Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
296/06.4JABRG-B
Relator: FILIPE MELO
Descritores: CONTAGEM DOS PRAZOS DAS PENAS DE PRISÃO
PRIVAÇÃO DA LIBERDADE
CUMPRIMENTO
PENA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/06/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I) Sendo o desconto estabelecido no artº 80º, nº 1 do C. Penal, um benefício para os condenados, também eles devem beneficiar, no cumprimento das penas de prisão onde os descontos são efectuados, de um regime de contagens que leve em conta esses mesmos descontos como cumprimento de pena.
II) Desta forma, sem qualquer ficção, ajusta-se tal tratamento à letra da lei, quando manda que os períodos de privação de liberdade sejam descontados por inteiro no cumprimento da pena de prisão.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

Na 1ª Vara de Competência Mista de Guimarães, o Ministério Público, pela promoção de fls. 2876, corrigida a fls. 2887, considerando que o arguido Fernando G... foi detido na fase de inquérito em 23.2.2007 (fls. 426 do apenso A) e presente em tribunal no dia seguinte – 24.2.2007 – para interrogatório judicial, onde lhe foi aplicada a medida de coacção de prisão preventiva, situação em que se manteve até 24.3.2009, data em que foi libertado por nessa data ter expirado o prazo máximo da prisão preventiva (cfr fls. 341 e 372):
Considerando, ainda, que o período de detenção à ordem do processo nº 1835/10.1TAGMR da 2ª Vara Mista ocorreu desde 14.11.2010 (fls. 2735 e 2855) até 11.5.2011, data em que foi colocado à ordem dos presentes autos para cumprimento da pena (cfr. fls 2752), bem como que o arguido sofreu ainda 1 (um) dia de detenção à ordem do processo nº 1255/10.8GBGMR apensado ao processo nº 1835/10.1TABRG, totalizando 2 anos, 5 meses e 27 dias o período em que esteve privado de liberdade, tempo esse que, nos termos do art. 80º do Cód. Penal se desconta na pena de 5 anos e 6 meses em que foi condenado, encontrando-se desta forma o remanescente da pena que tem a cumprir: 3 anos e 3 dias; e
Considerando que o arguido iniciou o cumprimento da pena em 11.5.2011, formulou a seguinte liquidação da pena:
- o termo da pena, ocorrerá em 13.5.2014;
- o meio da pena ocorrerá em 11.11.2012;
- os 2/3 serão atingidos em 12.5.2013.

Por despacho de fls. 2888, o Tribunal a quo concordou com a contagem da pena, pelo que o termo da mesma ocorrerá em 13-05-2014, o meio da pena ocorrerá em 11-11-2012 e os 2/3 serão atingidos em 12-05-2013.

É desta decisão que o arguido recorre, concordando que o desconto a efectuar totaliza 2 anos, 5 meses e 27 dias, mas insurge-se contra aquela forma de contagem de pena porque, em suma, entende que, nos termos do art. 80º do Código Penal, os períodos de detenção que o arguido sofreu devem ser descontados por inteiro no cumprimento da pena, no entendimento que dos 5 anos e 6 meses de prisão que o arguido tem a cumprir, quando iniciou o cumprimento de pena à ordem deste processo, já tinha cumprido 2 anos, 5 meses e 27 dias correspondentes ao período em que esteve efectivamente privado de liberdade.
Entende, assim, que não está bem descontada o período de detenção/prisão preventiva e que tal o prejudica nas datas calculadas para o termo, meio e 2/3 da pena, visto que, segundo a forma de contagem, os atinge mais cedo do que as datas previstas na liquidação da pena efectuada no processo.
Para o arguido, a liquidação deverá ser a seguinte:
- o termo da pena, ocorrerá em 04.04.2013;
- o meio da pena já ocorreu em 07.07.2011.
(o arguido não indica os 2/3 da pena)

O Ministério Público, na 1ª instância, respondeu no sentido da improcedência, fazendo-o nos termos que adiante se vão inserir.
O Exmº P.G.A. aderiu à resposta da Digna Procuradora-Adjunta.

