Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
305/09. 5GAPTL-G1
Relator: TERESA BALTAZAR
Descritores: ARMA
ARMA BRANCA
DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/06/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: Uma faca de cozinha com lâmina de um só gume e com 10 cm de comprimento não constitui arma proibida para efeitos do disposto no artigo 86º, n.º1., al. d) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.
Decisão Texto Integral: - Processo n.º 305/09. 5GA PTL-G1

- Tribunal recorrido:
Tribunal Judicial de Ponte de Lima - 1º Juízo.
- Recorrente:
O Ministério Público.
- Objecto do recurso:

No processo comum, com intervenção de tribunal singular, n.º 305/09. 5GA PTL, do 1º Juízo, do Tribunal Judicial de Ponte de Lima, foi proferida sentença, nos autos de fls. 112 a 124, na qual, no essencial e que aqui importa, se decidiu o seguinte (transcrição):



“III - Decisão
Por tudo o que exposto fica, decide-se:
1. Condenar o arguido José N..., como autor da prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelo art. 153.°, n.º1, e 155.°, n.º 1, al. c), do Cód. Penal, na pena de 180 dias de multa, à taxa diária de € 7,00.
2. Absolver o arguido José N..., da prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos arts. 2.°, al. l), 3.°, n.º 2, al. f), 4.°, n.º 1, e 86.°, n.º 1, al. d), todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.
2-A. Absolver o arguido José N..., da prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelo art. 153.°, n.º1, e 155.°, n.º 1, al. a) e b, do Código Penal”.


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Inconformado com a supra referida sentença (no respeitante à absolvição do arguido pela prática de um crime de detenção de arma proibida) o Magistrado do Ministério Público dela interpôs recurso (cfr. fls. 129 a 137), terminando a sua motivação com as conclusões constantes de fls. 135 a 137, seguintes (transcrição),
“Conclusões:
a) A sentença recorrida está ferida da nulidade prevista no art. 379°, n.o 1, alinea c), do Código de Processo Penal, visto a mesma não se ter pronunciado, na parte decisória, quanto à absolvição do arguido por um dos crimes de ameaça agravada de que vinha acusado, absolvição a que nada tem o Ministério Público a opor por corresponder à prova resultante da audiência de discussão e julgamento.


b) O arguido foi encontrado, com uma faca de cozinha, com lâmina de um só gume e com dez centímetros de comprimento, no interior das suas cuecas, não apresentando qualquer justificação para a transportar ou deter, pelo que cometeu um crime de detenção de arma proibida previsto e punível no art. 86° n.o 1, alinea d).


c) A referência a "outras armas brancas", prevista no citado preceito legal, há-de ser sempre a uma das armas brancas tal como definidas no art. 2° n.o 1, alinea 1), ou seja, sem o requisito "sem aplicação definida", que apenas se aplicará aos instrumentos.


d) Este será o entendimento com melhor se coaduna com a ratio subjacente a todo o regtme jurídico das armas e munições e em particular à criminalização da detenção de arma proibida.


e) O crime de detenção de arma proibida é um crime de perigo abstracto em que a conduta não lesa de modo directo e imediato qualquer bem jurídico mas envolve a possibilidade de um dano. O legislador proíbe certos comportamentos sem esperar que o perigo se verifique efectivamente, evitando na fonte a possibilidade de surgirem tais perigos.


f) Foi no artigo 2°, n.º 1, alínea 1), que o legislador definiu os parâmetros da perigosidade de um objecto, de modo a que seja caracterizado como arma branca, definição esta feita em função da relevância intrínseca do objecto atenta a sua capacidade de ser usado como arma de agressão; e decidiu os que tinham tal capacidade -todo o objecto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante ou perfurante de comprimento igualou superior a 10 cm ou com parte corto-contundente, bem como destinado a lançar lâminas, flechas ou virotões, independentemente das suas dimensões; bem como os que não tinham: todo o objecto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante ou perfurante de comprimento inferior a 10 cm, desde que não possuísse parte corto-contundente, nem fosse destinado a lançar lâminas, flechas ou virotões.


g) Na interpretação que fizermos da referência a "outras armas brancas", feita na alínea d), no n.o 1 do art. 86° do Decreto-Lei n.o 5/2006, teremos sempre que nos reportar à definição que o legislador deu no art, 2° n,o 1, alínea 1), sob pena de passarmos a criar definições legais e categorias que a lei não previu, não quis prever e não podia prever, sob pena de absoluta incongruência do sistema -quais sejam as de armas brancas que possam ser usadas como arma de agressão e a de armas brancas que não possam ser usadas como arma de agressão.


