Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
342/13.5TCGMR.G1
Relator: HEITOR GONÇALVES
Descritores: DIREITO ESPECIAL À GERÊNCIA
INTERPRETAÇÃO
DELIBERAÇÃO SOCIAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/12/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: JULGADA PARCIALMENTE PROCENTE
Sumário: 1. A deliberação da sociedade comercial por quotas que atribui a um dos sócios “poderes especiais de gerência por um prazo de 10 anos”, abdica da livre destituibilidade prevista no artigo 257º, nº1, do CSC, na medida em que nos termos do nº3 desse dispositivo legal a destituição dum sócio com o direito especial à gerência só pode ocorrer em acção judicial adrede instaurada e fundamentada em justa causa.

2. A vontade dos sócios objectivada nessa deliberação não foi tão só a de simples designação de gerentes, encerra também de forma clara a atribuição dum direito especial, ao aludir a “poderes especiais de gerência pelo prazo de 10 anos”. E “poderes especiais” e “direitos especiais” são expressões com o mesmo halo semântico.

3. A deliberação não definiu os concretos poderes especiais atribuídos ao autor na administração/gerência da sociedade, mas serão todos e quaisquer actos, fora a restrição estabelecida quanto à alienação de imóveis e os imperativamente atribuídos à competência dos sócios.

4. A vontade dos sócios expressa nessa deliberação foi a atribuição dum estatuto privilegiado a dois sócios, ainda que temporário, abdicando a sociedade do direito de os destituir livremente do exercício da gerência durante 10 anos;
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

Processo nº 342/13.5TCGMR.

I – RELATÓRIO.
J instaurou esta ação declarativa contra R…, Lda., pedindo que: a) Sejam julgadas inválidas e declaradas nulas ou anuláveis as deliberações tomadas na assembleia geral da Ré de 07.10.2013; b) Seja ordenado o cancelamento dos registos efectuados com base nas deliberações tomadas na assembleia geral de 16-07-2013, nomeadamente, a destituição do A. do cargo de gerente da Ré e a nomeação de M para o cargo de gerente da Ré; c) Subsidiariamente, seja a Ré condenada: 1.º A indemnizá-lo nos termos previstos no art.º 257.º, n.º 7 do CSC, em montante não inferior a € 196.000,00, pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que lhe foram causados pela sua destituição sem justa causa; 2º No pagamento das diferenças salariais reportadas entre o período de março de 2012 até ao momento da sua reposição, em montante a calcular em execução de sentença; 3º No pagamento do subsídio de férias vencido em 01-01-2013, no montante de € 3.500,00; 4º. No pagamento das férias vencidas e não gozadas em 01.01.2013, de € 3.500,00; 5º: No pagamento do proporcional de subsídio de natal, férias e subsídio de férias de 2013, no montante global de € 6.124,86; e 6º. No pagamento de juros sobre as quantias referidas, desde a data da citação da Ré até integral pagamento.

