Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
469/03-1
Relator: MIGUEZ GARCIA
Descritores: FRAUDE FISCAL
ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA
INFRACÇÃO FISCAL
PRISÃO PREVENTIVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/17/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: Ainda que o arguido tenha a sua responsabilidade indiciada por referência aos crimes de fraude fiscal e de associação criminosa, este do artigo 89º, nº 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias, não é caso de autorizar qualquer aditamento ao prazo do regime-regra para a prisão preventiva previsto no artigo 215º, nº 1, do Código de Processo Penal, e por aí a declaração de excepcional complexidade do procedimento do respectivo nº 3, por nenhum deles constar do elenco dos que no nº 2 do mesmo artigo justificam a adopção de tal medida.
Decisão Texto Integral: 11

P. nº 469/2003

Relator: Miguez Garcia;

Adjuntos: Anselmo Lopes /Nazaré Saraiva.

Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães.


I.

No Tribunal Judicial de Barcelos, o Ministério Público requereu, ao abrigo do disposto no artigo 215º, nº 3, do Código de Processo Penal, que se declarasse o procedimento criminal pelos crimes de fraude fiscal e associação criminosa, que se investigam no processo nº 20/2002, de especial complexidade.

A propósito, foi proferido o seguinte despacho:

Alegou para tanto o seguinte: Resulta dos autos que, desde meados de 1999 até Dezembro de 2001, foram importados de diversos países da comunidade europeia (Alemanha, França, Bélgica, Holanda, Espanha e Luxemburgo) para Portugal pelo menos 999 veículos automóveis, no valor global de cerca de 6.700.000 contos, que foram vendidos sem que o Estado tivesse recebido o IVA devido pela venda dos mesmos, no valor global de cerca 1.124.000 contos. Tais veículos, apesar de terem sido importados em nome dos arguidos "A", "B", irmão daquele, "C", Lda, da qual é sócio e gerente o arguido "A", "D, L.da", da qual é gerente o arguido "E", "F" Lda", da qual é sócio e gerente o arguido "G", a verdade é que os mesmo foram importados directamente pelos arguidos Albino, Freitas, Humberto, Macedo e outros. Pois, apesar de aqueles veículos virem do estrangeiro para Portugal e de serem legalizados em nome dos primeiros, o certo é que não foram estes que os adquiriram no estrangeiro, mas sim outros, tais como os arguidos Humberto, Albino, Freitas, Macedo e outros, que agiam em nome e no interesse das suas sociedades de venda de veículos automóveis e as pagavam no estrangeiro. Porém, daqueles 999 ainda falta saber o destino de cerca 160 viaturas. Uma vez que tais veículos eram importados em nome dos primeiros, estes depois simulavam a venda das mesmas viaturas às empresas dos segundos, respectivamente, ...... que, por sua vez, a fim de simularem o pagamento de tais viaturas àqueles, emitiam cheques que não eram depositados em contas de que são titulares ou noutras, que não as pessoas em nome de quem eram importados os veículos. Posteriormente, tais veículos foram vendidos a outras pessoas, cujo número ascende a várias dezenas, que também estão a ser investigadas. Estão, por outro lado, a ser investigadas inúmeras contas bancárias dos arguidos e respectivos documentos das operações nela efectuadas, bem como de outras pessoas, a fim de se determinar a circulação dos cheques falsamente emitidos para pagamento das viaturas aos arguidos em nome de quem elas foram importadas. São inúmeras também as diligências em curso, tais como buscas, inquirições e diligências no estrangeiro, sendo que, em todo este processo, para além daquelas empresas e dos arguidos já constituídos outras pessoas e empresas nela intervieram. A documentação apreendida nos autos é imensa e o seu tratamento é prolongado. Por outro lado, encontram-se já constituídos nos autos, havendo ainda outros a constituir. Os crimes que se investigam nos autos, fraude fiscal e associação criminosa, são só por si de manifesta complexidade no que toca à investigação, tendo em conta o montante da fraude. Atentos os motivos expostos, e de harmonia com o disposto no art. 215°, n.° 3, do Código de Processo Penal, declaro o procedimento por tais crimes de excepcional complexidade e, consequentemente, fixo o prazo máximo a prisão preventiva dos arguidos em um ano”.
“Os elementos carreados para os autos indiciam a prática, pelo arguido Agostinho, em co-autoria, de um crime de fraude fiscal agravado, p. e p. pelos art. 23°, n.° 1, 2, al. a), b), e) e f), e 4, do DL n.° 20-A/90, de 15 de Janeiro, e, actualmente, p. e p. pelos art. 103°, n.° 1, al. a), b) e c), e 104°, n.° 1, al. a), d) e e), e 2, do RGIT, e ainda um crime de associação criminosa, p. e p. pelo art. 299°, n.° 1, do CP, e, actualmente, p. e p. pelo art. 89°, n.° 1, do RGIT. Tais crimes são graves e os pressupostos que determinaram a prisão preventiva do arguido "A" mantêm-se inalterados, pois o volume da fraude é elevadíssimo, tendo a actividade ilícita do arguido, que não é primário, se prolongado durante pelo menos dois anos. Por outro lado, atento a forma organizada e concertada como o "A" e demais arguidos levaram por diante os factos supra descritos, continua a haver não só perigo de continuação da actividade criminosa, bem como perigo de perturbação do inquérito, uma vez que são várias as pessoas implicadas na fraude, algumas das quais continuam em liberdade. Na verdade, o arguido, que é empresário já há longos anos, conhece bem os meandros do negócio e tem os contactos necessários para prosseguir, concerteza de forma diversa, a sua actividade ilícita. Aliás, o facto de já ter sido condenado em pena de prisão cuja execução foi suspensa, não o impediu de cometer os aludidos crimes, facto que evidencia o perigo de continuação da sua actividade criminosa. Por outro lado, alento o alarme público e a repercussão que tais crimes têm na população em geral, que cada vez torna mais consciência da gravidade dos mesmos, existe também perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas. Nestes termos, determino que o arguido "A" continue a aguardar os ulteriores termos do processo em prisão preventiva. Notifique”.