h) O requisito da capacidade para o uso como arma de agressão não pode ser exigivel pois tal capacidade é inerente à própria definição de arma branca, tal como caracterizada pelo legislador no artigo 2° n01, alínea 1), do RJAM.


i) O facto de ser permitida a venda, aquisição, a cedência, a detenção, o uso e o porte de armas brancas -de qualquer comprimento de lâmina- desde que se destinem a um uso definido, nos termo do disposto no art. 3° n.O 2, alínea f), e art. 4° n.o 1, não significa que as mesma possam, licitamente, ser usadas em qualquer circunstância sem que o seu detentor justifique a sua posse.


j) A unidade do Regime Jurídico de Armas e Munições (RJAM), a sua congruência interna, sai completamente desbaratada se no artigo 86° n01, alínea d), fizermos depender a punibilidade das modalidades de comportamento típico relativas às armas brancas da verificação cumulativa dos requisitos (1) ausência de aplicação definida; (2) capacidade para o uso como arma de agressão; e (3) falta de justificação para a posse.

k) - Os segmentos da norma "que possam ser usados como arma de agressão" e "sem aplicação definida" reportam-se, unicamente, aos engenhos ou instrumentos, precisamente aqueles, que pela sua indefinição -são tantos os instrumentos conjecturáveis que o legislador não os podia caracterizar a todos- não foram previstos nas classificações constantes da parte inicial do diploma


1) Violou, deste modo, o acórdão recorrido, os artigos 2° n.o 1, alínea 1), e 86° n.o 1, aI. b) , ambos da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro.


Pelo exposto, V. Exas. deverão conceder provimento ao recurso e, em consequência,
a) declarar nula sentença nos termos do disposto do art. 379° n.o 1, alínea c) do Código de Processo Penal, sem prejuízo do disposto no n.o 2 do mesmo preceito legal;
b) condenar o arguido José N... na prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelo art. 86° n.o 1, a!. b) da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro, fazendo, desse modo, Justiça.”.

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Não foi apresentada resposta ao recurso do M. P.
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O recurso foi admitido por despacho de fls, 139 e 140 (no qual se procede também a correcção da sentença - parte decisória / ponto 2-A na parte respeitante à absolvição do arguido pela prática de um crime de ameaça agravada).
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A Ex.mª Procuradora Geral Adjunta, nesta Relação no seu parecer de fls. 152 a 157 conclui que o recurso não merece provimento.

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Cumprido o disposto no artigo 417º, n.º 2, do C. P. Penal, não veio a ser apresentada qualquer resposta.

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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, prosseguiram os autos para conferência, na qual foi observado todo o formalismo legal.

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- Cumpre apreciar e decidir:
- A - É de começar por salientar que, para além das questões de conhecimento oficioso, são as conclusões do recurso que definem o seu objecto, nos termos do disposto no art. 412º, n.º 1, do C. P. Penal.
- B - No essencial, o M. P., no seu recurso, suscita a questão seguinte:
– Discorda da absolvição do arguido pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos arts. 2.°, al. l), 3.°, n.º 2, al. f), 4.°, n.º 1, e 86.°, n.º 1, al. d), todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.
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- C - Matéria de facto dada como provada e não provada, na 1ª instância e sua motivação - cfr. fls. 112 a 114 (transcrição):




“ 11. Fundamentação de Facto. 1.1. Factos provados.
a) Nos dias 29 e 30 de Abril de 2009, pelas 18HOO, o arguido dirigiu-se à entrada da escola secundária de Arcozelo, Ponte de Lima, onde em tempos foi aluno, pretendendo penetrar no interior do recinto escolar.
b) De ambas as vezes, a entrada foi-lhe vedada pelo porteiro da escola, João F..., à semelhança do que já vinha acontecendo desde o mês de Dezembro de 2008.

