Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1681/09.5TBBCL.G1
Relator: JOSÉ MANUEL ARAÚJO DE BARROS
Descritores: COMPENSAÇÃO
PARTILHA DOS BENS DO CASAL
CÔNJUGE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/18/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – Por força do disposto no nº 3 do artigo 1676º do Código Civil, o local próprio para o reconhecimento do direito à compensação, por contribuição de um dos cônjuges para os encargos da vida familiar, previsto no nº 2 mesmo preceito, é o da partilha dos bens do casal.
II – Tal opção legislativa terá sido ditada pela constatação de que é no processo onde se discutem, avaliam e partilham os bens comuns do casal que, com mais propriedade, se poderá apurar a situação patrimonial dos cônjuges durante o casamento, ajuizando dos encargos da vida familiar e da contribuição de cada um dos cônjuges para a satisfação dos mesmos, que são os elementos a ponderar para efeito da atribuição do referido direito a compensação.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães
I
RELATÓRIO
D … intentou acção de divórcio contra M ….
Citada a ré e frustrada a tentativa de conciliação, veio esta contestar, impugnando os factos aduzidos na petição, e deduzindo em reconvenção o decretamento do divórcio por ruptura da vida em comum e o arbitramento a seu favor, ao abrigo do disposto no artigo 1676º do Código Civil, de uma compensação a pagar por este, no montante de 18.529,09 €.
O autor apresentou réplica.
Após saneamento e instrução do processo, efectuou-se o julgamento, tendo sido proferida sentença, que decretou o divórcio entre autor e ré e declinou “o conhecimento do pedido formulado pela ré, da atribuição de uma compensação com os fundamentos que expõe, remetendo-a para a partilha por se entender ser aí a sede própria”.
Inconformado com a decisão, veio a ré interpor o presente recurso, o qual foi admitido como sendo de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
O autor contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
Foram colhidos os vistos legais.

II
FUNDAMENTAÇÃO
1.CONCLUSÕES DAS ALEGAÇÕES DE RECURSO
1. Foram os presentes autos instaurados contra a recorrente pelo seu marido, o supra referido D…, com vista a que fosse declarado dissolvido por divórcio o casamento entre ambos celebrado.
2. A recorrente, por sua vez, contestou e deduziu reconvenção, tendo pedido, a final, que fosse, declarado dissolvido por divórcio o casamento celebrado entre ela (recorrente) e o dito D… (recorrido), e, ainda, com fundamento no art.1676º, n.º 2, do Cod. Civil, que lhe fosse arbitrada pelo tribunal uma compensação, a pagar pelo recorrido, no montante de 18529,09 €.
3. Como causa de pedir deste seu pedido de arbitramento de compensação a pagar pelo A., alegou a recorrente que em 1991 em virtude de, a essa data, o casal formado por ela recorrente e pelo recorrido terem, em comum, dois filhos menores, ela recorrente teve que renunciar ao exercício da sua actividade profissional – operária têxtil – em prol de se dedicar em exclusivo aos interesses da vida comum do casal, nomeadamente cuidar dos ditos filhos menores, tratando deles, alimentando-os, vestindo-os, levando-os à escola, cuidando do seu progresso escolar e da sua educação e cuidar da casa de morada de família.
4. Com tal renúncia à sua actividade profissional, deixou de exercer uma profissão remunerada e de progredir na sua carreira profissional.
5. Deixando, por isso, não só de auferir, mensalmente, desde essa ocasião, o equivalente a, pelo menos, o salário mínimo nacional, o que perfaz, à data em que deduziu a sua reconvenção, a quantia global de 81 529,09€. Como também,
6. Deixou de poder ser uma pessoa com fonte própria de rendimentos que permitisse sustentar-se de modo independente, nomeadamente pagar as suas despesas pessoais, ter carro e gozar momentos de lazer, tal como passar férias.