Deste despacho interpôs o arguido "A" recurso, apresentando motivação com as seguintes “conclusões”:
1. Ao recorrente são imputados, em co-autoria, face ao teor de fls. 1241 e seguintes, um crime de fraude fiscal, p. e p. pelo artigo 23°, n° 1, 2, als. a), b) e c), 3, als. a), b) e) e f) e 4 do DL n° 20-A/90, de 15 de Janeiro e, actualmente, pelo artigo 103°, n° 1 als. a), b) e c) e 104°, n° 1, als. a), d) e e) e 2 da Lei 15/01, de 5 de Junho e um crime de associação criminosa, p. e p. pelo artigo 299°, n° 1 e 3 do CP e actualmente, p. e p. pelo artigo 89°, n° 1 e 3 da aludida Lei 15/01.
2. O crime de associação criminosa para a prática de crimes tributários, ao contrário do aí referido, nunca esteve previsto no artigo 299°, n° 1 e 3, do CP, mas, desde Agosto de 1990, no artigo 34° do RJIFA - e durante mais de 10 anos - e, desde Julho de 2001, no artigo 89° do RGIT.
3. Aliás, toda a gente conhece, por ter sido discutida até ao paroxismo, desde a vigência do DL 187/83 de 13 de Maio, a problemática da associação criminosa atinente a crimes tributários.
4. Fazendo a sinopse dos factos atribuídos ao recorrente e das normas a que são subsumíveis, resulta, sem qualquer discussão, o seguinte: os crimes imputados ao recorrente não são puníveis com pena de prisão de máximo superior a 8 anos; - os crimes imputados ao recorrente nenhum deles está previsto nas várias alíneas do n° 2 do artigo 215° do CPP.
5. Sendo assim, como é, o prazo máximo da prisão preventiva do recorrente até à acusação é de seis meses, já que não pode, por não existir fundamento legal, haver qualquer prorrogação do prazo previsto no n° 1 al. a) do artigo 215° do CPP.
6. Foi claramente uma opção do legislador, apesar da norma dos artigos 34° do RJIFA e 89° do RGIT serem próximas da do artigo 299° do CP, não fazer cair tais artigos sob a alçada do artigo 215°, n° 2 e 3 do CPP. E sabe-se, pela discussão pública da ocasião, o porquê.
7. É que no artigo 215°, n° 2 do CPP, ou estão crimes delimitados pela moldura penal - pena de prisão de máximo superior a 8 anos - ou crimes previstos em artigos concretos ou tipos de crime.
8. Não previu a lei, nessa parte, a associação criminosa in genere, mas só a prevista no do artigo 299° do CP.
9. E, sempre na primeira aula, o Prof. Cavaleiro Ferreira, explicava, repetindo, que a analogia em processo penal não tem aplicação.
10. A decisão recorrida violou o aludido artigo 215° do CPP, pelo que deve ser revogada, decidindo-se que os crimes imputados ao recorrente não permitem, por falta de fundamento legal, que a prisão preventiva tenha prazos máximos superiores aos previstos no artigo 215°, n° 1, do CPP.

