Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
280/14.4TBPVL-E.G1
Relator: JOÃO PERES COELHO
Descritores: QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA CULPOSA
FACTOS ÍNDICE
ARTIGO 186
Nº 2
ALS. A) E D)
DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
NEGOCIO SIMULADO
NEGÓCIO PREJUDICIAL AO DEVEDOR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/01/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – Os números 2 e 3 do artigo 186º do CIRE contemplam situações de presunção de insolvência culposa, inilidíveis no primeiro e ilidíveis no segundo.
II – A ocultação a que se refere a alínea a) do n.º 2 desse normativo pode consistir numa transmissão aparente dos bens, mediante negócio simulado, permanecendo os mesmos na disponibilidade do devedor.
III – Já o proveito a que se refere a alínea d) do mesmo número pressupõe a existência de um negócio válido, mas prejudicial ao devedor, como sucederá se os bens forem transmitidos a título gratuito ou mediante uma contrapartida pecuniária inferior ao seu valor real.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO:

Inconformados com a sentença que qualificou como culposa a insolvência de “AA” e os considerou afectados por essa qualificação, BB E CC interpuseram recurso, em cuja alegação formularam as seguintes conclusões:
A) A sentença recorrida qualificou a insolvência como culposa, por entender que se encontravam verificadas as circunstâncias previstas nas alíneas a) e d) do artigo 186º, n.º 2 do CIRE;
B) Mais entendeu que se encontrava preenchida a circunstância, esta sim ilidível, prevista no n° 3 do citado artigo, por violação do dever de apresentação à insolvência;
C) A sentença recorrida enferma de vários vícios, porque julgou incorrectamente factos que deu como provados, porque sedimentou como se fossem factos meras conclusões, e porque fez incorrecta aplicação e interpretação da matéria de direito, por vezes em total contradição com matéria dada como provada;
D) Nos termos do disposto no artigo 640º, n.º 1, alínea a) do C.P.C., entendemos que o Tribunal errou ao dar como provado que "o passivo da insolvente ascende a cerca de 500.000,OO€";
E) Tal julgamento ofende a decisão já transitada em julgado, proferida no apenso D, composto de reclamação de créditos, que considerou reconhecidos créditos no valor de 286.319,73€ (capital em singelo em dívida);
F) Naquele apenso não se reconheceu ainda créditos subordinados titulados por pessoas com relações privilegiadas com a insolvente, a saber, os oponentes, o sócio Armando Marques, a ex-sócia Mário Ferreira SGPS e o representante desta, Mário Ferreira;
G) A resposta a este facto não pode ser dissociada da decisão proferida em sede de reclamação de créditos, sendo que o valor do passivo não pode, nem deve exceder o valor inscrito no apenso D, sob pena de se violar o previsto no artigo 620º do C.P.C. quanto aos efeitos do caso julgado no processo;
H) A resposta a este facto deveria dar como provado que "O passivo da insolvente ascende a 286.319,73€";
I) Figura ainda incorrectamente como facto provado que "Os gerentes quiseram dissipar a totalidade do património da empresa insolvente";
J) O tribunal deu como provado não um acontecimento da vida real, mas uma conclusão, desgarrada de qualquer outro facto;
K) Demitiu-se o Tribunal de concretizar os negócios ou actos de disposição a que alude, de os situar no tempo (para efeitos de preenchimento do n° 1 do artigo 186º), de os qualificar quanto ao preço ou de aferir da prejudicialidade para a devedora;
L) Esta conclusão resulta de um salto lógico inadmissível e de dedução a partir de outro facto provado, esse sim, inócuo, para a boa decisão da causa, por se situar num espaço temporal de mais do que 3 anos do início do processo de insolvência (a saber, a data da cessão de posição contratual no âmbito do contrato de locação financeira imobiliária);
M) Assim sendo, deve esta conclusão ser considerada não escrita;
Da errada interpretação e aplicação do Art. 186º, n.º 2, alíneas a) e d), e nº 3:
N) Ao longo da fundamentação, a sentença recorrida alude inúmeras vezes à "ocultação" de bens, como sendo vendas a favor de terceiros;
O) Contudo, essas "ocultações" não resultam de desaparecimento de bens, nem sequer resultam identificadas na matéria de factos provados;