c) Durante o mês de Janeiro de 2009 e os dias referidos em a), o arguido, nessas circunstâncias, dirigiu-se ao João F..., dizendo que havia de o deitar abaixo, lhe ia dar uma facada e o ia apanhar fora da escola, chegando mesmo a encostar um ferro à barriga do ofendido.
d) No dia 02/06/2009, pelas 17H30, o arguido dirigiu-se de novo à entrada da referida escola, em tronco nu, com as calças caídas, exibindo as cuecas e com uma garrafa de vinho, que ia bebendo, na mão, ao mesmo tempo que proferia impropérios e se exibia perante as crianças que se encontravam na saída da escola e na paragem dos autocarros, razão pela qual foi chamada a GNR.
e) Nessa altura, e porque se encontrava embriagado, foi conduzido ao posto da GNR, onde foi revistado, sendo-lhe encontrada, no interior das cuecas, uma faca de cozinha, com lâmina de um só gume e dez centímetros de comprimento.
f) Ao agir da forma descrita, o arguido pretendeu intimidar o João F... e causar­lhe medo, levando-o a temer vir a ser por ele agredido e esfaqueado.
g) O arguido sabia que o João F... era funcionário da escola e que se encontrava no exercício das suas funções quando interpelado pelo arguido e quando o interpelou.
h) Ao ser portador da faca de cozinha supra referida, e nas circunstâncias em que o fez, o arguido sabia não ter justificação para a transportar ou deter.
i) O arguido bem sabia não ser o seu comportamento permitido pela lei.



Mais se provou que:
j) O arguido trabalho como trolha, auferindo cerca de € 400,00 por mês; mora com os pais; tem o 6.° ano de escolaridade.
k) Já foi condenado:
- em 14/05/2009, no processo sumaríssimo que correu termos neste juízo, com o n.º 315/08.0GAPTL, pela prática, em 05/06/2008, de um crime de introdução em lugar vedado ao público, na pena de 20 dias de multa;
- em 09/06/2009, no processo comum colectivo que correu termos neste juízo, com o n.o 91/08.6TAPTL, pela prática, em 2006, de um crime de abuso sexual de crianças, na pena de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período.



1.2. Factos não provados.
Ficou por demonstrar que, em Maio de 2009, pelas 17H30, o arguido tivesse exibido uma navalha ao António P..., tendo-lhe dito que o matava, o que levou o António P... a refugiar-se no interior do recinto escolar.


1.3. Motivação.
O Tribunal formou a sua convicção, no que aos factos provados respeita, desde logo com base nas declarações do arguido, que confessou ter-se dirigido à escola nos períodos referidos, tendo sido impedido de ingressar na mesmá pelo ofendido João F.... Confirmou, apenas, ter-lhe dito que o "ía apanhar cá fora".
Confessou ainda o arguido ter-se dirigido no dia 2 de Junho de 2009 à escola, nas circunstâncias descritas na acusação, confirmando ainda ter sido conduzido à GNR onde foi revistado e onde foi encontrada na sua posse a faca supra identificada.
Negou, no entanto, ter ameaçado o ofendido João F... de lhe haver de dar uma facada, bem assim como negou ter exibido a navalha ao ofendido António Pereira, acompanhado da ameaça de morte.


No que aos factos de que foi vítima o ofendido João F... concernem, valorou o Tribunal o depoimento circunstanciado prestado pelo mesmo, que confirmou o teor da acusação, não conseguindo, porém, precisar as datas em que cada uma das ameaças foi proferida.
De resto, a ambiência de confronto proporcionada pelo arguido nem sequer foi negada por este, tendo a atitude e intenção ameaçadora do ora acusado sido confirmada pelo testemunho de Maria Azevedo que disse ter ouvido o arguido, noutras circunstâncias (mais concretamente, no dia 2/06/2009), a dizer que ía matar o João F....
Esta testemunha, de resto, confirmou que no dia 02/06/2009 o arguido se encontrava embriagado, actuando nos moldes descritos na acusação.


Valorou o Tribunal, positivamente, o teor dos autos de fls. 35 e 36, bem assim como os de fls. 44 e 45.


Já no que se referem aos factos de que alegadamente foi vítima o António Pereira, é de destacar que, atenta a versão inverosímil por ele narrada - designadamente, relatando esta testemunha ter o arguido lhe exibido uma pistola "seis trinta e cinco" de cor branca, que levava consigo nos "boxers", sendo que pese embora soubesse o calibre (sem se perceber muito bem como) não conseguiu descrever a arma em causa senão através da cor - não mereceu o seu depoimento credibilidade de sorte a poder ser atendido e valorado.


Foram consideradas as declarações complementarmente prestadas pelo arguido relativamente à sua condição social, familiar e económica.
No que diz respeito aos antecedentes criminais relevou o certificado junto aos autos.