Em síntese, alega que no dia 07.10.2013 foi realizada uma assembleia geral dos sócios da Ré, na qual foi deliberado renovar uma deliberação tomada numa outra assembleia geral de 16.07.2013, em que se decidira a destituição do autor como gerente, e a nomeação como gerente da sócia M, deliberação que padece de vício que afeta a sua validade, porquanto na assembleia geral da ré realizada em 20.03.2007 fora-lhe atribuído “direitos especiais de gerência”, pelo período de 10 anos. O autor não consentiu que o seu direito fosse alterado, nem a sociedade Requerida deliberou quanto à possibilidade de instauração de uma ação judicial tendente a obter a suspensão e a sua destituição como gerente, tal como seria exigível nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 257.º do Código de Processo Civil, sendo a deliberação em causa, por isso, passível de anulação, e acresce que não só não foi invocado fundamento cabal para a sua destituição, como não havia, de facto, justa causa para uma tal decisão, sendo que, na base dela, está o propósito da sócia gerente Ana Sofia, sua irmã, de assumir o controle absoluto da sociedade.
A considerar-se não haver motivo para a anulação pretendida, o certo é que a sua destituição de gerente da sociedade Ré foi decidida sem que esta tivesse justa causa para o efeito. Assim, e uma vez que sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais em consequência de toda a situação vivenciada em face deliberado, sempre deverá ser ressarcido de tais danos, que incluirão o pagamento dos demais direitos decorrentes do exercício da sua atividade.
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Na contestação, a ré sustenta que o autor não gozava de um direito especial de gerência, pois na deliberação tomada em 2007, apenas se pretendeu reforçar os poderes dos gerentes já nomeados. Por outro lado, mesmo que tivesse sido esse o caso, sempre se trataria de alteração do pacto social inválida, pois que não inserida no contrato social inicial, além de ter violado o princípio da igualdade dos sócios, já que se tratou de alteração não consentida por todos os sócios. Finalmente, não estando registada, sempre se trataria de uma alteração ao contrato social que não vincularia a sociedade, atento o preceituado no Código do Registo Comercial respeitante a essa matéria.
E entende que não se verificam os pressupostos do formulado pedido de indemnização, e que a anulação da deliberação em apreço sempre deveria ser parcial, não abrangendo a parte da mesma por via da qual foi nomeada gerente a sócia M.
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II. Findos os articulados, entendendo que o processo fornecia já todos os elementos necessário, o tribunal recorrido conheceu de imediato do mérito da causa nos termos do artigo 595.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Civil, declarando inválidas e como tal nulas as deliberações renovatórias tomadas na assembleia geral da Ré de 7 de Outubro de 2013, e ordenando o cancelamento dos registos efetuados com base nas deliberações tomadas na assembleia geral da Ré de 16-07-2013, nomeadamente a destituição do Autor do cargo de gerente da Ré e a nomeação de M para o cargo de gerente da Ré.

III. Dessa sentença a ré interpôs o presente recurso. No essencial e em síntese, formula as seguintes conclusões:

1. Na contestação são alegados factos demonstrativos de que a vontade dos sócios da recorrente nunca foi atribuir o direito especial à gerência, e sendo admissível o recurso a outros meios complementares de prova, tendo o tribunal considerado provado esse direito com recurso exclusivo ao elemento literal da acta ao arrepio dos artigos 2º, 3º, 6º, 411º, 412º, 595º, nº1-b), do CPC, e 238º e 239º do C.C., pelo que deve determinar-se que os autos prossigam para produção de prova complementar sobre essa controvertida matéria;
2. O direito especial de gerência extingue-se com o consentimento nesse sentido do sócio titular (artigo 257º, nº3, do CSC). A recorrente impugnou essa falta de consentimento e alegou no artigo 169º da contestação que o A. e a irmã colocaram o lugar à disposição e provando-se o consentimento provar-se-ia a renúncia;
3. Ao olvidar esses factos relativos à renúncia do autor à gerência alegados na contestação nos artºs 169º, 97º a 102º e 170º, da contestação coarctou ao recorrente o direito ao contraditório, em violação dos artigos 3º, 5º, nº1, e 569º do CPC, o que determina a nulidade da sentença nos termos do artigo 615º, nº1, alínea d), do CPC;
4. O tribunal considerou que a deliberação de 20.03.07 atribuiu ao autor um direito especial à gerência, quando da deliberação em causa apenas de pode objectivamente deduzir que os intervenientes visaram tão só reforçar os poderes da gerência na prossecução das suas obrigações de gerente, e por isso foram violados, entre outros, o disposto nos artigos 217°, 218°, 236° e 238° do Código Civil, bem como o artigo 24° e 257° do CSC, devendo decidir-se pela validade das deliberações renovatórias;
5. O tribunal à quo considerou com a deliberação tomada na Assembleia Geral da recorrente datada de 20.03.2007, estarmos perante uma verdadeira alteração ao contrato de sociedade. Mas na elaboração de uma ata de alteração de contrato da sociedade têm que ser respeitadas todas formalidades legalmente estabelecidas, nomeadamente as formalidades previstas no Código do Registo comercial, sob pena de não ser válida, e tem de constar expressamente da ata em causa (vide, nesse sentido, art. 48°, n" 1 aI. a) do CR.C) a referência à alteração do contrato de sociedade, nomeadamente o artigo que é alterado, aditado ou suprimido.
6. Tal não se verifica na acta em apreço, pois aí não se fala em direito especial de gerência, nem em alterações de pacto social, nem da mesma faz referência a uma qualquer alteração/ aditamento ao pacto social da recorrente; além disso, da prova produzida resulta provação que a deliberação nunca foi objecto de registo comercial. Foram violados os artigos 217°, 218°, 236° a 238, do CC, 24°, 85° e 257°, do CSC e art. 48° do CRC;
7. Lendo-se a ata da assembleia datada de 07 de Outubro de 2013, dúvidas não existem de que a vontade dos intervenientes foi deliberar sobre a renovação de dois atos autónomos e distintos anteriormente deliberados - o de destituição e o de nomeação. Ou seja, resulta evidente que os intervenientes quiseram aprovar deliberações autónomas e distintas entre si, daí terem que ser apreciadas como duas deliberações de conteúdo e alcance diferentes, e nessa medida, o fundamento da titularidade de um direito especial de gerência não era, nem é, válido para anular a deliberação de nomeação de M para o cargo de gerente, como fez o Tribunal à quo.
8. A sociedade pode nomear tantos gerentes quantos entender, daí que, independentemente da vontade/poder da destituição de gerente do autor, os sócios da recorrente sempre poderiam nomear quem bem entenderem para exercer as funções de gerente, e o reconhecimento desse direito especial não era impeditivo da nomeação de outras pessoas para o cargo de gerente, nomeadamente, da sócia Maria Belmira do Vale.
9. O tribunal à quo, ao considerar nula a deliberação de renovação da deliberação de nomeação, como gerente, da sócia M, violou, entre outros, o disposto no pacto social da requerida, bem como o disposto nos artigos 21°, n" 1 aI. d), 53°, nºs 1 e 2, 56° (à contrariu), 58° (à contrariou), 252°, todos do CSC.
IV. Factos considerados provados na 1ª instância (transcrição integral):