Na sua resposta, o Ministério Público é de opinião que se deverá negar provimento ao recurso, fundamentalmente pelas seguintes razões: antes da entrada em vigor da Lei n° 15/01, o art° 299° do C.P. é aplicável nos casos em que sejam cometidas infracções fiscais; o crime de associação criminosa consta do elenco previsto no art° 215°, n° 2, al. a), do Código de Processo Penal; abrangendo, por isso, o crime de associação criminosa previsto no art° 89° do RGIT, pelo que, no caso em apreço, o prazo máximo de prisão preventiva é de um ano.

O recurso foi admitido por despacho de fls. 18, para subir imediatamente, em separado e com efeito devolutivo.

Nesta Relação, o Exmo Procurador-Geral Adjunto é de parecer que sempre que se verificar a prática do crime do artigo 89º do RJIT não deixa de se verificar, simultaneamente, a prática do crime do artigo 299º do Código Penal, afigurando-se-lhe que a expressa indicação da possibilidade de existência de associação criminosa para prática de crimes tributários levada a cabo pelo artigo 89º do RJIT, a qual, aliás, não espelhará uma correcta técnica legislativa, terá ficado, pura e simplesmente, a dever-se ao facto de os anteriores RJIFA e RJIFNA divergirem entre si quanto à expressa previsão relativamente à possibilidade de existência de associação criminosa com a finalidade da prática dos crimes que previam. E porque, nesta perspectiva, quem cometer o crime do artigo 89º do RGIT não deixa de cometer igualmente o crime do artigo 299º do Código Penal, o despacho impugnado deverá manter-se.

Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal. Colheram-se os “vistos” legais.


II.

A questão a decidir encontra-se em directa conexão com o disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 215º do Código de Processo Penal, com a seguinte redacção:

2. Os prazos referidos no número anterior são elevados, respectivamente, para oito meses, um ano, dois anos e trinta meses, em casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, ou quando se proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a oito anos, ou por crime: a) Previsto nos artigos 299.°; 312.°, n.° 1; 315.°, n.° 2; 318.°, n.° 1; 319.°; 326.°; 331.°; ou 333.°, n.° 1, do Código Penal; b) De furto de veículos ou de falsificação de documentos a eles respeitantes ou de elementos identificadores de veículos; c) De falsificação de moeda, títulos de crédito, valores selados, selos e equiparados ou da respectiva passagem; d) De burla, insolvência dolosa, administração danosa do sector público ou cooperativo, falsificação, corrupção, peculato ou de participação económica em negócio; e) De branqueamento de capitais, bens ou produtos provenientes de crime; f) De fraude na obtenção ou desvio de subsídio, subvenção ou crédito; g) Abrangido por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima. 3. Os prazos referidos no n.° 1 são elevados, respectivamente, para doze meses, dezasseis meses, três anos e quatro anos, quando o procedimento for por um dos crimes referidos no número anterior e se revelar de excepcional complexidade, devido, nomeadamente, ao número de arguidos ou de ofendidos ou ao carácter altamente organizado do crime”.