7. O tribunal recorrido decidiu não proceder à audição de qualquer das testemunhas arroladas, nomeadamente das testemunhas arroladas pela recorrente com vista a fazer prova do referido direito de crédito que invocou nos autos contra o recorrido, e, proferindo sentença que colocou termo ao processo, decretando o divórcio entre recorrente e recorrido, absteve-se de conhecer de tal pedido formulado pela recorrente, relativo ao direito de crédito invocado contra o recorrido, “remetendo-a para a partilha por se entender ser aí a sede própria”.
8. Segundo o tribunal recorrido, “a não ter sido exercido o direito em causa na constância do casamento a questão é, agora, meramente patrimonial”, pelo que tal questão seria agora decidida na partilha.
9. A requerente não se conforma com esta decisão do tribunal, entendendo que ela assenta numa errada interpretação da lei do art. 1676, n.º 2 e 3, do Cod. Civ., sendo, inclusive, contra legem.
10. O facto de o legislador, no novo regime do divórcio, ter prescindido da culpa como fundamento para que o divórcio seja decretado, não significa, com isso, que tenha relegado para fora do âmbito do processo de divórcio a questão da fixação, ou não, a favor de um dos cônjuges de um direito de crédito a receber do outro uma compensação patrimonial com o fundamento previsto no art. 1676, do C.C.
11. Direito este que nada tem a ver com qualquer culpa pelo divórcio, sendo antes fixável com os fundamentos previstos naquele preceito legal.
12. Tal direito se não estiver reconhecido entre os cônjuges de comum acordo (o que é o caso dos autos), terá que ser reconhecido pelo tribunal, que decidirá por sentença se, naquele caso concreto, tal direito existe ou não.
13. No art. 1676º do C.C., estamos perante duas questões diversas. Uma, a que se prevê no n.º 2 desse artigo. Ou seja, a questão do direito do cônjuge e o seu reconhecimento pelo tribunal, a exigir do outro a correspondente compensação. Outra, a que se prevê no n.º 3 desse mesmo artigo. Ou seja, o questão do momento em que o cônjuge pode exigir o seu crédito.
14. Uma coisa é questão do direito do cônjuge. Direito esse que, caso os cônjuges não o tenham reconhecido de comum acordo entre si, o cônjuge credor terá que o invocar e provar perante o tribunal, a fim de o ver ser reconhecido. Outra questão é a de saber quando é que o cônjuge, depois de ver reconhecido o seu direito (o seu crédito), pode exigir o mesmo. Ou seja, quando pode exigir recebê-lo.
15. Tal direito (crédito) para poder vir a ser exigido (recebido) pelo cônjuge seu titular em sede de partilha, terá que ter sido previamente reconhecido, de comum acordo, entre as partes ou, na falta desse acordo, fixado pelo tribunal em sede de sentença proferida em processo declarativo, se não antes, pelo menos em sede da sentença que decretou o divórcio, e não em sede de um processo (partilha) que, nos termos do art. 1326, n.º 1, por força do art. 1404, n.º 3, ambos do C.P.C., tem por finalidade partilhar entre os cônjuges os bens que constituem o seu património comum do casal, bem como liquidar as dívidas dos cônjuges entre si ou para com terceiros.
16. Não é depois, mas antes, ou pelo menos no momento da dissolução da comunhão conjugal, que o crédito em causa nos autos tem que estar reconhecido, seja de comum acordo, seja por decisão do tribunal.
17. Quando a lei refere no n.º 3, daquele art. 1676, do C.C. que “o crédito referido no número anterior só é exigível no momento da partilha dos bens comuns do casal” parte do pressuposto de que já existe efectivamente um crédito reconhecido e não um “hipotético” crédito a ser, ou não, reconhecido.
18. Ao ter perfilhado a tese que perfilhou e não a que aqui se defende, o tribunal recorrido interpretou incorrectamente a lei (o art. 1676, n.º 2 e 3, do C.C.), efectuando, inclusive uma interpretação contra legem.