1. A Ré, tal como flui do documento de fls. 63 a 67, cujo teor se dá aqui por reproduzido, é uma sociedade comercial por quotas com sede no concelho de Vizela, que tem por objeto a indústria de tinturaria e acabamentos de tecidos e fios de algodão, de fibras artificiais, sintéticas e mistas, cujo capital social, no montante de 673.377,15€, se encontra representado pelas seguintes quotas: a) uma quota do valor nominal de 20.949,51€ titulada em nome do Autor; b) uma quota do valor nominal de 20.949,51€ titulada em nome do sócio B (irmão do A.); c) uma quota do valor nominal de 20.949,51€ titulada em nome da sócia A (irmã do A.); d) uma quota do valor nominal de 20.949,51€ titulada em compropriedade pelos sócios P e C (ambos sobrinhos do A e filhos da sua irmã CA); e e) uma quota do valor nominal de 589.579,11€ titulada em comum e sem determinação de parte ou direito em nome de M (mãe do A.), do A., do seu referido irmão B, da sua irmã A e dos seus sobrinhos P e C.
2.- Por convocatória datada de 20/09/2013 a referida A, na qualidade de gerente, convocou os sócios da Ré para uma assembleia geral a realizar na sede da sociedade no dia 07/10/2013, pelas 18horas, com a seguinte ordem de trabalhos:
“Ponto Um: Apreciar e deliberar sobre a renovação das deliberações proferidas na assembleia realizada no dia 16 de Julho de 2013 relativamente aos pontos 03 e 04 da convocatória, designadamente apreciar e deliberar sobre a renovação da deliberação de destituição de J e nomeação como gerente de M; Ponto Dois: Apreciar e deliberar sobre a atribuição de efeitos retroativos à deliberação renovada.”
3.- Realizada a assembleia geral foi deliberado renovar a deliberação tomada na assembleia geral da Ré de 16/07/2013, pela qual foi aprovada: a) a destituição como gerente do sócio J; e b) a nomeação como gerente da M.
4.- Foi, ainda, aprovado nesta assembleia geral de 07/10/2013 atribuir a esta deliberação renovatória os efeitos retroativos legais previstos na lei.
5.- No dia 16/07/2013 realizou-se uma outra assembleia geral da Ré, na qual foi deliberado: a) não aprovar as contas apresentadas pela gerência; b) aprovar a destituição do Autor do cargo de gerente da sociedade; e c) aprovar a nomeação da sócia M para gerente da sociedade.
6.- A assembleia geral a que se alude em 2 a 4 foi convocada pela gerente Ana Sofia.
7.- A quota indivisa do montante de € 589.579,11 foi representada na assembleia geral pelo representante comum.
8.- Nela não houve participação de terceiros não sócios e sem capacidade legal para nela intervir.
9.- Os votos emitido na assembleia geral foram devidamente contabilizados.
10.- Para a mesma assembleia geral foi argumentado que a destituição do Requerente como gerente se fundamentava no “desagrado e descontentamento dos sócios e trabalhadores com o trabalho de gerência levado a cabo pelo sócio J…”.
11.- No dia 20 de março de 2007, pelas 15h00, teve lugar uma assembleia geral da Requerida, da qual foi lavrada a ata de fls. 247 e 248, cujo teor se dá aqui por reproduzido, na qual se dá conta, além do mais, o seguinte:
a) na reunião estiveram presentes os únicos sócios M, B, J, C e A; b) tais sócios representavam a totalidade do capital social, que era o de € 673.377,16; c) o valor das quotas de que cada um dos sócios era o seguinte: - B: € 20.949,51; .- J: € 20.949,51; - C: € 20.949,51;.- A: € 20.949,51; .- M, B, J, C e A: € 589.579,12; d) a ordem do dia tinha como ponto único a atribuição de “poderes especiais de Gerência por um prazo de 10 anos, aos Sócios Gerentes J e A”; e) ficou esclarecido que os “poderes especiais de gerência não envolviam poderes para a venda de património imóvel”; f) a assembleia deliberou da seguinte forma: a favor votou a sócia M; a sócia C absteve-se; votou contra o sócio B; a proposta foi aprovada pela maioria do capital.
V. Colhidos os vistos, cumpre decidir:

As questões suscitadas nas conclusões de recurso podem cindir-se em duas partes: uma delas respeita ao reconhecimento do direito especial à gerência do apelado J; a outra tem que ver com a validade da deliberação que nomeia para o cargo de gerente a sócia M.

Quanto ao direito especial à gerência:

a) Da deliberação de 20.03.2007 apenas se pode objectivamente deduzir que os intervenientes visaram tão só reforçar os poderes da gerência na prossecução das suas obrigações de gerente, daí dever concluir-se pela validade das deliberações renovatórias, ao contrário da interpretação dada pela decisão recorrida em violação dos artigos 217º, 218º, 236º e 238º do Código Civil, e 24º e 25º do CSC?
b) Na acta não se fala em direito especial de gerência, ou em alterações de pacto social, nem refere qualquer alteração/ aditamento ao pacto social da recorrente; além disso, da prova produzida resulta provado que a deliberação nunca foi objecto de registo comercial, pelo que se mostram violados os artigos 217°, 218°, 236° a 238, do CC, 24°, 85° e 257°, do CSC e art. 48° do CRC?
c) A interpretação da deliberação exclusivamente com base no elemento literal da acta viola os artigos 2º, 3º, 6º, 411º, 412º, 595º, nº1-b), do CPC, e 238º e 239º do Código Civil, quando é admissível o recurso a meios complementares de prova da vontade dos sócios, e apelante alegou factos demonstrativos na contestação (v.g. 17º, 19º, 22º e segs) de não pretenderem a atribuição dum direito especial. Assim, deve determinar-se o prosseguimento dos autos para produção de prova sobre essa matéria controvertida?
d) O direito especial de gerência extingue-se com o consentimento que nesse sentido foi manifestada pelo sócio titular (artigo 257º, nº3, do CSC) e a recorrente impugnou essa falta de consentimento e alegou no artigo 169º da contestação que o A. e a irmã colocaram o lugar à disposição e provando-se o consentimento provar-se-ia a renúncia?
e) Ao olvidar os factos relativos à renúncia do autor à gerência alegados na contestação nos artºs 169º, 97º a 102º e 170º, a decisão coarctou ao recorrente o direito ao contraditório, em violação dos artºs 3º, 5º, nº1, e 569º do CPC, o que determina a nulidade da sentença nos termos do artigo 615º, nº1, alínea d), do CPC?