A Lei nº 43/86, de 26 de Setembro, que concedeu ao Governo autorização para aprovar um novo Código de Processo Penal, estabeleceu que se dispusesse sobre o tempo máximo de prisão preventiva, em função da gravidade do crime imputado, “salvaguardando-se adequadamente os casos de extraordinária complexidade processual em curso à data da entrada em vigor da lei”, o que permitiu, segundo Maia Gonçalves, Código de Processo Penal anotado e comentado, 12ª ed., p. 467, “que posteriormente a ela, fosse introduzido o nº 3, que deu maior maleabilidade e permitiu solução adequada para o caso dos chamados processos monstruosos”.

Em regra, não se permite que a prisão preventiva exceda seis meses sem que tenha sido deduzida acusação; dez meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória; dezoito meses sem que tenha havido condenação em primeira instância; dois anos sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado (artigo 215º, cit., nº 1).

O caso dos autos surge devido à recusa do arguido recorrente em assimilar ao crime do artigo 299º (associação criminosa) do Código Penal, incluído no elenco dos que autorizam um aditamento ao prazo do regime-regra para a prisão preventiva, o do nº 1 do artigo 89º do RJIT, introduzido pela Lei nº 15/01, de 5 de Junho, e segundo o qual “quem promover ou fundar grupo, organização ou associação cuja finalidade ou actividade seja dirigida à prática de crimes tributários é punido com pena de prisão de um a cinco anos (…)”. Mais precisamente, para o recorrente, o crime de associação criminosa para a prática de crimes tributários nunca esteve previsto no artigo 299°, n°s 1 e 3, do Código Penal, mas, desde Agosto de 1990, no artigo 34° do RJIFA - e durante mais de 10 anos - e, desde Julho de 2001, no artigo 89° do RGIT. O despacho recorrido, situando a importação de carros em que o recorrente indiciariamente se encontra implicado desde meados de 1999 até Dezembro de 2001, tem a actividade do mesmo como integrando, em co-autoria, a prática de um crime de fraude fiscal agravado, p. e p. pelos art. 23°, n.° 1, 2, al. a), b), e) e f), e 4, do DL n.° 20-A/90, de 15 de Janeiro, e, actualmente, p. e p. pelos art. 103°, n.° 1, al. a), b) e c), e 104°, n.° 1, al. a), d) e e), e 2, do RGIT, e ainda um crime de associação criminosa, p. e p. pelo art. 299°, n.° 1, do CP, e, actualmente, p. e p. pelo art. 89°, n.° 1, do RGIT.

O artigo 299º, nº. 1, do Código Penal, dispõe que “Quem promover ou fundar grupo, organização ou associação cuja finalidade ou actividade seja dirigida à prática de crimes é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos”. Diversamente do que consta do nº 1 do artigo 89º do RJIT, o escopo da associação criminosa “comum” é, na expressão do legislador, a prática de crimes. O Prof. Figueiredo Dias (no Conimbricense, tomo II, p. 1164, e já antes, em As “Associações Criminosas” no Código Penal Português de 1982, separata da RLJ, nºs 3751 a 3760) interrogava-se sobre se os “crimes” integrantes do escopo da associação criminosa são só os pertinentes ao direito penal chamado clássico, primário ou de justiça ou se pode tratar-se também de crimes pertencentes ao âmbito do direito penal secundário, nomeadamente do direito penal económico. E aludia a duas interpretações da lei penal, uma ampla, que é sem dúvida a adoptada no despacho recorrido e conta com a concordância do Ministério Público, outra de pendor restritivo. Para fundamentar a restrição, o Prof. Figueiredo Dias aludia ao facto de que, no direito penal administrativo, “existem muitas condutas que, se bem que não devam dizer-se axiologicamente neutras, todavia revelam uma carga valorativa tão diluída que as coloca numa relação de contiguidade material com as contra-ordenações”, de modo que “continua, em nosso juízo absolutamente válida (como de resto o revela a degradação que tantos destes “crimes” têm sofrido em contra-ordenações, por exemplo em matéria de direito penal cambial, de direito penal aduaneiro, etc.)”. Considera, por outro lado, dever “reconhecer-se que muito do que foi e ainda é direito penal extravagante, nomeadamente direito penal económico, ganhou já uma ressonância ética de tal modo profunda e estabilizada que não se vê hoje razão para que não deva integrar o escopo criminoso da associação”.