P) Em primeiro lugar, dir-se-á que o Tribunal não pode dispensar o preenchimento do previsto no artigo 186º, n.º 1 do CIRE. Ou seja, necessário se torna que a cessão de posição contratual ou os eventuais actos de ocultação tenham ocorrido dentro do prazo de 3 anos anteriores ao do início do processo de insolvência;
Q) No caso dos autos, a cessão da posição contratual (note-se único facto temporalmente identificado) data de 27 de Janeiro de 2011, ao passo que o processo se terá iniciado em Agosto de 2014;
R) Este facto é por isso inócuo para efeitos da aplicação do artigo 186º, n.º 2;
S) Suportado no Acórdão proferido pelo TRP em 7/12/2016, no processo n.º 262/15.9 T9AMT, publicado em www.dgsi.pl., extrai-se o sumário de onde se conclui que "a alínea a) do n.º 2 do artigo 186º do CIRE exige que os bens objecto de ... ocultação sejam todo ou parte considerável do património do devedor";
T) Mais se concluiu no mesmo aresto que "embora a alínea d) do n.º 2 do artigo 186º do CIRE não faça menção à importância económica dos bens que o administrador dispôs, ... , se não estiver demonstrado que os bens tinham algum relevo económico a insolvência não deve ser qualificada como culposa";
U) Ora, na sentença em crise, já vimos que o Tribunal não avaliou ou fez qualquer menção ao valor económico dos bens, objecto de "ocultação", não identificou os actos de disposição, não os situou no tempo, nem retirou qualquer consequência do facto de nestes autos se ter apreendido e liquidado património da insolvente;
V) É certo, e aliás a defesa dos oponentes ia nesse sentido, que a insolvente vendeu, sublinhe-se, vendeu, parte do seu activo, julgado obsoleto, a terceiros, mormente à DD;
W) Contudo, e conforme resulta dos factos provados, foram estes factos que permitiram amortizar o passivo de 720.000,00€ até aos já referidos 286.319,73€;
X) O comportamento dos oponentes apenas merece censura se acaso resultar provado que o activo vendido tinha valor de mercado superior ao montante da diminuição do passivo operado nos 3 exercícios que se seguiram, ou seja até 2014;
Y) Aliás, qualquer decisão, como a que se censura através do presente recurso, resulta em manifesta contradição com a matéria provada, que evidenciou as boas práticas dos oponentes, resulta de manifesta oposição;
Z) Importam decisão totalmente diversa os seguintes factos provados, a saber:
- Através dos balanços referentes aos anos de 2011 a 2013 é possível verificar que o passivo da sociedade foi sempre reduzindo, passando de cerca de 720 mil euros em 2011 para perto de 500 mil em 2014 (ou 286.319,73€, atenta a 1ª parte do recurso);
- Só na rúbrica de fornecedores diminuiu passivo em mais de 250.000,00€;
- Os pagamentos foram sendo possíveis através da venda de activos;
- Os sócios entenderam que o modelo de negócio, meios de produção da insolvente estavam obsoletos e que deveriam submeter candidatura para projecto de investimento a apresentar ao lAPMEI;
- E concluíram que apenas podiam cumprir as regras do caderno de encargos através da constituição de uma nova empresa, daí a constituição da DD;
AA) E, mesmo que se queira lançar mão da circunstância prevista na alínea d) do já citado artigo, sempre se deveria entender que disposição a favor de terceiros são transferências a título gratuito ou por preço inferior e desconforme com o seu valor real", que resultam numa vantagem ilegítima para o seu destinatário (vide Acórdão proferido pelo TRG em 02/02/2017 no processo n° 686611 5.2t8VNF-A, a que se acedeu através do sítio www.dgsi.pt);
BB) No caso dos autos, não se encontra demonstrado prejuízo para a insolvente, ou o preço ou condições das transmissões, data destas transmissões (que importam para aferir do preenchimento do n.º 1 do artigo 186º) ou mesmo o valor de mercado de cada um dos bens que compunham o activo da insolvente;
CC) Dos factos provados resulta, outrossim, que a estratégia da gerência permitiu amortizar de sobremaneira a dívida aos seus credores comuns, à custa da vendas efectuadas e das injecções de capital dos sócios;
DD) Por fim, andou mal Tribunal ao prescindir da verificação do nexo causal, para lançar mão da circunstância prevista no n.º 3 do artigo 186º do CIRE;
EE) É certo que em 2011 a insolvente apresenta passivo de 720.000,00€;
FF) Contudo, evidenciam os autos que, 3 anos volvidos, amortizou e muito o seu passivo, que culminou em créditos reclamados de 286.319,73€.