2ª. Sobre a nomeação como gerente da sócia M:
a) Na assembleia datada de 07 de Outubro de 2013, a vontade dos sócios foi deliberar sobre a renovação de dois atos autónomos e distintos, a destituição e nomeação. O fundamento da titularidade de um direito especial de gerência não era, nem é, válido para anular a deliberação de nomeação de M para o cargo de gerente, como fez o Tribunal à quo;
b) A sociedade pode nomear tantos gerentes quantos entender, daí que, independentemente da vontade/poder da destituição de gerente do autor, os sócios da recorrente sempre poderiam nomear quem bem entenderem para exercer as funções de gerente, e o reconhecimento desse direito especial não era impeditivo da nomeação de outras pessoas para o cargo de gerente, nomeadamente, da sócia M;
c) O tribunal à quo, ao considerar nula a deliberação de renovação da deliberação de nomeação, como gerente, da sócia M, violou, entre outros, o disposto no pacto social da requerida, bem como o disposto nos artigos 21°, n" 1 aI. d), 53°, nºs 1 e 2, 56° (à contrariu), 58° (à contrariou), 252°, todos do CSC.

Vejamos:
1ªA sentença recorrida concluiu que o autor passou a ser titular dum direito especial à gerência desde que sociedade deliberou em 20 de Março de 2007 atribuir-lhe “poderes especiais de gerência por um prazo de 10 anos”, e que desse modo ficou comprimido o princípio da livre destituibilidade previsto no artigo 257º, nº1, do CSC, na medida em que nos termos do nº3 desse dispositivo legal a destituição dum sócio com o direito especial à gerência só pode “ocorrer em acção judicial adrede instaurada e fundamentada em justa causa”. E justifica essa asserção dizendo que a deliberação em causa se dirige “ao conteúdo material dessa função de gerência, no sentido de atribuição ao requerente e à sua irmã de poderes amplos e especiais para exercê-la, independentemente, pois, do tipo de actos cuja prática pudesse envolver. Tanto assim que foi que a própria assembleia se viu na necessidade de especificar que esses poderes, de tão pessoais e amplos que eram, não evolviam a «venda de património imobiliário» da sociedade”.



Para além de não aceitar que a vontade dos sócios seja determinada exclusivamente com base no teor literal da acta, a apelante dissente da interpretação que lhe é dada pela sentença recorrida, adiantando que “da deliberação em causa apenas se pode objectivamente deduzir que os intervenientes visaram, apenas e só, reforçar os poderes de gerência na prossecução das suas obrigações de gerente”.

Concede-se que há deliberações donde ressalte com total evidência a atribuição de direitos especiais de gerência, como por exemplo as que especificam a obrigatória intervenção de um dos diversos gerentes em exercício para vincular a sociedade na relação com terceiros ou, como salienta Coutinho de Abreu, in Curso de Direito Comercial, II, págs 163, quando a “cláusula do estatuto social estabelece que um sócio tem o direito de ser gerente por toda a sua vida, ou enquanto for sócio, ou enquanto durar a sociedade, ou que só poderá ser destituído da gerência havendo justa causa”, mas o mesmo autor não deixou de aí anotar em rodapé o seguinte:“claro que bastará também uma cláusula afirmando ter o sócio um «direito especial à gerência».

