Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1346/15.9T8CHV.G1
Relator: HELENA MELO
Descritores: DOAÇÃO
INIFICIOSIDADE
REDUÇÃO DE DOACÇÃO POR INOFICIOSIDADE
INVENTÁRIO
PROCESSO COMUM
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/20/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1. Não obsta ao recurso à forma de processo comum para obtenção da redução por inoficiosidade, a circunstância de se encontrar pendente processo de inventário. Embora os herdeiros pudessem utilizar para o efeito o processo de inventário, não estão vinculados a tal.
2. Não obstante esta questão também pudesse ser suscitada em sede do processo de inventário que se encontra a correr, nada impede a sua apreciação em acção própria para o efeito intentada. Ao notário incumbirá, se assim o entender, no âmbito do processo de inventário, ordenar a suspensão do processo nos termos do nº 2 do artº 16º do Regime Jurídico do Processo de Inventário, aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 05 de Março. O notário pode ainda ordenar suspensão do processo de inventário, designadamente quando estiver pendente causa prejudicial em que se debata alguma das questões a que se refere o número anterior, aplicando-se o disposto no n.º 6 do artigo 12.º da Lei 23/2013.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães:

I - Relatório
Os Autores B, C… marido,D., E…e mulher,F…, intentaram acção de processo comum contra G, H…, I…e J…,peticionando:
- serem os RR. condenados a reconhecer - e isso mesmo ser declarado e reconhecido - que osautores são os únicos e universais herdeiros legitimários do falecido Joaquim;
- serem os RR. condenados a reconhecer - e isso mesmo ser declarado e reconhecido - que o valortotal dos bens pertencentes ao falecido Joaquim, tendo em conta os bens deixados, os bens doados eo bem incluído no testamento, perfazem o valor total de € 74.418,74;
- serem os RR. condenados a reconhecer - e isso mesmo ser declarado e reconhecido - que o valorda legítima dos herdeiros legitimários (descendentes) do falecido Joaquim perfaz o montante de €49.612,50;
- serem os RR.condenados a reconhecer - e isso mesmo ser declarado e reconhecido - que o valorda segunda liberalidade (segunda doação a favor da Ré G…), é, em parte, inoficiosa porque ofende adita legítima no montante de € 23.881,75.
- serem os RR.condenados a reconhecer - e isso mesmo ser declarado e reconhecido - que a deixatestamentária é totalmente inoficiosa.
- deve a Ré G… ser condenada a repor à herança a quantia de € 23.881,75, a qual deverá serfeita com a verba n.º 3 da segunda doação no valor de € 24.000,00;
- devem, ainda, ser os RR. condenados nas custas e demais encargos legais.
Alegaram, em síntese, que:
No dia 1 de Março de 2015 faleceu Joaquim, de 82 anos de idade, no estado de solteiro,natural da freguesia de …;
O falecido não deixou ascendentes vivose deixou 3 filhos, os autores B…, C… e E….;
A herança aberta por óbito do falecido Joaquim é constituída apenas por bens imóveissituados no limite da dita União das freguesias de Loivos e Póvoa de Agrações, concelho de Chaves;
O falecido Joaquim outorgou, no dia 11 de Agosto de 1999 e 6/08/2000, escrituras de doação a favor daRé G…;
O falecido Joaquim fez, ainda, no dia 18 de Fevereiro de 2015, testamento público a favordos RR. H… e I…e, ainda da autora B….
*
Os Réus B…, H… e I…contestaram e alegaram, em síntese, que:
O meio processual não é o adequado;
Corre termos no Cartório Notarial de Chaves o competente processo de inventário nº. xxx/15 poróbito de Joaquim, ocorrendo a excepção de litispendência;
Não aceitam a avaliação dos imóveis;
Os Autores omitem créditos da herança.
Concluiram, defendendo a absolvição da instância ou a absolvição do pedido.

Realizou-se a audiência prévia, em sede da qual os Autores exerceram o direito ao contraditóriorelativamente às excepções dilatórias arguidas pelos Réus.
Foi proferido despacho saneador no qual se absolveu os RR. da instância por erro na forma do processo.
Os AA. não se conformaram e interpuseram o presente recurso de alegação, no qual formularam as seguintes conclusões:

I – A mui douta sentença, ora recorrida, viola, interpreta incorrectamente ou aplica deficientemente, o estabelecido, entre outros, nos artigos 193.º/2, 576.º/1 e 2, 577º e 578º, todos do CPC e art.º 2168º e segs. do CC.
II – Sendo o donatário herdeiro legitimário, a redução só em processo de inventário podia ter lugar.
III - O artigo 2178º CC não é aplicável às situações em que o beneficiário da titularidade seja herdeiro legitimário.
IV - A utilização da acção comum com vista à redução de liberalidades inoficiosas está reservada:
- aos sujeitos que não têm legitimidade para instaurar o processo de inventário e que podem ter interesse em ver reconhecida a redução por inoficiosidade, como acontecerá relativamente aos credores de algum herdeiro legitimário, quando se coloca a questão da legítima deste ser afectada pela liberalidade;
- aos herdeiros legitimários quando as liberalidades foram feitas a favor de quem não assume aquela qualidade.
V - O processo próprio para o cálculo da quota disponível e da legítima de cada um dos herdeiros (filhos e cônjuge), com vista à redução por inoficiosidade de liberalidades feita pelo testador, é o processo (especial) de inventário.
VI - A acção de redução de liberalidades inoficiosas a que alude o art.º 2178º do Cód. Civil, que segue a forma de processo comum, só tem cabimento nos casos em que as liberalidades foram feitas a favor de quem não assume a qualidade de herdeiro legitimário.
VII - Qualquer herdeiro legitimário que se ache prejudicado na sua legítima por doação efetuada a herdeiro ou a um estranho pode lançar mão da acção declarativa comum.
VIII - Os AA./Recorrentes poderão muito naturalmente ver decorrido o prazo de caducidade previsto no citado artigo 2178º do CC quando lhes for processualmente possível o exercício do seu direito de pedir a redução da inoficiosidade das doações feitas pelo inventariado, caso a presente decisão, ora recorrida, não seja alterada e corrigida.
TERMOS em que, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de V. Ex.cias, deve a decisão recorrida ser alterada por forma a julgar como totalmente improcedente a excepção dilatória de erro ma forma do processo e ordene, nessa parte, o normal prosseguimento dos autos.

II – Objecto do recurso
Considerando que:
. o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado a este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso; e,
. os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu acto, em princípio delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,
a questão a decidir é a seguinte:
. se a pretensão de redução de liberalidades inoficiosas pode ser formulada em acção declarativa, com forma de processo comum, quando os demandantes são herdeiros legitimários do de cujus (filhos), nos casos em que as liberalidade não foram estabelecidas a favor de outros herdeiros, ou se, ao invés, o processo adequado é o processo de inventário.

III – Fundamentação
Mostram-se provados os seguintes factos:
. No dia 1 de Março de 2015 faleceu Joaquim de 82 anos de idade, no estado de solteiro, natural da freguesia, concelho de Chaves, filho de Antónioe de Antónia, com última residência habitual na Rua xxx.
. O falecido não deixou ascendentes vivos e deixou três filhos, os ora AA., B…., C… e E…
. A herança aberta por óbito do falecido Joaquim é composta por bens imóveis.
. No dia 11 de Agosto de 1999, o Joaquim outorgou escritura de doação a favor da Ré G….
. O Joaquim outorgou no dia 6 de Julho de 2000 escritura de doação a favor da Ré G….
.O falecido Joaquim fez, ainda, no dia 18 de Fevereiro de 2015, testamento público a favordos Réus H… e I… e, ainda da autora B…, exarado no Livro de Testamentos e Escrituras de Revogação de Testamentos n.º 4-T doCartório Notarial de xxx, Notário em Valpaços.

Do Direito
O que determina a forma de processo a empregar é apenas o pedido. Para Lebre de Freitas, “…a causa de pedir é irrelevante para os efeitos do art.º 199.º (actual artº 193º), para os quais apenas interessa considerar o pedido formulado…”(Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1.º, Coimbra Editora, 1999, p. 344).
Por sua vez, Abrantes Geraldes defende que “…a forma de processo escolhida pelo autor deve ser a adequada à pretensão que deduz e deve determinar-se pelo pedido que é formulado e, adjuvantemente, pela causa de pedir. É em face da pretensão de tutela jurisdicional deduzida pelo autor que deve apreciar-se a propriedade da forma de processo, a qual não é afectada pelas razões que se ligam ao fundo da causa…”[Temas da Reforma do Processo Civil, I Vol. (2.ª Edição Revista e Ampliada), Almedina, 1999, p. 280].
A jurisprudência., por sua vez, tem consideradoque o erro na forma do processo se decide em face da pretensão formulada pelo autor (entre muitos outros, Acórdão da Relação de Coimbra de 14.03.2000, no qual se salientou que “…A questão do erro na forma do processo decide-se em face da pretensão formulada pelo autor e pondo em confronto a petição inicial com o fim que a lei estabelece para o processo concretamente escolhido pelo demandante. Por isso, não deve interferir no julgamento dessa excepção dilatória a eventual inconcludência dos factos alegados, na medida em que implique a apreciação de aspectos ligados ao fundo da causa…” (cujo relator foi Nuno Cameira, acessível em www.dgsi.pt, sítio onde poderão ser consultados todos os acórdãos que venham a ser citados sem indicação de outra fonte).
O processo de inventário que a decisão recorrida considerou ser o meio próprio para os AA. fazerem valer a sua pretensão tem por finalidade pôr termo à comunhão hereditária ou, não carecendo de se realizar a partilha, relacionar os bens que constituem objeto de sucessão e a servir de base à eventual liquidação da herança (artº 2º, nº 1 do Regime Jurídico do Inventário aprovado pela Lei 23/2013, de 5 de Março). Ao inventário destinado à realização dos fins previstos na segunda parte do número anterior são aplicáveis as disposições da presente lei, com as necessárias adaptações (artº 2º, nº 2).
No caso os AA. pedem que sejam reconhecidos como únicos e universais herdeiros legitimários, que os RR. sejam condenados a reconhecer que o valor total dos bens deixados pelo de cujus era de 74.418,74, que o valor da sua legítima é de 49.612,50 , que o valor da 2ª doação à R. .é inoficiosa por ofender a sua legítima em 23.881,74 e a R. Adélia condenada a repor à herança esse montante.