GG) Não se demonstra, bem pelo contrário, que pelo facto da gerência não se ter apresentado à insolvência em 2011 tenha dificultado ou incrementado a sua situação de insolvência.
Terminam, pedindo a revogação da sentença recorrida, substituindo-se a mesma por outra que qualifique a insolvência como fortuita.
O Ministério Público contra-alegou, pugnando pela confirmação do julgado.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO:
Como é sabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objecto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do NCPC).
No caso vertente, as questões a decidir que ressaltam das conclusões recursórias são as seguintes:
- se existe erro de julgamento relativamente a um ponto da matéria de facto provada, porquanto o passivo da insolvente não ascende a cerca de €500.000,00, mas apenas a €286.319,73, e bem assim se foi indevidamente incluído no elenco dos factos provados, por consubstanciar uma mera conclusão, que os gerentes da insolvente quiseram dissipar a totalidade do seu património;
- se foi erroneamente interpretado e aplicado o disposto no artigo 186º, números 2, alíneas a) e d), e 3, alínea a), do CIRE.
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III. FUNDAMENTAÇÃO:
Os factos
Na primeira instância foi considerada provada a seguinte factualidade:
• A sociedade comercial AA tinha como objecto social a indústria, comércio, importação, exportação e representação de materiais para a construção civil, nomeadamente pré-esforçados, industria de construção civil e empreitadas de obras públicas, designadamente construção de pavilhões industriais;
• O seu capital social de €240.000,00 era repartido em 5 quotas, todas no valor nominal de €48.000,00, pertencentes a Silva, Silva, Lopes, Marques e EE;
• A gerência era exercida por Silva e Lopes;
• Os requerentes da insolvência António e Agostinho haviam sido admitidos ao serviço da insolvente, respectivamente em 2.1988 e 7.1991;
• Os requerentes suspenderam os contratos de trabalho por falta de subsídio de férias de 2009 e retribuição referente ao mês de Outubro, Novembro e alguns dias do mês de Dezembro de 2010;
• Apesar de interpelada a insolvente não procedeu ao pagamento dos montantes;
• O passivo da insolvente ascende a cerca de €500.000,00;
• A insolvente apresenta dívidas que remontam ao ano de 2010;
• No mesmo local e instalações da insolvente laborava uma empresa denominada DD, cujo objecto social é o mesmo da empresa insolvente;
• Existe ainda parcial identidade entre os sócios e gerentes de ambas as empresas, nomeadamente Silva e Lopes;
• A sociedade DD, foi constituída em inícios de 2010;
• Em 12 de Março de 2010 a insolvente celebrou com o Banco Comercial Português, SA, contrato de locação financeira imobiliária referente ao imóvel onde exercia actividade;
• Em 27 de Janeiro de 2011, a insolvente, na qualidade de locatária, celebrou com a DD contrato de cessão da posição;
• O Administrador Judicial da insolvente procedeu à apreensão dos bens móveis identificados sob as verbas 1 a 46 do auto de apreensão;
• A DD intentou acção de separação de bens que correu sob o apenso C, arrogando-se proprietária da totalidade dos bens, com excepção das verbas n.º 44 e 46;
• Da sentença proferida no apenso C, transitada em julgado resultou provado que:
• Os senhores Administradores Judiciais conseguiram chegar a acordo sobre a propriedade de determinadas verbas, tendo reduzido a discussão em causa, aos bens descritos a fls. 415, nomeadamente:
Verba 12 - 1 ponte móvel rolante de marca Euroberco 1,5T;
Verba 20 - Uma central de betão com 2 silos de cor azul e 2 tapetes rolantes de transportes dos inertes;
Verba 30 - Um empilhador da marca Maqfort com 75 horas de 3T;
Verba 34 - Um empilhador da marca Maqfort com 1266 horas, modelo MQ 50D de 5T;
Verba 35 - Duas pontes móveis, uma de 10T e outra de 3 T;
• A Insolvente “AA” apenas mantém no imóvel melhor descrito na anterior cláusula 2ª a sua sede social, não exercendo aí qualquer actividade há anos;
• Tal situação acontece, porquanto até ao passado dia 5 de Agosto de 2014, dois dos sócios da ora Insolvente, Senhores Lopes e Silva, detinham a totalidade do capital social da ora Autora;