Quanto aos factos não provados, e para além do que já se disse, cumpre referir não se haver produzido em audiência de julgamento qualquer prova que permitisse dar como demonstrados outros para além dos que nessa qualidade se descreveram.”.


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- Quanto às questões suscitadas pelo recorrente no recurso:

Desde já se refere que o nosso entendimento quanto á questão em apreço é, no essencial, coincidente com o mencionado pela Digna PGA no seu parecer de fls. 152 e 157.
Daí que, aderindo nós á argumentação aduzida por aquela magistrado sem que praticamente mais se nos ofereça acrescentar, permita-se-nos que passemos, de imediato a transcrever o aludido parecer:
“O M. P. junto do Tribunal Judicial de Ponte de Lima requereu o julgamento com intervenção do Tribunal Singular do arguido José N... imputando-lhe factos susceptíveis de integrar a prática de dois crimes de ameaças agravadas p. e p. pelos art.ºs 153.°, n.º 1 e 155.°, n.º 1, als. a) a c) do C.P. e um crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo art.º 86.°, n.º 1, a!. d) da Lei n.º 5/2006 de 23 de Fevereiro.
Por douta sentença proferida em 17 de Fevereiro de 2010 o arguido José N... foi condenado como autor da prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelo art. 153.°, n.º 1 e 155.°, n.º 1, al. c) do C.P. na pena de 180 dias de multa à taxa diária de 7,00€ e absolvido da prática de um crime de ameaça agravada, bem como do crime de detenção de arma proibida que lhe haviam sido imputados.
Esta douta sentença foi depositada em 17 de Fevereiro de 2010, pelo que o recurso interposto pelo M. P. deu entrada no 21.° dia após esse depósito, não havendo que ser paga a multa pela interposição tardia pelo facto de o M. P. de tal estar isento, circunscrevendo-se o mesmo à discordância quanto à absolvição do crime de detenção de arma proibida, defendendo o M. P.º/recorrente, segundo as suas "Conclusões", uma vez que são elas que fixam o objecto do recurso, que tem de ser considerado como crime de detenção de arma proibida o facto de o arguido ter sido encontrado com uma faca de cozinha, com lâmina de um só gume e com 10 cm de comprimento, no interior das suas cuecas, não apresentando qualquer justificação para a transportar ou deter, uma vez que o crime de detenção de arma proibida é um crime de perigo abstracto em que a conduta não lesa de modo directo e imediato qualquer bem jurídico mas envolve a possibilidade de um dano, devendo ser considerada como arma branca todo o objecto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante ou perfurante de comprimento igualou superior a 10 cm ou com parte cortu­contundente, bem como destinado a lançar lâminas, flechas ou virotões, independentemente das suas dimensões; bem como os que não tinham: todo o objecto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante ou perfurante de comprimento inferior a 10 cm, desde que não possuísse parte cortu-contundente, nem fosse destinado a lançar lâminas, flechas ou virotões, defendendo, ainda, aquele Magistrado que os segmentos da norma que possam ser usados como arma de agressão e sem aplicação definida, reportam-se unicamente aos engenhos ou instrumentos, pelo que entende que o mesmo deve ser condenado com o autor de um crime de detenção de arma proibida.
Sobre este assunto, o Tribunal da Relação de Évora, pronunciou-se em 4 de Março de 2008, no Proc. n.º 169/08, tendo sido seu Relator o Exm.º Sr. Juiz Desembargador Dr. Fernando Ribeiro Cardoso, sendo o sumário do seguinte teor:
«1. Ainda que o conceito de arma branca possa abranger múltiplos instrumentos, nem todos eles podem integrar-se no conceito de arma cuja aquisição, detenção, transporte ou uso é proibida e passível de integrar o crime em causa. Só é absolutamente proibida a aquisição, a cedência, a detenção, o uso e o porte por particulares das armas brancas que integrem a classe A.

2 - Para que a detenção ou porte de outras armas brancas a que alude a al. d) do n.º 1 do art. 86.° constitua crime, impõe o legislador que, cumulativamente, se verifiquem três requisitos:

a) Ausência de aplicação definida;
b) Capacidade para o uso como arma de agressão;
c) Falta de justificação para a posse.