O artigo 2178.º do CC, ao referir-se à caducidade da “acção de redução de liberalidades inoficiosas”, deixa aberta a possibilidade de ser intentada acção comum em vez de, ou apesar de, processo de inventário.
A utilização da acção comum com vista à redução de liberalidades inoficiosas está reservada, segundo algumas correntes jurisprudenciais:
- aos sujeitos que não têm legitimidade para instaurar o processo de inventário e que podem ter interesse em ver reconhecida a redução por inoficiosidade, como acontecerá relativamente aos credores de algum herdeiro legitimário, quando se coloca a questão da legítima deste ser afectada pela liberalidade;
- aos herdeiros legitimários quando as liberalidades foram feitas a favor de quem não assume aquela qualidade;
- quando já tenha sido concluído o inventário e efectuada a partilha dos bens do doador sem que aí tenha sido considerada a redução (neste último sentido, Ac RP 26.3.2009, Pº 0837985, Nº Convencional JTRP00042414, Relator: Teixeira Ribeiro).

No sentido de que a acção prevista no art.º 2178.º do Código Civil se justifica apenas quando as liberalidades foram feitas a favor de quem não é herdeiro legitimário, osAcs. STJ de 09/04/2002, processo 02A740 (Relator: Armando Lourenço), da RP de 22/06/2006, processo 0632516 (Relator: Saleiro de Abreu) e da RL de 03/05/2007, processo 2857/2007 (Relator: Francisco Magueijo). Com interesse vejam-se ainda os Acs. STJ de 24/10/2006, processo 06B2650 (Relator: Mota Miranda) e da RP de 26/03/2009, processo 0837985 (Relator: Teixeira Ribeiro), acórdãos todos estes citados no Ac. do TRC de 05/03/2013 – proc 930/11 que se segue de perto).

Daí que formalmente nada obste à utilização da forma de processo comum para obtenção da redução por inoficiosidade, em casos como o presente. Embora os herdeiros pudessem utilizar para o efeito o processo de inventário, não estão vinculados a tal.
Em defesa de que o processo comum é o meio próprio para discutir a redução das inoficiosidades quando o pedido é apenas essa redução como no caso, o Ac. do STJ proferido no proc. 06B2650 e Ac. do TRG de 14.01.2016, proferido no proc. 31/14.3T8VPC, onde se entendeu que “tendo existido no nosso sistema jurídico uma norma que determinava a aplicação das regras processuais do processo de inventário aos casos em que a finalidade era a verificação de disposições inoficiosas (artigo 1398.º C.P.C), e tendo tal preceito sido revogado pelo D.L. n.º 227/94 de 8 de Setembro, e não mais tendo tido qualquer correspondência em nenhum preceito legal do regime jurídico dos inventários, só pode entender-se que foi intenção do legislador excluir – como efectivamente excluiu – do processo especial de inventário a pretensão, quando única, de verificação de inoficiosidades.”
No saneador/sentença recorrido partiu-se do pressuposto erróneo de que se pretendeu partilhar o acervo hereditário, o que não é o caso. As partes não pretendem partilhar o acervo hereditário com esta acção, o que pretendem é a redução por inoficiosidade de doação a favor da 1ª R.que não é herdeira legitimária.
Assim, embora esta questão também pudesse ser suscitada em sede do processo de inventário que se encontra a correr, nada impede a sua apreciação em acção própria para o efeito intentada. Ao notário incumbirá, se assim o entender, no âmbito do processo de inventário, ordenar a suspensão do processo nos termos do nº 2 do artº 16º do Regime Jurídico do Processo de Inventário, aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 05 de Março. O notário pode ainda ordenar a suspensão do processo de inventário, designadamente quando estiver pendente causa prejudicial em que se debata alguma das questões a que se refere o número anterior, aplicando-se o disposto no n.º 6 do artigo 12.º da Lei 23/2013.



IV – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal em julgar procedente a apelação e revogando a decisão recorrida, ordenam o prosseguimento dos autos.

Custas pela parte vencida a final.
Notifique.
Guimarães, 20 de Abril de 2017

(Helena Gomes de Melo)

(Higina Orvalho Castelo)

(João Peres Coelho)