• O que, na presente data, já não acontece, pois por contrato de cessão de quotas celebrado em 5 de Agosto de 2014 e registado em Setembro do mesmo ano, foram as duas quotas que titulavam a totalidade do capital social da ora Autora, cedidas, sendo, desde essa data, titulado por duas quotas, uma pertencente ao sócio Bragança e outra ao sócio Reis;
• A Autora, recebeu no dia 22 de Janeiro de 2015, uma notificação do Senhor Administrador de Insolvência, informando-a da apreensão desses mesmos bens a favor da massa falida da “AA”, designadamente do auto de apreensão datado de 24 de Novembro de 2014 e respectiva adenda datada de 14 de Janeiro de 2015 e notificando-a para, caso não concordasse com tal apreensão, requerer a separação e restituição dos mesmos;
• Na sua maioria, tais bens constam dos investimentos objecto do contrato celebrado entre a ora Autora e o IAPMEI de concessão de incentivos Financeiros no âmbito do Sistema de Incentivos à Inovação, com o n.º 2010/13260;
• Aquando da elaboração do auto de apreensão, levado a cabo pelo Sr. Administrador, o perito avaliador nomeado, deslocou-se ao local da sede da empresa e lá encontrou os bens constantes do auto de apreensão;
• Bens, que a insolvente sempre usou no desenvolvimento da sua actividade;
• Na contabilidade da insolvente não se conseguem percepcionar de forma clara os valores respeitantes às alegadas vendas feitas pela insolvente à A.
• Nem tão pouco o Sr. Administrador apreendeu qualquer quantia monetária respeitante a tais vendas.
• A verba 12 - 1 ponte móvel rolante de marca Euroberco 1,5T pertence à Ré;
• A verba 20 - Uma central de betão com 2 silos de cor azul e 2 tapetes rolantes de transportes dos inertes, pertence à Autora;
• A verba 21 - Uma máquina de fazer tubos de betão, diversas formas de diâmetro variado, 1 carrinho de transporte de tubos, moldes dos tubos, pertence à Ré;
• A verba 30 - Um empilhador da marca Maqfort com 75 horas de 3T, pertence à Ré;
• Verba 34 - Um empilhador da marca Maqfort com 1266 horas, modelo MQ 50D de 5T, pertence à Ré;
• Verba 35 - Duas pontes móveis, uma de 10T e outra de 3 T, pertence à Ré
• E nessa sentença proferiu-se decisão nos seguintes termos:
Nestes termos julga-se a acção parcialmente procedente, reconhecendo como da Autora todos os bens alvo de acordo entre os senhores Administradores Judiciais e comunicado aos autos através de listagem, sendo igualmente reconhecido à Autora a propriedade da Central de Betão, verba 20, porquanto os melhoramentos realizados na mesma, ultrapassaram significativamente o valor do bem existente;
• Os gerentes Silva e Lopes quiseram dissipar a totalidade do património da empresa insolvente;
• Os gerentes sempre prestaram todas as informações e colaboração ao senhor Administrador;
• Através dos balanços referentes aos anos de 2011 a 2013 é possível verificar que o passivo da sociedade foi sempre reduzindo, passando de cerca de 720 mil euros em 2011 para perto dos 500 mil em 2014;
• Só na rubrica a fornecedores diminuiu passivos em mais de €250.000,00;
• Os pagamentos foram sendo possíveis através da venda de activos;
• Os sócios da insolvente entenderam que o modelo de negócio, meios de produção da insolvente estavam obsoletos e que deveriam submeter candidatura para projecto de investimento a apresentar ao IAPMEI;
• E concluíram que apenas podiam cumprir as regras do caderno de encargos, através da constituição de uma nova empresa, daí a constituição da Pré-Ave II- Pré Fabricados Lda;
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O direito
Sustentam os recorrentes que houve erro na apreciação da prova relativamente a um ponto da matéria de facto dada como provada, porquanto, em seu entender, se devia ter dado como provado que o passivo da insolvente ascende apenas a €286.319,73 e não a cerca de €500.000,00, e bem assim que foi indevidamente incluído naquele elenco, por consubstanciar uma mera conclusão, que os gerentes da insolvente quiseram dissipar a totalidade do seu património.
Vejamos.
