Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3849/10.2TBBRG-D.G1
Relator: AMÍLCAR ANDRADE
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO
PASSIVO
JUROS
PREJUÍZO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/12/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1 - O simples avolumar das dívidas pela acumulação dos juros não constitui, sem mais, o prejuízo previsto na al. d) do nº1 do art. 238º do CIRE.
2. é aos credores e administrador que compete alegar e provar os factos e circunstâncias aludidos no nº 1 do citado art. 238º do CIRE..
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

J… veio, com a Petição Inicial dos presentes autos de insolvência, requerer a exoneração do passivo restante.
Foi dada a possibilidade aos credores e ao administrador da insolvência para se pronunciarem na Assembleia de Apreciação do relatório, conforme estatui o art., 236º nº 4 do CIRE.
Votaram contra os credores Fazenda Nacional, representada pelo Ministério Público e o Banco…, SA, este por entender que o insolvente, desde 2002 se encontra insolvente, não se tendo apresentado à insolvência nos seis meses posteriores à verificação da mesma, e que ao abster-se de se apresentar atempadamente à insolvência, agravou a sua situação económica e provocou prejuízos aos credores, uma vez que impediu a estabilização do passivo e contribuiu para aumentar o volume das dívidas pelo vencimento de juros. Mais alegou que o insolvente não alegou que a falta de apresentação atempada à insolvência não provocou sérios prejuízos aos credores.

Foi, então, proferida decisão que, julgando não se verificar nenhuma das situações previstas no artigo 238º do C.I.R.E., admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.
Inconformado, apelou o Ministério Público, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
1. Nos termos do art. 238°, n° 1, al. d) do CIRE, o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência.
2. As pessoas singulares não estão obrigadas a apresentarem se à insolvência, mas devem apresentar-se à insolvência, dentro do prazo de seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, caso pretendam beneficiar do instituto da exoneração do passivo restante.
3, A verificação da situação de insolvência refere — se ao momento em que tal percepção é do conhecimento da própria insolvente, sendo de considerar o disposto no art. 3º, nº1 do CIRE que estipula que ë considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações já vencidas.
4. Desde Abril de 2001 que a insolvente deixou de cumprir as suas obrigações.
5. A insolvente apenas se apresentou a requerer a respectiva declaração de insolvência em 07 de Junho de 2010, ou seja, quando já há muito tempo que se mostrava ultrapassado o prazo de seis meses que a mesmo tinha para se apresentar à insolvência, por ser titular de empresa.
6. Por outro lado, é ao requerente do pedido de exoneração do passivo restante que tem de alegar e demonstrar que a sua não apresentação á insolvência não prejudicou os credores, por ser um facto constitutivo do direito de ver declarada a exoneração, o que não fez.
7. “a exoneração do passivo restante só pode ser deferida a/arar do insolvente que incumpriu o dever de apresentação e, estando presentes os demais requisitos, alegar e provar que esse incumprimento não teve qualquer incidência na sua situação económica e financeira, seja porque não implicou acréscimo do passivo, seja porque não inviabilizou nem dificultou a cobrança dos seus créditos” ( Processo nº 1718/07 — 2, relatado peto SR.° Desembargador Gouveia Barros, in www. dgsi.pt).
8. “em caso de dúvida, os factos devem ser considerados constitutivos do direito (n° 3 do art. 342° do CC), regra que no plano processual é complementada com o principio vertido no art. 516º do CPC segundo o qual a dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve se contra a parte a quem o facto aproveita” ( Acórdão da Relação de Guimarães de 04. 10.2007, disponível em www.dgsi.pt).
9. “Audição dos credores e do administrador da insolvência a que alude ou” 2 do art. 238° não faz nascer qualquer relação contenciosa que os invista na posição de partes e os onere com a demonstração dos factos que invoquem em oposição ao pedido (.,)“ Acórdão da Relação de Guimarães com o n° (495)24 /10.
10. Aliás, é de presumir o prejuízo do credor, pelo facto do requerente da exoneração do passivo restante não se ter apresentado à insolvência, quando seja manifesto que não tem bens susceptíveis de responder pelas obrigações que assume.
11. Com a não apresentação tempestiva à insolvência, o prejuízo para os credores é evidente, na medida em que, obstou â estabilização do seu passivo e contribuiu para o avolumar dos montantes em dívida, pelo vencimento progressivo dos juros sobre o respectivo capital.
12. « o prejuízo que se exige no art. 238°, nº 1, al. d) do CIRE, pode consistir no avolumar da dívida de juros, não se restringindo à situação em que apenas exista um aumento do capital das dívidas contraídas pelo devedor em período posterior à ocasião em que este fica em situação de insolvência ou quando ocorra dissipação de património pelo devedor nesse período » .. Acórdão da Relação de Coimbra de 14/12/2010, disponível em www, dgsi.pt.
13. « A partir do momento em que, estando em situação de insolvência, não existe qualquer perspectiva séria de melhoria da situação económica em que se encontra, a inacção dos devedores, ao não requererem tempestivamente a respectiva insolvência, redunda, em princípio, em prejuízo dos credores, pois que, para além de provocar o avolumar dos montantes em divida a estes, por via do acumular dos juros remuneratórios e/ou moratórios, possibilita que o património se vá dissipando, diminuindo, assim, a garantia que este representa para tais credores» Acórdão da Relação de Coimbra de 14/12/2010.
14. «Assim, sendo o prejuízo dos credores, em princípio., decorrência normal da circunstância de não se requerer a insolvência tempestivamente, nas ocasiões previstas na al. d) do n°1 do art. 238° do CIRE, a existência desse prejuízo é conclusão permitida por inferência fundada no princípio “ id quod plerumque accidit”, que cumpre ser contrariada por factualidade que o requerente da exoneração do passivo restante deverá fornecer» Acórdão da Relação de Coimbra de 14/12/2010.
15. Pelo exposto, torna-se evidente que não poderiam deixar de saber, ou ignorar sem culpa grave, que não existia qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.
Face a tudo o exposto, entendemos que a decisão que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pela insolvente deve ser revogada, e substituída por outra que indefira liminarmente o pedido formulado, por não se verificarem os requisites previstos na al. d) do art. 238° do CIRE.