3 - A expressão sem aplicação definida, usada na al. d) do n.º 1 do citado art. 86.°, não se restringe, com o devido respeito, aos instrumentos, abrangendo, por conseguinte, outras armas brancas (ali não elencadas) e os engenhos. Com efeito, o legislador inclui na classe A as armas brancas sem afectação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas (ou seja, as armas sem aplicação definida). E inclui também na classe A quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão - cf. al. f) e g) do n.02 do art.3.0. São essas as outras armas brancas, engenhos ou instrumentos cuja aquisição, detenção, transporte ou uso se quis proibir. A ser assim, como pensamos que é, para que a detenção, uso e porte de outras armas brancas, para além das especificadas na al. d) do n.º 1 do citado art. 86.° constitua crime, impõe-se concomitantemente, o preenchimento, entre outros, dos referidos três requisitos. Não apenas um, ou dois, mas os três.

4 - Uma faca de cozinha tem uma aplicação definida (a afectação às lides domésticas) que não é a de meio de agressão contra pessoas mas que, subtraída ao contexto normal da sua utilização, pode ser utilizado como tal. Sendo indubitavelmente uma arma branca, porque tem uma lâmina com mais de 10 cm de comprimento, não é (pelo menos num quadro de mera detenção) uma arma branca proibida.
5 - O uso desviado das propriedades do objecto não pode servir como critério para o definir como arma proibida.».

Por concordarmos inteiramente com o seu teor, sendo certo que tudo o que poderíamos dizer seria uma "cópia" deste douto acórdão, iremos antes reproduzi-lo, quanto à parte que consideramos essencial para a compreensão da decisão, referindo-se, naquele douto acórdão o seguinte:
« A questão posta no recurso consiste em saber se a faca de cozinha que o arguido detinha constitui arma proibida para efeitos de integração da conduta no tipo do artigo 86.° n.º 1 al. d) da Lei n.º 5/2006. de 23 de Fevereiro, que preceitua:
"I - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico. transformação, importação ou exportação, usar ou trouxer consigo: …

d) Arma da classe E, arma branca dissimulada sob a forma de outro objecto, faca de abertura automática, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso. estrela de lançar, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, aerossóis de defesa não constantes da alínea a) do n.º 7 artigo 3. o. armas lançadoras de gases, bastão eléctrico, armas eléctricas não constantes da alínea b) do n.º 7 do artigo 3.º, quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão, silenciador, partes essenciais da arma de fogo, munições, bem como munições com os respectivos projécteis expansivos, perfurantes, explosivos ou incendiários, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa até 360 dias.
2 - A detenção de arma não registada ou manifestada, quando obrigatório, constitui, para efeitos do número anterior, detenção de arma fora das condições legais."
Para melhor compreensão da questão, impõe-se dizer que o legislador nacional, em conformidade com a orientação da Directiva n. ° 91/477 /CEE, de 18 de Junho de 1991 classificou as armas por classes, de A a G, em função do seu grau de perigosidade, do fim a que se destinam e do tipo de utilização que lhes é permitido.
Definem-se como armas e outros acessórios da classe A, um elenco de armas, acessórios e munições cuja proibição se mostra generalizada nos países do espaço europeu, aí se integrando ainda armas cuja detenção, face à sua proliferação no tecido social e à frequência da sua utilização ilícita e criminosa, deve ser desmotivada.
Assim. proíbem-se, entre outras, as armas brancas com lâmina cuja actuação depende de mecanismos.
Prevê-se, de facto, no transcrito art. 86.°. além do mais. a punição para a posse de arma branca dissimulada sob a forma de outro objecto, faca de abertura automática, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxers [que integram a classe A - cf. n.º2. al. d) e e) do art. 3.° e que vêm definidas nas al. ar). aq). ap). ao). an) e aj) do art. 2.° n.º l do mesmo diploma legal] e de outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse.
A Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, dá-nos a definição do conceito de arma branca na al. l) do seu art. 2.°. nos seguintes termos: "Arma branca todo o objecto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante ou perfurante de comprimento igualou superior a 10 cm ou com parte corto-contundente, bem como destinado a lançar lâminas, flechas ou virotões. independentemente das suas dimensões."
A enunciação das características de alguns dos objectos que como tal podem ser qualificados de armas brancas deixa de fora outros que na praxe judiciária ganharam essa mesma designação (v. g. matracas, mocas, correntes de bicicletas, tacos de basebol, etc.).
A lei classifica, desde logo, como armas brancas o arco, a arma submarina, a besta, o estilete, a estrela de lançar, a faca de arremesso, a faca borboleta e a faca de abertura automática ou faca de ponta e mola [cf. alin. ae), ai), an), ao), ap), aq) e ar) do n.º l do citado art. 2.°].
E integra ainda na classe A as armas brancas sem afectação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou que pelo seu valor histórico ou artístico não sejam objecto de colecção - ­cf. al. f) do n.º 2 do art. 2.°.
O artigo 4.° n.º l da Lei n.º 5/2006 determina que são proibidos a venda, a aquisição, a cedência, a detenção, o uso e o porte de armas, acessórios e munições da classe A.