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto é admitida pelo artigo 640º, n.º 1, segundo o qual o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios de prova, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essas questões de facto.
Por sua vez, estatui o n.º 1 do artigo 662º que “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Incumbe à Relação, como se pode ler no acórdão deste Tribunal de 7.4.2016, disponível, à semelhança dos demais citados no texto deste acórdão, em www.dgsi.pt, “enquanto tribunal de segunda instância, reapreciar, não só se a convicção do tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova e os outros elementos constantes dos autos revelam, mas também avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objecto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento na matéria de facto”.
Apesar disso, não se pode olvidar que o juiz da 1ª instância, perante o qual a prova é produzida, está em posição privilegiada para a avaliar, surpreendendo no comportamento das testemunhas elementos relevantes para aferir da espontaneidade e credibilidade dos depoimentos que frequentemente não transparecem da gravação.
No caso vertente, os recorrentes cumpriram satisfatoriamente o ónus de impugnação da matéria de facto, fundamentando a sua discordância quanto à decisão do único ponto de facto impugnado no teor da sentença proferida no apenso de reclamação de créditos.
Pois bem.
Na motivação da decisão de facto não se justificou porque se deu como provado que o passivo da insolvente ascendia a cerca de €500.000,00.
Podia, portanto, equacionar-se a devolução dos autos à 1ª instância, a fim de a Senhora Juiz a quo fundamentar a sua decisão sobre o referido facto, de harmonia com o disposto no artigo 662º, n.º 2, alínea d), do NCPC.
Todavia, os próprios recorrentes admitem que, para além dos créditos reconhecidos, no montante de €286,319,73, mostrava-se relevado na contabilidade da insolvente um passivo adicional de cerca de €150.000,00, relativo a créditos subordinados, pelo que o seu passivo global ascendia a cerca de €500.000,00.
Depreendendo-se que tenha sido esse o raciocínio subjacente à fixação do mencionado facto, sempre diremos que, como adiante se explicitará, a alteração propugnada (circunscrita à menção de que os créditos subordinados não foram reconhecidos) mostra-se inócua para a economia da decisão, pelo que nos abstemos de dela conhecer.
Insurgem-se ainda os recorrentes contra a inclusão no elenco dos factos provados dum item que consideram conter uma mera conclusão.
Esse item, inserido após a reprodução dos factos dados como provados e da decisão proferida na acção de separação de bens que constitui o apenso C, reza que “Os gerentes (…) quiseram dissipar a totalidade do património da empresa insolvente”.
Será isto admissível?
Pensamos que não.
A fórmula utilizada é eminentemente genérica e conclusiva.
Ora, temos por líquido que a matéria de facto só deve integrar factos concretos e não formulações genéricas, de direito ou conclusivas, mormente quando, como é o caso, preencham, só por si, a hipótese legal, dispensando qualquer subsunção jurídica ou, dito de outro modo, traduzam “uma afirmação ou uma valoração de facto que se insira na análise das questões jurídicas que definem o objeto da ação, comportando uma resposta ou componente de resposta àquelas questões” (acórdão do STJ de 14.5.2015).
Acresce que na sobredita acção se homologou o acordo efectuado pelas partes relativamente à maioria dos bens apreendidos (nos termos do qual o administrador da insolvência reconheceu que os mesmos pertenciam à autora) e se deu como provado que, dos descritos nas cinco verbas sobre as quais não houve acordo, um pertencia igualmente à autora e os restantes à ré.
É certo que, de forma algo contraditória e tecnicamente discutível, se deu como provado que na contabilidade da insolvente não se conseguiam percepcionar “de forma clara os valores respeitantes às alegadas vendas feitas (…)” à autora.
Apesar disso, tendo-se concluído que parte, aliás substancial, dos bens apreendidos pertencia à autora, é incontornável que existiu algum negócio, formal e substancialmente válido, por virtude do qual os mesmos transitaram da esfera jurídica da insolvente para a daquela.
Mais. Infere-se da decisão sob censura, globalmente considerada, que a transferência da propriedade dos bens se operou por força de contratos de compra e venda.
Sendo assim, não se compreende a conclusão impugnada, que, como tal, se elimina do elenco dos factos provados.
Aqui chegados, importa agora apreciar a questão de direito.
