com as seguintes
Conclusões:
1. O crédito reclamado pela ora Recorrente, no montante de € 5.314,11, é garantido por penhor financeiro sob 477,53 unidades de participação do Fundo de Investimento Gespatrimónio Rendimento, bem móvel apreendido para a massa insolvente.
2. A aqui Recorrente é efectivamente credora e detentora de crédito de natureza garantida, que goza de privilégio mobiliário especial.
3. O referido penhor financeiro consta da reclamação de créditos da ora Recorrente, bem como na lista de créditos reconhecidos apresentada pela Exma. Senhora Administradora de Insolvência e foi homologado pelo tribunal a quo.
4. E neste conspecto, preceitua o artº 666º, nº 1 do Cód. Civil:“1. O penhor confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou outros direitos não susceptíveis de hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiro”.
5. Sendo certo que, o penhor constituído a favor da aqui Recorrente, incide sobre bens móveis concretos, constituindo um privilégio mobiliário especial, nos termos do artigo 735.º, n.º 2, 2.ª parte do Cód. Civil.
6. Os créditos dos trabalhadores, por sua vez, gozam de privilégio mobiliário geral e imobiliário especial, conforme resulta do artigo 333.º, n.º 1, do Código de Trabalho.
7. Considerando que o n.º 2 do artigo 140.º do CIRE dispõe “a graduação é geral para os bens da massa insolvente e especial para os bens a que respeitem direitos reais de garantia e privilégios creditórios.”
8. Outro não podia ser o entendimento do tribunal a quo, que não o de uma graduação especial para os bens empenhados, e no que respeita concretamente ao concurso de créditos - penhor constituído a favor da Recorrente e crédito do trabalhador N… - o crédito da Recorrente sempre deveria ter preferido ao crédito do trabalhador.
9. A sentença, objecto do presente recurso, está certamente eivada de manifesto lapso, ao graduar em primeiro lugar o crédito mobiliário geral do trabalhador da Insolvente em detrimento do crédito mobiliário especial garantido pelo penhor constituído a favor da Recorrente.
10. Razão pela qual a douta sentença de verificação e graduação de créditos, graduou, erradamente, em primeiro lugar o crédito reclamado pelo trabalhador, em vez de graduar em primeiro lugar o crédito garantido pelo penhor financeiro do ora Recorrente, descurando assim o teor do preceituado no artigo 749.º, n.º 1 do Código Civil.
11. Outro não podia ser o entendimento do tribunal a quo, que não o de uma graduação especial para os bens empenhados, e no que respeita concretamente ao concurso de créditos - penhor constituído a favor da Recorrente e crédito do trabalhador N… - o crédito da Recorrente sempre deveria ter preferido ao crédito do trabalhador.
12. Face ao exposto, resulta cristalino que o crédito do ora Recorrente é, de facto, garantido por penhor sobre as unidades de participação apreendidas para a massa insolvente sob a verba 2, conforme por si alegado na sua reclamação de créditos e reconhecido pela Exma. Senhora Administradora da Insolvência nos termos do artigo 129.º, n.º 4 do CIRE.
13. E atendendo à sua natureza de privilégio mobiliário especial prevalece sobre o crédito reclamado do trabalhador da Insolvente que, somente possui natureza de privilégio mobiliário geral sob as 477,53 unidades de participação do Fundo de Investimento Gespatrimónio Rendimento, não tendo sido os mesmos graduados nesses termos certamente por manifesto lapso.
14. Deste modo, ao graduar os créditos reclamados pelo trabalhador da insolvente com prioridade sobre o crédito da ora Recorrente, garantido por penhor financeiro, a sentença em crise viola de forma manifesta o preceituado nos artigos 749.º do Código Civil e 175.º do CIRE.
15. Pelo que, no que respeita à graduação dos créditos para serem pagos pelo produto da venda do bem móvel apreendido (477,53 unidades de participação do Fundo de Investimento Gespatrimonio Rendimento), deveria o Mmo.º Juiz a quo ter graduado em 1.º lugar o crédito reclamado pelo Recorrente e reconhecido, no montante de € 5.314,11 garantido por penhor financeiro; e, em 2.º lugar o crédito reclamado pelo trabalhador da Insolvente; seguindo-se os demais créditos comuns e subordinados.
16. Não pode, por isso, o Recorrente conformar-se com a graduação dos créditos constante da sentença recorrida, que gradua em primeiro lugar o crédito reclamado pelo trabalhador, crédito esse que beneficia somente de privilégio mobiliário geral sob as 477,53 unidades de participação do Fundo de Investimento Gespatrimonio Rendimento.
17. Assim sendo, deve ser julgado procedente o presente recurso, revogando-se a douta sentença em crise na parte em que procedeu à graduação dos créditos que devem ser pagos pelo produto da venda das 477,53 unidades de participação do Fundo de Investimento Gespatrimonio Rendimento, violando o disposto nos artigos artigos 735.º, n.º 2, 2.ª parte e 749.º, n.º 1 do Código Civil e ainda 175.º do CIRE.
Termina pedindo que seja concedido provimento ao recurso e, em consequência, revogada a sentença recorrida e substituída por outra que reconheça a graduação de créditos ora peticionada.