Apesar da interdição referida, o n. ° 2 do mesmo artigo prevê que, mediante autorização especial do director nacional da PSP, possam ser autorizados a venda a aquisição, a cedência e a detenção de armas e acessórios da classe A destinados a museus públicos ou privados, investigação científica ou industrial e utilizações em realizações teatrais, cinematográficas ou outros espectáculos de natureza artística, de reconhecido interesse cultural, com excepção de meios militares e material de guerra cuja autorização é da competência do ministro que tutela o sector da Defesa Nacional.
Ainda que o conceito de arma branca possa abranger múltiplos instrumentos. nem todos eles podem integrar-se no conceito de arma cuja aquisição. detenção. transporte ou uso é proibida e passível de integrar o crime em causa. Só é absolutamente proibida a aquisição. a cedência. a detenção. o uso e o porte por particulares das armas brancas que integrem a classe A.
Há outras armas brancas, nas quais se incluem os sabres e outras armas tradicionalmente destinadas às artes marciais que integram a classe F) - cf. n.08. aI. a) do art. 3.° - que podem ser adquiridas através de compra e venda ou doação, estando a aquisição, a detenção. o uso e o porte de armas dessa classe sujeita a licença do director nacional da PSP (cf. art.10.0. 11.° e 17.°). E no caso das armas brancas integradas na classe F, a sua detenção ilegal, apenas faz incorrer o seu autor na prática de uma contra­-ordenação.
Para tanto bastará atentar no que dispõe o Artigo 97.° do mesmo diploma que sanciona com coima de 600 a 6000 quem, sem se encontrar autorizado. fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente. detiver. transportar. importar, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou exportação, usar ou trouxer consigo reprodução de arma de fogo, arma de alarme, ou armas das classes F e G.
Assim, a interpretação sustentada pelo Ministério Público não pode, com o devido respeito, ser acolhida.
Entendemos que a interpretação da al. d) do n.º 1 do art. 86.° da Lei n.º 5/2006 deve ser feita num sentido menos lato do que aquele que os seus termos, em princípio, poderiam consentir e que o ilustre recorrente aqui veementemente defende.
É o que manifestamente se impõe face ao "princípio da necessidade". da máxima importância e com consagração constitucional no art. 18.° n.º 2 da CRP.
Com efeito, ele ... obriga, por um lado, a toda a descriminalização possível; proíbe, por outro lado, qualquer criminalização dispensável o que vale por dizer que não impõe, em via de princípio, qualquer criminalização em função exclusiva de um certo bem jurídico; e sugere. ainda por outro lado, que só razões de prevenção, nomeadamente de prevenção geral de integração, podem justificar a aplicação de reacções criminais" [1] e dirige-se tanto ao legislador como ao intérprete.
Ou seja, para que a detenção ou porte de outras armas brancas a que alude a al. d) do n.º 1 do art. 86.° constitua crime, impõe o legislador que, cumulativamente, se verifiquem três requisitos:
1) Ausência de aplicação definida;
2) Capacidade para o uso como arma de agressão;
3) Falta de justificação para a posse.
A expressão sem aplicação definida usada na al. d) do n.º 1 do citado art. 86.°, não se restringe, com o devido respeito, aos instrumentos, abrangendo, por conseguinte, outras armas brancas (ali não elencadas) e os engenhos.
Com efeito, o legislador inclui na classe A as armas brancas sem afectação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas (ou seja. as armas sem aplicação definida). E inclui também na classe A quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão - cf. al. f) e g) do n.º2 do art.3.º São essas as outras armas brancas, engenhos ou instrumentos cuja aquisição, detenção, transporte ou uso se quis proibir.
A ser assim, como pensamos que é, para que a detenção, uso e porte de outras armas brancas, para além das especificadas na al. d) do n.º l do citado art. 86.° constitua crime, impõe-se concomitantemente, o preenchimento, entre outros, dos referidos três requisitos. Não apenas um, ou dois, mas os três.
Se assim não fosse, seria sempre punível a posse da tal faca de cozinha com 20 cm de comprimento de lâmina. Tal como seria sempre crime a posse de qualquer outro objecto com aplicação definida desde que pudesse ser usado como arma de agressão, ainda que houvesse justificação para a sua posse.