Efectivamente, a vontade dos sócios objectivada na dita deliberação não foi tão só a de simples designação de gerentes, encerra também de forma clara a atribuição dum direito especial, ao aludir a “poderes especiais de gerência pelo prazo de 10 anos”. E “poderes especiais” e “direitos especiais” são expressões com o mesmo halo semântico, e evocam-se mais uma vez os ensinamentos de Raul Ventura: “a forma mais simples de manifestar a vontade de criar o direito especial é dizê-lo e nem sequer é necessário dizer direito especial, porque se disser apenas «direito à gerência» este é por definição especial”.
É certo que a deliberação não definiu os concretos poderes especiais atribuídos ao autor na administração/gerência da sociedade mas na linha argumentativa desenvolvida na sentença recorrida serão todos e quaisquer actos, fora a restrição estabelecida quanto à alienação de imóveis e os imperativamente atribuídos à competência dos sócios (segundo Raul Ventura, in Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, II, pág.139, “a forma genérica como o artigo 259º CSC define os poderes dos gerentes torna excepcionais os casos em que o contrato de sociedade pode alargar tais poderes. Pode o contrato, todavia, dispensar a deliberação dos sócios quando a competência destes não for imperativa: mudança da sede (artigo 12º, nº2); criação de sucursais, agências, delegações ou outras formas locais de representação (artigo 13º, nº2); alienação ou oneração de bens imóveis, alienação, oneração, locação de estabelecimento comercial, subscrição ou aquisição de participações noutras sociedades e sua oneração ou alienação (artigos 246º, nº2-als c) e d)”),
Conforme já tivemos oportunidade de anotar no acórdão proferido nesta Relação no julgamento do recurso interposto na providência cautelar apensa, a vontade dos sócios expressa nessa deliberação foi a atribuição dum estatuto privilegiado a dois sócios, entre eles o A., ainda que temporário, abdicando a sociedade do direito de os destituir livremente do exercício da gerência durante 10 anos, e a propósito dessa inovação estatutária, aí dissemos também ser pacífico na doutrina que “os estatutos sociais de qualquer sociedade por quotas não é uma realidade estática e imutável. Tratando-se antes “dum contrato duradouro e de execução continuada, não poderá deixar de se permitir a sua modificação, por forma a que seja possível a sua adaptação e adequação à concreta realidade (…), isto é, a alterabilidade é requisito essencial para afirmar a perenidade da sociedade, consubstanciando uma regra de direito natural em matéria societária” (Cfr. Coutinho de Abreu, in Código das Sociedades Comerciais Anotado, vol. II, pág. 15), e Raul Ventura considera que “a necessidade de alterar corre parelhas com a vontade de durar: alterar para mudar” (in Alteração do Contrato de Sociedade, 2ª edição, pagina 12), e que no tocante ao mandato da gerência a vida societária pode bem ditar a qualquer altura que a sua revogabilidade seja sujeita a restrições «no interesse da sociedade e do nomeado: a sociedade pode ter interesse sério e atendível em assegurar certa estabilidade aos seus gerentes, e estes em a obter, sem prejuízo porém de poder o gerente ser destituído por justa causa. Assim se conciliam, de maneira razoável, os interesses da sociedade e os dos gerentes(Vaz Serra, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 108, pág. 110).

Sendo livre a destituição dos gerentes nos termos do artigo 257º do CSC, que razão haveria para a sociedade ter fixado para aqueles dois gerentes (e não para a generalidade dos sócios que lhes viesses a suceder) um prazo limite na durabilidade do contrato, a não ser pela circunstância de lhes ter atribuído poderes especiais?. Assim, a gerência cessa automaticamente no termo do período de 10 anos; doutro modo, ou seja, caso não se fixasse prazo para o mandato e sendo o contrato omisso nessa matéria, os dois gerentes com esses direitos especiais podiam manter-se no exercício do cargo indefinidamente, naturalmente não havendo uma destituição judicial nos termos previstos pelo nº3 do artigo 257º ou uma declaração/consentimento dos próprios a prescindirem dos direitos especiais e/ou a renunciarem à gerência.

Não nos parece pois que a deliberação dos sócios expressa na acta ofereça outra interpretação que não a de atribuir um direito especial de gerência–“in claris non fit interpretatio”. E se é certo que qualquer alteração do pacto social deve ser sujeita a registo, a omissão deste não retira eficácia ao acto nas relações internas, como assertivamente argumenta a decisão recorrida na interpretação do artigo 13º do Código de Registo Comercial.

Sustenta a apelante que a interpretação da deliberação efectuada pelo tribunal exclusivamente com base no teor literal da acta viola os artigos 2º, 3º, 6º, 411º, 412º, 595º, nº1-b), do CPC, e 238º e 239º do Código Civil, quando é admissível o recurso a meios complementares de prova da vontade dos sócios, e que tendo alegado factos demonstrativos (v.g. 17º, 19º, 22º e segs da contestação) não pretenderem a atribuição dum direito especial, e em apoio da sua tese indica abundante doutrina e jurisprudência, daí pretender que se deva determinar o prosseguimento dos autos para produção de prova sobre essa matéria controvertida. Ainda que essa solução seja defensável, sobretudo tendo em conta que a deliberação em causa se projecta apenas nas relações internas, constata-se que a matéria da contestação aludida pela apelante é conclusiva, limitando-se a uma mera negação da vontade dos sócios objectivada no teor literal da acta, e ao fim e ao cabo não chega sequer a explicitar que outro sentido quiseram os sócios dar aos deliberados “poderes especiais de gerência pelo prazo de 10 anos”. O mesmo é dizer que se tornaria inútil a audiência de discussão e julgamento.