Cumpre decidir.

O artº 80º, nº 1 do Código Penal manda que a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenham sido aplicadas em processo diferente daquele em que vier a ser condenado, quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas.
Cumprindo-se estes descontos, isso vai, necessariamente, ter repercussões na contagem da pena para os efeitos do artº 61º do mesmo Código Penal, que prescreve assim:
1 - A aplicação da liberdade condicional depende sempre do consentimento do condenado.
2 - O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrar cumprida metade da pena e no mínimo seis meses se:
a) For fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes; e
b) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem e da paz social.
3 - O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrarem cumpridos dois terços da pena e no mínimo seis meses, desde que se revele preenchido o requisito constante da alínea a) do número anterior.
4 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, o condenado a pena de prisão superior a seis anos é colocado em liberdade condicional logo que houver cumprido cinco sextos da pena.
5 - Em qualquer das modalidades a liberdade condicional tem uma duração igual ao tempo de prisão que falte cumprir, até ao máximo de cinco anos, considerando-se então extinto o excedente da pena.

Sendo o desconto estabelecido um benefício para os condenados, também eles devem beneficiar, no cumprimento das penas de prisão onde os descontos são efectuados, de um regime de contagens que leve em conta esses mesmos descontos como cumprimento de pena.
Desta forma, e no nosso entender, sem qualquer ficção, ajusta-se tal tratamento à letra da lei, quando manda que os períodos de privação de liberdade sejam descontados por inteiro no cumprimento da pena de prisão.
A corrente, representada pelo Ac.TRP, pº 1692/09.0JAPRT-B, e que a decisão recorrida perfilhou, faz apelo a uma data, essa sim, ficcionada, para início da pena, fazendo então funcionar os mecanismos do citado artº 61º, o que redunda em que os dias, meses ou anos de privação de liberdade antes do trânsito em julgado só serão contabilizados no cumprimento da pena para determinação do seu termo, não tendo a mesma repercussão útil (ou seja, por inteiro) para determinar o meio e os 2/3 pressupostos da concessão da liberdade condicional. No mesmo sentido vidé Acs.do TRP de 4-5-2011, rel. Coelho Vieira, doTRL de 27-3-2008, rel. Calheiros da Gama; e também do TRL de 21-10-2004, rel. Margarida Vieira de Almeida
Em linguagem corrente, qualquer pessoa, mormente o arguido, entende e tem por certo que, se por hipótese foi condenado a 4 anos de prisão, terá cumprido metade e faltar-lhe-á a outra metade (aritmeticamente igual) após ter estado detido 2 anos, momento em que lhe faltarão os outros 2. Isto, repete-se, sem qualquer ficção.
Tal entendimento, de resto, e ao contrário do que temos visto seguir, é o defendido por Figueiredo Dias, quando ensina que "Para efeito de se considerar «cumprida» metade da pena, contabiliza-se seguramente qualquer redução que a pena tenha sofrido, nomeadamente por via de perdão parcial ou de outra medida graciosa; como igualmente se contabiliza qualquer privação de liberdade sofrida no processo que conduziu à condenação ou por causa dele, nomeadamente, o tempo de prisão preventiva. Deste modo, pode acontecer que logo no momento da condenação o arguido esteja em condições - ao menos formais - de ser colocado em liberdade condicional" - Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 536.
Ficção existe, em nossa opinião, no entendimento trazido pelo Ministério Público na sua resposta (fls. 3038; 96 destes autos de recurso) de que o condenado apenas inicia o cumprimento de pena na data em que transitou em julgado a decisão condenatória e em que é colocado à ordem do processo ou dá entrada no estabelecimento prisional para o cumprimento dessa pena.
Neste sentido, ou seja, de que os períodos de privação da liberdade indicados no nº 1 do art. 80º do Código Penal devem ser levados em conta no cômputo dos prazos de concessão da liberdade condicional, veja-se o Ac.TRP nº 208/04.0GBBAO-B.P1 - 4ª Sec., de 25/03/2009, Relator Jorge Jacob.
No sentido de que o meio da pena e os 2/3 da pena são calculados não sobre o remanescente da pena a cumprir (depois de operado o desconto) mas sobre todo o tempo de detenção já sofrido [o que interessa é o tempo de cadeia efectivamente já sofrido] também se pronunciou o Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Lisboa, 2008, pág. 211 ( em anotação ao artigo 61.º):
"... para cálculo dos 6 meses, dos dois terços e dos cinco sextos da pena ... o tribunal.. já deve considerar como tempo de cumprimento efectivo de pena o período de prisão preventiva ou de obrigação de permanência na habitação descontado na sentença condenatória..."(nota 5);
"...pode acontecer que por força do desconto do período da privação cautelar da liberdade na pena de prisão, o condenado já se encontre formalmente em condições de beneficiar de liberdade condicional .Por exemplo , sendo o arguido condenado em 3 anos de prisão , mas já tendo siofrido 2 anos de prisão preventiva, ele já estaria em condições de beneficiar de liberdade condicional na data da condenação(nota 7).
E também Germano Marques da Silva,Direito Penal Português, vol. III, pág. 216 e Sandra Oliveira e Silva, A Liberdade Condicional no Direito Português, RFDUPI-2004, págs 373-375 e nota 56 (disponível na internet).
No mesmo sentido se pronunciaram os seguintes arestos:
- Ac. da Rel. do Porto de 2-11-2011, rel. Moreira Ramos;
- Ac. da Rel. do Porto de 25-3-2009, rel. Jorge Jacob
- Ac. da Rel. de Lisboa de 7-9-2009, rel. Carlos Almeida
- Ac. Rel. de Lisboa, 20-10-2009, rel. Carlos Espírito Santo.
- Ac. da Rel. de Coimbra de 25-3-2009, Jorge Gonçalves;
- Ac. da Rel. de Coimbra 1-8-2007, rel. Freitas Vieira.