O teor decisório da sentença, na parte que aqui interessa, é o seguinte:
«II. Graduar os créditos reconhecidos pela forma seguinte:
A) Quanto às 477,53 unidades de participação do Fundo de Investimento Gespatrimónio Rendimento, melhor descritas sob a verba n.º 2 do auto de apreensão de bens:
a) o reclamado pelo trabalhador da insolvente N…;
b) o crédito reclamado pelo Banco…, SA, no valor de € 5314,11;
c) os demais créditos reclamados, que são comuns, rateadamente;
d) o crédito subordinado»

Na relação de créditos reconhecidos, elaborada pela administradora da insolvência, ao abrigo do disposto no artigo 129.º, n.ºs 1 e 2 do CIRE e, relativamente ao crédito do ora recorrente, pode ler-se que o mesmo deriva de “garantia prestada pelo Banco a “M…, Lda.” após solicitação da insolvente, no montante de € 6000,00, a fim de assegurar o cumprimento das obrigações resultantes do contrato de arrendamento celebrado entre a insolvente e a beneficiária. Para garantia das obrigações emergentes da garantia bancária prestada, foi constituído penhor financeiro sobre 477,53 unidades de participação do Fundo de Investimento Gespatrimónio Rendimento (verba n.º 2 do auto de arrolamento de bens). A garantia foi acionada em 03/05/2013, no valor de € 6000,00.” Mais se acrescenta que o crédito garantido é no montante de € 5314,11 e que o crédito subordinado é de € 144,90, referente a juros de mora vencidos após a declaração de insolvência.
Relativamente ao crédito do trabalhador da insolvente N…, vem o mesmo reconhecido pelo valor reclamado de € 9568,27, proveniente de contrato de trabalho celebrado entre o reclamante e a insolvente em 01/01/2009, para exercer funções de Técnico Optometrista, considerado privilegiado, com privilégio mobiliário geral e imobiliário.

Não foram oferecidas contra alegações.
O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

A única questão a resolver traduz-se em saber se o crédito do recorrente devia ter sido graduado à frente do crédito do trabalhador da insolvente.

II. FUNDAMENTAÇÃO
Os factos a considerar estão expostos no relatório supra elaborado.

Está assente que o crédito do recorrente está garantido por penhor sobre as unidades de participação do Fundo de Investimento Gespatrimónio, que constituem a verba n.º 2 do auto de apreensão de bens, sendo, por isso, um crédito privilegiado ou garantido, assim como é, também privilegiado o crédito laboral do trabalhador da insolvente N… – cfr. artigo 47.º, n.º 4, alínea a) do CIRE.
Nos termos do disposto no artigo 140.º, n.º 2 do CIRE “a graduação é geral para os bens da massa insolvente e é especial para os bens a que respeitem direitos reais de garantia e privilégios creditórios”, impondo-se, portanto, fazer uma graduação especial relativa àquele bem penhorado que constitui a verba n.º 2 do auto de apreensão de bens.
Vejamos, então.
O penhor “confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou outros direitos, não suscetíveis de hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiro” – artigo 666.º, n.º 1 do Código Civil.
O privilégio creditório “é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros” – artigo 733.º do Código Civil – sendo que, no caso que aqui nos interessa, os créditos dos trabalhadores são garantidos por privilégio mobiliário geral por força do disposto no artigo 377.º, n.º 1 do Código do Trabalho, estando o crédito do recorrente garantido por privilégio mobiliário especial (artigo 735.º, n.º 2, 2.ª parte do Código Civil).
As leis do trabalho, designadamente as antigas Lei 17/86 de 14.06, 96/2001 de 20.08 e o atual art. 377º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei. 99/2003 de 29.07. não esclarecem se o privilégio mobiliário geral desses créditos prefere ou não ao penhor.
Ora, estabelecendo o art. 666º do CC uma prioridade absoluta do penhor e conjugando-o com o disposto no art. 749º, nº 1 do CC, nos termos do qual o privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente, conclui-se que a preferência deve ser dada ao penhor - neste sentido, cfr., Acórdão da Relação de Lisboa de 01/06/2010, que cita, entre outros, também, o Ac. do STJ de 30.05.2006, P. 06A1449, in www.dgsi.pt.
Este é, também, o entendimento de Salvador da Costa, in “Concurso de Credores”, 2.ª edição, pág. 257, citado no referido Acórdão do STJ de 30/05/2006 (ainda que reportando-se à lei anterior), que refere que "o direito de crédito garantido por penhor mercantil constituído anteriormente ao início da vigência da Lei nº 17/86 é graduado em primeiro lugar, seguindo-se os créditos dos trabalhadores por salários em atraso".
De igual modo Luís M. Martins, in “Processo de Insolvência”, 2.ª edição, pág. 172, defende que “o credor pignoratício tem preferência absoluta nos termos do artigo 666.º do CC (que alude expressamente ao penhor), pelo que, no concurso entre créditos laborais garantidos por privilégio mobiliário geral e créditos garantidos por penhor, estes preferem no pagamento por força do disposto no referido artigo”.
O confronto entre estas duas normas tem sido resolvido por vasta jurisprudência – para além dos já citados Acórdão da Relação de Lisboa e do STJ – no sentido de atribuir a prevalência dos créditos garantidos por penhor sobre os créditos beneficiários de privilégio creditórios gerais – cfr., entre outros, Acórdãos do STJ de 05/05/2005 e 07/06/2005 e da Relação de Coimbra de 11/10/2005, da Relação do Porto de 06/03/2008, da Relação de Guimarães de 31/07/2007 e de 11/01/2011 e da Relação de Évora de 26/06/2008, todos em www.dgsi.pt.
Este entendimento, como já vimos, é alicerçado na natureza real do penhor e na sequela daí resultante sobre os bens empenhados, que prevalece sobre os privilégios creditórios gerais, os quais não incidem sobre nenhum bem em particular, atribuindo apenas uma prioridade de pagamento em termos gerais e dispondo, a este propósito, o artigo 749.º do Código Civil que o privilégio mobiliário geral não vale contra terceiros titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente.