A apelante conclui ainda que, a existir, o direito especial de gerência se extinguiu com o consentimento que nesse sentido foi manifestada pelo sócio titular (artigo 257º, nº3, do CSC) e que impugnou a falta de consentimento e alegou no artigo 169º da contestação que o A. e a irmã tinham colocado numa anterior assembleia o lugar à disposição, e que provando-se o consentimento provar-se-ia a renúncia; E que ao olvidar os factos relativos à renúncia do autor à gerência alegados na contestação nos artºs 169º, 97º a 102º e 170º, a decisão lhe coarctou o direito ao contraditório, em violação dos artºs 3º, 5º, nº1, e 569º do CPC, o que determina a nulidade da sentença nos termos do artigo 615º, nº1, alínea d), do CPC.

Em primeiro lugar, é de anotar que a acta da assembleia de 7 de Outubro de 2013 que renovou a destituição do autor J do cargo de gerente diz uma coisa bem diferente do alegado pela apelante, pois dela consta que esse sócio votou contra a sua destituição, o que aliás reporta a alínea f) dos factos provados, ponto que não mereceu a impugnação da apelante. A par deste facto, o recorrido refere com pertinência a irrelevância da alegada colocação do lugar à disposição, dada a circunstância de se ter mantido no efectivo exercício da gerência.
Por outro lado, mesmo que se tivessem por assentes, os factos que a apelante invoca não podem considerar-se como renúncia válida à gerência, visto que nos termos conjugados dos artigos 258º, nº1, e 260º, nº5, a mesma pressupõe a comunicação por escrito à sociedade e ao outro gerente, sendo por isso ineficaz enquanto não for observada essa formalidade (neste sentido cfr. Raul Ventura, in Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, II, pág. 123).

2ª. Sobre a questão de saber se os efeitos da nulidade da deliberação se estendem à nomeação para a gerência da sócia M, a apelante sustenta que na assembleia datada de 07.10.2013 há dois actos autónomos e distintos, a destituição e nomeação; que a titularidade de um direito especial de gerência não era, nem é, válido para anular a deliberação de nomeação de M para o cargo de gerente; que a sociedade pode nomear tantos gerentes quantos entender, daí que, independentemente da vontade da destituição de gerente do autor, os sócios sempre podem nomear quem bem entenderem para exercer as funções de gerente, daí ter concluído que a solução encontrada pelo tribunal violou o disposto no pacto social da requerida, bem como o disposto nos artigos 21°, n" 1 aI. d), 53°, nºs 1 e 2, 56° (à contrariu), 58° (à contrariou), 252°, todos do CSC.

A propósito dessa questão, consignámos no acórdão da providência cautelar que “a destituição de um e a nomeação de outro são a nosso ver indissociáveis. Mau grado a lei e o contrato de sociedade não estabeleça restrições quanto ao número de gerentes, nem haja a indicação nominal dos gerentes cuja assinatura é exigida para a vinculação da sociedade (o pacto apenas prevê a assinatura de dois gerentes), a natureza e o timing dos actos só permite afirmar a directa interligação entre a nomeação como gerente da sócia M e a destituição do cargo de gerente do requerente”, e de facto essa deliberação tem todo o aspecto de haver a intenção dos sócios de “tirarem o tapete” ao autor nas suas funções de gerente.

Não obstante essas considerações, revendo a posição inicial, cremos que a razão está do lado da apelante, pois não se vislumbra que tal parte deliberativa contrarie os estatutos ou qualquer disposição do Código das Sociedades Comerciais, antes encontra aí melhor abrigo que a solução contrária, ao não preverem limite para o número de gerentes (nos termos do artigo 252º do CSC a sociedade é administrada e representada por um ou mais gerentes, que podem ser designados no contrato ou eleitos posteriormente por deliberação dos sócios). E não interfere com a deliberação dos sócios que ao atribuir um direito especial à gerência não condicionou a sociedade de nomear outros gerentes, e o autor pode continuar a exercê-lo nos exactos termos em que o vinha fazendo.

VI. Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, revogando a sentença recorrida no segmento em que declarou nulas as deliberações renovatórias que nomearam para o cargo de gerente a sócia M.
No demais, mantém-se a sentença recorrida.

Custas pela apelante e apelado, em partes iguais.


G. 17.12.2014
(Heitor Gonçalves)

(Amílcar Andrade)

(José Rainho)