No artigo 263º do Código Penal Português de 1852 (cf. Silva Ferrão, Theoria do Direito Penal, volume VI) exigia-se que a “associação de malfeitores” fosse “formada para atacar as pessoas ou as propriedades”. A respectiva estrutura manteve-se no essencial no artigo 263º do Código Penal de 1886 (cf. Maia Gonçalves, Código Penal Português, 3ª ed., 1977, p. 455), “assinalando as inovações unicamente, a seu modo, a trajectória de adaptação das instituições jurídico-penais portuguesas a uma fenomenologia ou realidade criminal em mutação”. O tipo legal de associação de malfeitores passou, então, a ser integrado no escopo da organização, por quaisquer crimes; mas, em todo o caso, só por crimes dentre os inscritos no Código Penal e pertinentes ao que hoje se chama o direito penal “clássico”, “primário” ou “de justiça”, e de maneira alguma dentre os que integram o direito penal “económico-social”, “secundário” ou “administrativo” (cf. Figueiredo Dias, AsAssociações Criminosas”, p. 19), e a situação não se modificou substancialmente nem com o projecto do Prof. Eduardo Correia nem com o projecto da parte especial de 1979. Dos trabalhos preparatórios, a respeito do artigo 287º do Código Penal de 1982, retém-se a afirmação de que “neste artigo estão tão só abrangidas as associações de malfeitores para a prática de crimes comuns – cfr. Actas das Sessões, Parte especial, 1979, p. 334. E o Prof. Figueiredo Dias não deixa de sublinhar que em relação a esta disposição “a manutenção no Código vigente (o Código Penal de 1982) de uma formulação substancialmente equivalente, bem como a ausência de quaisquer indícios de uma vontade de inovar neste campo, não podem deixar de valer como prova de uma intenção de não alargar a matéria proibida, pela via da sua extensão ao direito penal secundário” (cf. As “Associações Criminosas”, p. 45).

No acórdão da Relação do Porto de 29 de Maio de 2002, no processo nº 1329/01 - 4ª secção (relator: Desembargador Teixeira Pinto), cujo texto integral nos foi facultado, sublinhando os indicados pontos, pergunta-se, a propósito, se o artigo 299º do Código Penal revisto, resultante da revisão introduzida pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, corresponde ao artigo 287º da versão originária do Código de 1982, e conclui-se que nele não se notam alterações significativas relativamente àquela versão originária, e que essa é a leitura permitida pelas Actas e Projecto da Comissão de Revisão, Ministério da Justiça, 1993, Editora Rei dos Livros, p. 373 a 375 e 526 (Sessões 33ª e 50ª da CRCP, de 18/6/90 e de 8/1/91). Daí que, repudiando a perspectiva ampla, se tenha encaminhado no sentido de que “o escopo do tipo objectivo do ilícito de associação criminosa não pode ser preenchido (na perspectiva do legislador do Código Penal vigente) por crimes fiscais, designadamente pelo crime de fraude fiscal”. E acrescenta: mas “se dúvidas subsistissem acerca da amplitude incriminatória do artigo 299º do Código Penal actual, as mesmas ficariam desfeitas com a mais recente evolução legislativa que aponta no sentido daquela interpretação restritiva. Por um lado, “o Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras (adiante designado por RJIFNA), aprovado pelo Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, e alterado pelos Decreto-Lei nº 394/93, de 24 de Novembro, e Decreto-Lei nº 140/95, de 14 de Junho, não previa no seu articulado o tipo de ilícito da associação criminosa. Dir-se-á que tal seria desnecessário por a respectiva conduta integrar já o crime previsto no Código Penal. Todavia, esta objecção não procede pois, se assim fosse, não cobraria sentido a inovação introduzida pelo novo Regime Geral das Infracções Tributárias (adiante designado por RGIT) aprovado pela Lei nº. 15/2001, de 5 de Junho, o qual revogou o RJIFNA, excepto o seu artigo 58º (artigo 2º, alínea b). Com efeito, o RGIT incrimina hoje a associação criminosa no domínio específico das infracções criminais tributárias – artigo 89º. Ora, se tal incriminação já estivesse contida na previsão do artigo 299º do Código Penal (interpretação ampla) então não se compreenderia que o legislador sentisse necessidade de incluir no RGIT idêntica incriminação. Objectar-se-á que o legislador terá querido somente autonomizar a incriminação do Código Penal dadas as especificidades próprias das infracções tributárias. Todavia, a argumentação não procede. Note-se que a formulação literal dos nºs 1, 2, 3 e 4 do artigo 89º do RGIT é em tudo idêntica à formulação dos nºs 1, 2, 3 e 4 do artigo 299º do Código Penal. Apenas a expressão “cuja finalidade ou actividade seja dirigida à prática de crimes” contida no n.º 1 do artigo 299º do Código Penal foi substituída no n.º 1 do artigo 89º do RGIT por “cuja finalidade ou actividade seja dirigida à prática de crimes tributários”. Por outro lado, a moldura penal prevista para os diversos tipos de participação no crime de associação criminosa é absolutamente igual no Código Penal e no RGIT”.