19. O tribunal deveria ter interpretado o n.º 3 do art. 1676 do C.C. no sentido de que, tal norma, quando refere que “o crédito referido no número anterior só é exigível no momento da partilha dos bens comuns do casal”, o termo “exigível” refere-se a “ser recebido” e não a que seja o processo de partilha o meio processual idóneo para se conhecer da existência, ou não do direito invocado pela recorrente nos autos.
20. Ao não conhecer do referido pedido formulado pela recorrente e ter relegado o seu conhecimento para o processo de partilha, o tribunal absteve-se de conhecer sobre questões que devia conhecer, pelo que violou, também, o disposto no art. 668, n.º 1, aln c), do C.P.C., sendo, por isso, a sentença nula.
21. Nulidade essa que aqui para os devidos e legais efeitos se invoca com as suas legais consequências.
22. O tribunal recorrido era, e é, competente conhecer do pedido formulado pela recorrente e de que esse tribunal se absteve de conhecer.
23. O processo de divórcio era, e é, o meio processual adequado para ver reconhecido o direito que a recorrente invocou contra o recorrido e que o tribunal recorrido se absteve de conhecer.
Deve o presente recurso de apelação ser julgado procedente por provado e, em consequência, ser julgada nula a douta sentença de que se recorre, proferida pelo tribunal de primeira instância, ordenando-se que o tribunal recorrido, produzindo a prova arrolada pela recorrente, conheça do pedido formulado pela recorrente de que lhe seja arbitrada pelo tribunal, com fundamento no art.1676º, n.º 2, do Cod. Civil, uma compensação, a pagar pelo recorrido.
***
2. DISCUSSÃO
A questão que se suscita é atinente ao ser ou não a acção de divórcio o local próprio para se conhecer do direito à compensação prevista nos nºs 2 e 3 do artigo 1676º do Código Civil. Sendo que a sentença recorrida entendeu ser no processo de partilha subsequente ao divórcio. Já a recorrente defende ser nesta acção de divórcio que aquele deve ser reconhecido, em sede própria.
Transcrevem-se os preceitos dos nºs 1 a 3 do referido artigo:
«1. O dever de contribuir para os encargos da vida familiar incumbe a ambos os cônjuges, de harmonia com as possibilidades de cada um, e pode ser cumprido, por qualquer deles, pela afectação dos seus recursos àqueles encargos e pelo trabalho despendido no lar ou na manutenção e educação dos filhos.
2 - Se a contribuição de um dos cônjuges para os encargos da vida familiar for consideravelmente superior ao previsto no número anterior, porque renunciou de forma excessiva à satisfação dos seus interesses em favor da vida em comum, designadamente à sua vida profissional, com prejuízos patrimoniais importantes, esse cônjuge tem direito de exigir do outro a correspondente compensação.
3 - O crédito referido no número anterior só é exigível no momento da partilha dos bens do casal, a não ser que vigore o regime da separação.»
A recorrente louva-se em dois argumentos.
Em primeiro lugar, no facto de o legislador, na remodelação do regime do divórcio que efectuou com a Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, se ter essencialmente orientado para a exclusão das questões conexas com a culpa, como fundamento para o decretamento do divórcio. Assim sendo, essa opção não brigaria com a fixação, na acção de divórcio, de uma compensação patrimonial a favor de um dos cônjuges com o fundamento previsto no referido preceito.
Confessamos que tal argumento quase nos convenceu. Até porque não colherá o paralelo que na sentença recorrida se faz com o preceito do artigo 1792º do Código Civil, que no seu nº 1 remete para os tribunais comuns o pedido de reparação dos danos causados, nos termos gerais da responsabilidade civil. O que, muito pelo contrário, nos aproximaria da tese defendida pela recorrente, na medida em que aqui nos situamos em sede de discussão de culpa, pressuposto essencial da responsabilidade civil. Tendência que se realça com a excepção estabelecida no nº 2 do mesmo preceito, que determina que o pedido de indemnização seja deduzido na própria acção de divórcio, quando o fundamento deste for a alteração das faculdades mentais, conforme ao previsto na alínea b) do artigo 1781º. O que se deve, seguramente, ao facto de neste caso a culpa não ser pressuposto da reparação dos danos.