Contra-alegando, o insolvente defendeu a improcedência do recurso.
Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

Os Factos
Com interesse para a decisão do presente recurso, importa considerar, para além do que vem descrito no relatório deste acórdão:
a) O crédito reclamado nestes autos pela Caixa… , venceu-se em 25.11.2003;
b) O crédito reclamado nestes autos pelo Banco… , SA venceu - se em 09.lO.2OO2;
o) O crédito reclamado pela L… , SA venceu-se em 20.04.2001;
d) Os créditos reclamados pela A… venceram - se entre 29.10.2001 e 25 .03. 2002.
O requerimento de apresentação à insolvência deu entrada em 07/06/2010.
O insolvente não tem qualquer património que seja conhecido.

Do objecto do recurso
Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, a questão essencial que aqui se coloca, consiste em saber se o pedido de exoneração do passivo restante deduzido pela Requerente deveria ter sido liminarmente indeferido, como sustenta o Recorrente.
Na decisão sob recurso considerou-se que não se verificava o preenchimento dos requisitos previstos no art. 238º do CIRE, dado que não se verificava o requisito de causar prejuízo aos credores e que o ónus da prova da sua inexistência não pertencia aos insolventes, para fundamentar a decisão de admitir liminarmente o pedido de exoneração do passivo.
Vejamos.
Mediante a figura da exoneração do passivo restante é permitido ao devedor que, em certas circunstâncias, ao fim de 5 anos (período durante o qual o devedor/insolvente terá de ceder parte do seu rendimento aos credores através de um fiduciário), veja extintas as suas dívidas não satisfeitas (ou totalmente satisfeitas) pela liquidação da massa insolvente (ou através daquela cessão do rendimento), libertando-se, assim, do encargo de as pagar no futuro.
A exoneração do passivo restante constitui, assim, no dizer de L. A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Vol. II, p. 183 e segs., «uma liberação definitiva do devedor quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento nas condições fixadas no incidente. Daí falar-se de passivo restante».
Do mesmo entendimento é Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, para quem a exoneração do passivo restante consiste na possibilidade dos devedores se exonerarem «dos créditos sobre a insolvência que não sejam integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste», visando conceder ao devedor um fresh start, «permitindo-lhe recomeçar de novo a sua actividade, sem o peso da insolvência anterior» (cfr. C.I.R.E. Anotado, 4ª ed. 2008, págs. 236/237).
Para este Autor a exoneração do passivo restante surge como subsidiário ao plano de insolvência e tem como contrapartida a cessão do rendimento disponível do devedor (cfr. autor e ob. cit. págs. 237 e ss).
Não obstante, para que aquele beneficio possa ser concedido, torna-se necessário que o devedor preencha determinados requisitos e, desde logo que, tenha tido um «comportamento anterior ou actual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência», aferindo-se da sua boa conduta, tomando-se em linha de conta dados objectivos «passíveis de revelarem se a pessoa se afigura ou não merecedora de uma nova oportunidade e apta para observar a conduta que lhe será imposta» (cfr. Assunção Cristas, Novo Direito da Insolvência, Revista da Faculdade de Direito da UNL, 2005, Ed. Especial, pág. 264).
Segundo o artigo 235.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE), aprovado pelo Decreto-lei n.º 53/2004, de 18 de Março – alterado e republicado pelo Decreto-lei n.º 200/2004, de 18 de Agosto –, “Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo”.
Mas o pedido de exoneração é liminarmente indeferido nos casos que vêm previstos nas várias alíneas do n.º 1 do seu artigo 238.º, avultando aqui a previsão da sua alínea d), objecto de ponderação na decisão sob recurso.