É certo que têm sido levantados alguns problemas de interpretação face à conjugação das várias disposições legais aplicáveis, designadamente, os artigos 747.º, n.º 1 do CC – que estabelece a ordem dos privilégios creditórios e que coloca em 1.º lugar, os créditos por impostos – e o artigo 377.º, n.º 2 a) do Código do Trabalho – que estabelece que o crédito com o privilégio mobiliário geral que garante os créditos laborais é graduado antes dos créditos referidos naquele n.º 1 do artigo 747.º do CC, ou seja, antes dos impostos – e, estabelecendo o artigo 10.º, n.º 2 do DL 103/80, quanto ao privilégio mobiliário geral de que gozam os créditos da Segurança Social, a regra de que este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, sendo que o mesmo se gradua logo após os créditos de impostos e, consequentemente, após os créditos laborais, tem conduzido a que alguns venham entendendo que se terá sempre de graduar os créditos laborais em primeiro lugar, seguidos dos créditos por impostos, a que se seguiriam os créditos da Segurança Social e, finalmente, os créditos garantidos por penhor (cfr. neste sentido Manuel Lucas Pires, “Privilégios creditórios dos trabalhadores”, na revista “Questões Laborais”, ano XV, n.º 31, págs. 76 e 87).
Este entendimento não é de sufragar, não só porque penaliza excessivamente o crédito pignoratício, retirando-lhe toda a relevância prática que lhe é atribuída pela sua natureza real e consequente sequela, como também porque não respeita a ordem estabelecida pelos artigos 747.º, n.º 1 a) do CC, 377.º, n.º 2 a) do CT e 10.º, n.º 1 do DL 103/80 que, sem prejuízo da prioridade do penhor, de acordo com as regras gerais dos artigos 666.º e 749.º do CC, coloca os créditos laborais e os créditos por impostos antes dos créditos da Segurança Social.
É, assim, de sufragar, a tese do Conselheiro Salvador da Costa, na obra citada, pág. 310 a 312, que entende que o privilégio mobiliário geral da Segurança Social só prevalece sobre o penhor quando concorrem os dois sozinhos, mas, quando concorrem com outros créditos garantidos com privilégios mobiliários, tal prioridade não opera, graduando-se os créditos da Segurança Social depois do penhor e depois dos outros créditos privilegiados, em virtude de a norma do n.º 2 do artigo 10.º do DL 103/80 ter caráter excecional e dever ser interpretada restritivamente.

Assim, regressando ao nosso caso, tem razão o apelante, sendo de graduar em primeiro lugar o crédito garantido por penhor e, só depois, o crédito laboral, pelo que, na procedência da apelação, se irá revogar a sentença, na parte em que graduou os créditos quanto às 477,53 unidades de participação do Fundo de Investimento.

Sumário:
1 - Os créditos garantidos por penhor devem graduar-se à frente dos créditos laborais (com privilégio mobiliário geral), relativamente aos bens sobre os quais foram constituídos.

III. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se julgar procedente a apelação e, em consequência revogar a sentença recorrida na parte em que graduou os créditos reconhecidos quanto às 477,53 unidades de participação do Fundo de Investimento Gespatrimónio Rendimento, melhor descritas sob a verba 2 do auto de apreensão de bens, passando essa graduação a fazer-se da seguinte forma:
a) o crédito reclamado pelo Banco…, SA, no valor de € 5314,11, garantido por penhor sobre aqueles bens;
b) o crédito reclamado pelo trabalhador da insolvente N…;
c) os demais créditos reclamados, que são comuns, rateadamente;
d) os créditos subordinados.
Custas pela massa insolvente.
Guimarães, 13 de fevereiro de 2014
Ana Cristina Duarte
Fernando Fernandes Freitas
Maria da Purificação Carvalho