E o único modo coerente para isso se dar cumprimento ao estatuído, é o de, encontrada a pena final, se proceder à contagem, dia a dia, de todo o tempo de privação de liberdade já sofrido, descontá-lo como tempo já cumprido naquela pena e, então sim, encontrar o remanescente para se acharem as datas exactas do meio da pena e dos 2/3 exigidos pelo artº 61º.
Relativamente ao óbice suscitado pelo Ministério Público na 1ª instância, quanto à dificuldade de o TEP se ver confrontado com a situação de ter que avaliar a possibilidade de concessão de liberdade condicional logo no momento da entrada definitiva do condenado, responde-se no já acima citado acórdão da Relação de Coimbra, quando se diz que …a lei não contém qualquer menção expressa à necessidade de cumprimento contínuo da pena de prisão para efeitos de concessão de liberdade condicional. As parcelas relevantes para efeitos de concessão da liberdade condicional são apontadas por referência ao cumprimento da pena (cfr. arts. 61º, nºs 2, 3 e 4, do Código Penal) e é também por referência ao cumprimento da pena que o art. 80º, nº 1, do mesmo diploma, manda descontar por inteiro a detenção ou privação de liberdade decorrente de medida de coacção, o que não contraria, antes apoia, o entendimento de que aqueles períodos de privação de liberdade devem também ser levados em conta para o cômputo dos prazos de concessão de liberdade condicional.
Deverá assim Tribunal a quo ao abrigo dos fundamentos acima expostos, ou seja, proceder à contagem de todo o tempo de privação de liberdade já sofrido e descontá-lo como tempo já cumprido da pena e, a partir daí, encontrar o remanescente para se acharem as datas exactas do meio da pena e dos 2/3 exigidos pelo artº 61º do Código Penal.

Decisão
Nos termos apontados, e ainda que por outras razões, concede-se provimento ao recurso, devendo o recorrido despacho homologatório da contagem da pena, ser substituído nos moldes supra expostos, em que os períodos de privação da liberdade indicados no n.º1 do artigo 80º do Código Penal sejam levados em conta no cômputo do meio da pena e dos 2/3 da pena.
Sem custas.

Guimarães, 6 de Fevereiro de 2012