Dispõe o art.º 238º,nº1 d) do C.I.R.E., que “O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica”.
Neste contexto, o CIRE veio estabelecer fundamentos que justificam a não concessão liminar da possibilidade de exoneração do passivo restante, os quais se traduzem em comportamentos do devedor relativos à sua situação de insolvência e que para ela contribuí­ram ou a agravaram.
É no momento do despacho inicial que se tem de analisar, através da ponderação de dados objectivos, se a conduta do devedor tem a possibilidade de ser merecedora de uma nova oportunidade, configurando este despacho quando positivo, uma declaração de que a exoneração do passivo restante será concedida, se as demais condições futuras exigidas vierem a ser cumpridas.
No caso em apreço, mostram os autos que o requerente do pedido de exoneração do passivo não se apresentou à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da respectiva situação.
Resta, portanto, saber se, no caso em apreço, se mostram reunidos os restantes requisitos, quais sejam, a existência de prejuízo para os credores e a inexistência de qualquer perspectiva séria de melhoria da situação económica.
Conforme se pondera no acórdão desta RG de 4.12.2008, Relator Desembargador Manso Rainho (disponível em www.dgsi.pt), “Para o efeito da actuação da exoneração do passivo restante, o CIRE começa, em sede da fase liminar, por exigir a verificação de um facto positivo – a declaração a que alude o nº 3 do respectivo art. 237º - e a não ocorrência de uma série de factos ou circunstâncias de conteúdo negativo, os indicados no nº 1 do art. 238º. Ao requerente da exoneração compete apresentar a declaração de que preenche os requisitos pressupostos para a exoneração do passivo restante. E apenas a isto, na fase em que nos movemos, se resume o seu ónus de actuação processual. Já não lhe compete alegar e provar os factos e circunstâncias (ou melhor, o contrário dos factos e circunstâncias…) constantes do nº 1 do art. 238º, que podem levar ao indeferimento liminar. Ali, do que se trata é de factos e circunstâncias que se traduzem em matéria de excepção (factos impeditivos). E não de factos e circunstâncias constitutivos do pedido de exoneração. De resto, nem custa muito ver que se trata de factos e circunstâncias de alegação e prova praticamente impossível por parte do devedor. Mais: se o requerente tivesse que alegar e provar quaisquer requisitos, não se compreenderia a razão de ser da declaração a que se alude no nº 3 do art. 236º. Como assim, e sem prejuízo da actuação oficiosa do tribunal se acaso se vierem a coligir elementos que permitam concluir pela verificação de algum dos factos ou circunstâncias que devem conduzir ao indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo, é aos credores e administrador que compete alegar e provar os factos e circunstâncias aludidos no nº 1 do citado art. 238º”.
Acresce dizer, que o simples avolumar das dívidas pela acumulação dos juros não constitui, sem mais, o prejuízo previsto na al. d) do nº1 do art. 238º, do CIRE.
Como neste particular se observa no citado aresto desta RG «De outro lado, não pode entender-se, sem mais, que o simples avolumar de juros constitui prejuízo relevante para os fins em causa. É que, como se aponta nos supra citados acórdãos os desta RG e do STJ (e no mesmo sentido, entre muitos outros, os acórdãos da RC de 23.02.2010, 23.11.2010, da RP de 20.11.2008, 12.05.2009 e 11.01.2010, e da RL de 14.12.2010, todos disponíveis em www.dgsi.pt), para que este avolumar tome significado, é necessário que se mostre que durante o período de atraso da apresentação à insolvência ocorreram prejuízos concretos para os credores, como a assunção de mais dívidas, ou a dissipação do património. De resto, e como se observa no mencionado acórdão desta RG de 18.1.2011, o atraso no pagamento tem como consequência normal o acumular dos juros, e se acaso a lei se contentasse, para os efeitos em causa, apenas com esta consequência normal, não haveria que ter feito constar da norma a exigência de um “prejuízo” para os credores; constando tal exigência na norma, tem de se concluir necessariamente que o prejuízo a que a lei se refere consiste em mais do que um simples agravamento do valor dos juros. Deverá, portanto, ser um prejuízo concreto, cuja verificação se venha a provar efectivamente e não uma constatação abstracta de que o atraso causou um avolumar de juros».

Ora, dos autos nada resultou provado, sobre a existência de prejuízos para os credores derivados do atraso do devedor na sua apresentação à insolvência.
Deste modo, não sendo possível concluir pela verificação da situação complexa descrita na alínea d), do n.º 1, do art.º 238º, do CIRE, não vemos como poderia ser indeferida liminarmente a pretensão do insolvente.

Decisão
Pelo exposto julga-se improcedente o recurso interposto e confirma-se a decisão recorrida.
Sem custas.
Guimarães, 12 de Julho de 2011
Amílcar Andrade
José Rainho
Carlos Guerra