A aceitar esta tese, e porque quase todos os objectos, instrumentos ou artefactos de uso corrente nas actividades domésticas, agrícolas (foices, gadanhas, roçadoras, etc), florestais e industriais podem cumprir um, ou dois, desses três requisitos, seriam, por isso, armas proibidas, sendo portanto punível a sua posse, independentemente do seu uso.
Assim, não obstante o arguido ter em seu poder, ou na sua esfera de disponibilidade, uma faca de cozinha com as características supra descritas, que pode ser usada como arma de agressão, mesmo que não tenha justificado a sua posse, não cometeu o crime de detenção de arma proibida, que lhe foi imputado, pois falta-lhe a ausência de aplicação definida.
A caracterização de um objecto como arma proibida tem a ver com as suas características (grau de perigosidade) e com a utilização ou afectação normal delas, com a idoneidade dessa utilização ou afectação normal como meio de agressão. O uso desviado das propriedades do objecto não pode servir como critério para o definir como arma proibida.
Uma faca de cozinha tem uma aplicação definida (a afectação às lides domésticas) que não é a de meio de agressão contra pessoas mas que, subtraída ao contexto normal da sua utilização, pode ser utilizado como tal. Sendo indubitavelmente uma arma branca, não é (pelo menos num quadro de mera detenção) uma arma branca proibida.
A faca de cozinha é, por conseguinte, um objecto que pode excepcionalmente ser aproveitado para praticar uma agressão contra pessoas, mas não foi fabricado com essa finalidade nem é essa a sua utilidade normal. A sua perigosidade é evidente, por ser um instrumento corto-perfurante, mas a sua integração no contexto espacial da sua utilidade retira-lhe as características de arma proibida, ainda que possa ser considerada arma para outros fins, nomeadamente para os efeitos prevenidos no art. 4.° do DL n.º 48/95, de 15 de Março.
Por isso que a detenção de uma faca de cozinha com uma lâmina de 20 cm - ainda que fora do contexto espacial da sua utilização - não é proibida e punida pela lei vigente, tal como não era proibida e punível pelo regime que a lei ora em vigor revogou.».
Neste sentido, também se pronunciou o douto acórdão desta Veneranda Relação de 9 de Fevereiro de 2009, em que foi Relatora a Exm.a Juiz Desembargadora Dr.a Nazaré Saraiva, no Proc. n.º 2447/08-1.
Entendemos que tendo em conta a matéria dada como provada e o teor dos dois acórdãos referidos, nada mais resta referir a não ser que somos de parecer que mantendo-se a douta sentença proferida e, consequentemente, negando provimento ao recurso se fará, como sempre a habitual Justiça.”.
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Quanto à questão a que o recorrente alude nos termos seguintes:
“A sentença recorrida está ferida da nulidade prevista no art. 379°, n.º 1, alinea c), do Código de Processo Penal, visto a mesma não se ter pronunciado, na parte decisória, quanto à absolvição do arguido por um dos crimes de ameaça agravada de que vinha acusado (…)”.
A mesma deixou de se colocar após a correcção efectuada a fls. 139 e 140.
Tendo a esse respeito o M. P. referido, mesmo, “absolvição a que nada tem o Ministério Público a opor por corresponder à prova resultante da audiência de discussão e julgamento.”.
Pelo que ficou prejudicada a apreciação desta questão.
E, atento o que acima se deixou referido, sendo de manter a absolvição quanto ao crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos arts. 2.°, al. l), 3.°, n.º 2, al. f), 4.°, n.º 1, e 86.°, n.º 1, al. d), todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro

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Face ao referido, deverá, pois, improceder o recurso interposto pelo M. P..
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- Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em, negando provimento ao recurso do Ministério Público, confirmar a sentença recorrida.
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Sem custas.
Notifique.
D. N.
(Texto processado em computador e revisto pela primeira signatária – artº 94º, nº 2 do CPP – Proc n.º 305/09. 5GA PTL-G1).
Guimarães, 06 de Junho de 2011