Também para nós a conclusão só poderá ser a de que antes da entrada em vigor da Lei nº 15/01, de 5 de Junho, a associação criminosa prevista no artigo 299º do Código Penal não abrangia as infracções tributárias, passando a ser punidas nos termos do respectivo artigo 89º com a entrada em vigor do RGIT, a partir de 6 de Junho de 2001. Por conseguinte, não se podendo identificar a actividade do recorrente com a prática de qualquer dos crimes elencados no nº 2 do artigo 215º do Código de Processo Penal, também o prazo máximo de prisão preventiva não poderá exceder o estabelecido como regra no respectivo nº 1.

Note-se que não obstante a fraude fiscal, que é o crime em que assenta em primeira linha a indiciação respeitante ao recorrente, ter adquirido uma evidente ressonância ética (a justificar o escopo criminoso da associação) semelhante ao que se passa com a fraude ou o desvio de subvenções, o legislador não a incluiu ao lado nem deste crime nem do branqueamento de capitais, que justificam no nº 2 do artigo 215º o aditamento do prazo de prisão preventiva, não obstante nenhum deles integrar um ilícito constante do Código Penal. Já agora, em reforço das razões que ficaram expostas, observar-se-á que o Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, prevê também a punição, no respectivo artigo 28º, das associações criminosas, mas não deixa de organizar, no artigo 51º, para efeitos do disposto no Código de Processo Penal, a equiparação aos casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, igualmente incluídos no nº 2 daquele artigo 215º, das condutas que integram os crimes dos artigos 21º a 24º (tráfico e outros), e as próprias associações criminosas do artigo 28º —o que não tem correspondência na estrutura do RJIT. Daí que não nos pareça acertada a convicção do Ex.mo Procurador-Geral Adjunto de que, mesmo para o desencadear do alargamento do prazo normal da prisão preventiva, a prática do crime do artigo 89º do RJIT equivalerá à do crime do artigo 299º do Código Penal, ainda que se deva reconhecer a relação de especialidade que entre as duas normas intercede: a do artigo 89º do RGIT, como lex specialis, contém todos os pressupostos típicos da outra, a lex generalis, e para além destes mais uma característica específica que a especializa.

Em conclusão: ainda que o recorrente tenha a sua responsabilidade indiciada por referência aos crimes de fraude fiscal e de associação criminosa, este do artigo 89º, nº 1, do Regime Geral para as Infracções Tributárias, por nenhum deles constar do elenco dos que no nº 2 do artigo 215º do Código de Processo Penal justificam a elevação dos prazos da prisão preventiva e por aí a declaração de excepcional complexidade do procedimento, tal como se decidiu no despacho impugnado, este não poderá manter-se.

Nestes termos, acordam em conceder provimento ao recurso do arguido "A", revogando-se o despacho recorrido, para subsistir a interpretação agora seguida.

Não é devida tributação.

Uma vez que o recorrente se encontra detido, sem que destes autos constem as circunstâncias em que o foi, para que em 1ª instância se possam tomar as providências que eventualmente o caso requeira, comunique-se desde já o teor do agora decidido.

Guimarães, 17 de Março de 2003