Mas passemos ao segundo argumento da recorrente, de cariz mais literal. Assim, quando a lei refere no nº 3 do referido artigo 1676º que “o crédito referido no número anterior só é exigível no momento da partilha dos bens comuns do casal”, estará a pressupor que já existe um crédito reconhecido e não um hipotético crédito a ser, ou não, reconhecido. Desse modo, o termo “exigível” referir-se-ia ao recebimento do crédito na partilha e não ao seu reconhecimento.
Estoutro argumento, ao contrário do primeiro, não nos impressiona sobremaneira. Anote-se que, na parte final do nº 2, se alude ao “direito de exigir do outro a correspondente compensação” com o inequívoco sentido de “direito a ver reconhecido”. Tudo apontando, assim, para a tese contrária à defendida pela recorrente.
Julgamos decisiva, no sentido da bondade da interpretação de que o legislador pretendeu que o próprio reconhecimento do direito à compensação deva ser efectuado em sede de partilhas, No mesmo sentido, embora não aprofundando as razões da opção, o acórdão da Relação de Lisboa de 14.04.2011 (Teresa Albuquerque), in dgsi.pt – “o crédito de compensação do nº 2 do art 1676º CC (na redacção da L 61/2008 de 31/10), corresponde, apesar da sua designação de “compensação”, a um crédito entre os cônjuges, que tem de particular, por ser directamente um efeito do divórcio, só poder ser exigido no fim do casamento; a exigência do crédito em referência terá lugar no processo de inventário, quando a partilha não seja atingida por acordo entre os ex-cônjuges”. Tomé de Almeida Ramião, in O Divórcio e Questões Conexas, Quid Juris, 2009, pág. 112, sustenta que deverá ser processado como um incidente do processo de inventário. uma consideração de ordem funcional. Terá sido a afinidade das matérias a serem abordadas que ditou essa opção. Por se entender que é no processo onde se discutem e avaliam os bens comuns do casal que, com mais propriedade, se poderá apurar a situação patrimonial dos cônjuges durante o casamento, ajuizando dos encargos da vida familiar e da contribuição de cada um dos cônjuges para a satisfação dos mesmos, que são os elementos a ponderar para efeito da atribuição do referido direito a compensação.
Aliás, é significativa, apontando nesse sentido, a passagem da exposição de motivos do projecto daquele diploma Projecto de Lei nº 509/X. em que se diz que “este é apenas um caso em que se aplica o princípio geral de que os movimentos de enriquecimento ou de empobrecimento que ocorrem, por razões diversas, durante o casamento, não devem deixar de ser compensados no momento em que se acertam as contas finais do património”.
Ainda na mesma linha, refere Cristina Dias O Crédito pela Compensação do Trabalho Doméstico na Constância do Matrimónio, na colectânea Uma Análise Crítica do Novo Regime Jurídico do Divórcio, Wolters Kluwer/Coimbra Editora, 2010, pág. 206.
que “a compensação aparecerá, no momento da liquidação e partilha, ou como um crédito da comunhão face ao património próprio de um dos cônjuges ou como uma dívida da comunhão face a tal património, permitindo que, no fim, uma massa de bens não enriqueça injustamente em detrimento e à custa de outra”.

III
DISPOSITIVO
Acorda-se em, na improcedência do recurso, confirmar a sentença recorrida.
Custas pela recorrente – artigo 446º do Código de Processo Civil.

Notifique.

Guimarães, 18 de Outubro de 2011