Considerou-se na decisão recorrida que os recorrentes ocultaram património da devedora, dispuseram dos bens desta em proveito de terceiro e incumpriram o dever de apresentação à insolvência, o que integra as presunções de culpa previstas no artigo 186º, números 2, alíneas a) e d), e 3, alínea a), do CIRE.
Sob a epígrafe “Insolvência culposa”, dispõe esse normativo:
1 - A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
(…)
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
(…)
3 - Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
(…)
4 - O disposto nos números 2 e 3 é aplicável, com as necessárias adaptações, à actuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade das situações”.
Como observam Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões, em “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2013, página 508, o referido preceito, além da “cláusula geral e aberta” contida no n.º 1, prevê, nos dois números seguintes, situações de presunção de insolvência culposa, no primeiro inilidíveis e no segundo ilidíveis.
Importa ainda salientar que, na esteira do que tem vindo a ser repetidamente afirmado em diversos acórdãos desta Relação (vide acórdãos de 24.4.2012, 1.10.2013 e 30.4.2015), perfilhamos o entendimento de que, enquanto nas situações elencadas no n.º 2 se presume, não só a culpa, mas também o nexo causal entre o comportamento do devedor ou dos seus administradores e a criação ou agravamento do estado de insolvência, nas situações previstas no n.º 3 consagra-se uma mera presunção de culpa grave, ilidível, pelo que se exige ainda a demonstração daquele nexo de causalidade.
Como lapidarmente se explicou no segundo aresto indicado, relatado por Maria da Purificação Carvalho, “(…) a simples ocorrência de alguma das situações elencadas nas diversas alíneas do n.º 2 do sobredito art. 186º conduz inexoravelmente à atribuição de carácter culposo à insolvência, ou seja, à qualificação de insolvência como culposa”, acrescentando que “o legislador fê-lo porque a indagação do carácter doloso ou gravemente negligente da conduta do devedor, ou dos seus administradores, e da relação de causalidade entre essa conduta e o facto da insolvência ou do seu agravamento, de que depende a qualificação da insolvência como culposa, revela-se muitas vezes extraordinariamente difícil. Fê-lo para facilitar essa qualificação mas concretizou-o a partir de factos graves e de situações que exigem uma ponderação casuística, temporalmente balizadas pelo período correspondente aos três anos anteriores à entrada em juízo do processo de insolvência.
Ali, a lei não presume apenas a existência de culpa, mas também a existência da causalidade entre a actuação e a criação ou o agravamento do estado de insolvência.
Já as situações do n.º 3 do mesmo artigo acarretam, por sua vez, uma presunção “juris tantum” de culpa grave, passível, por conseguinte, de ser arredada mediante prova em contrário”.
Retornemos ao caso vertente.
Na decisão recorrida consideraram-se preenchidos os comportamentos presuntivamente culposos previstos nas alíneas a) e d) do n.º 2 do normativo transcrito, porquanto os recorrentes teriam ocultado bens da insolvente, transferindo-os para a esfera jurídica da nova sociedade que entretanto constituíram com o mesmo objecto social, e teriam disposto desses bens em proveito desta.
Com o devido respeito, pensamos que os factos dados como provados não autorizam nenhum desses enquadramentos.
Explicitando.
Subjaz ao primeiro a ideia de que o(s) negócio(s) por via do(s) qual(is) os bens transitaram da esfera jurídica da insolvente para a da nova sociedade foi(ram) simulado(s).
Isto é, a ocultação ter-se-ia concretizado mediante uma transmissão dos bens meramente aparente, dificultando o seu acionamento por parte dos credores.
Por isso se argumentou que “na contabilidade da insolvente não se conseguem percepcionar de forma clara os valores respeitantes às alegadas vendas feitas pela insolvente (…)” (sublinhado nosso) e que o administrador não apreendeu “qualquer quantia monetária” referente a essas vendas.
Em rigor, porém, não se deram como provados os factos integradores desse putativo vício, gerador da nulidade do negócio.
Pelo contrário. A procedência quase integral da acção de separação de bens intentada contra a massa insolvente da devedora, envolvendo o reconhecimento de que os bens apreendidos pertenciam à autora, pressupõe que esta os adquirira validamente.
Vale isto por dizer que não houve ocultação na referida acepção, mas antes uma verdadeira transmissão dos bens.
Aceita-se, seguindo a lição do Professor Alberto dos Reis (1), que a ocultação compreende também os casos em que o devedor vende os bens e faz desaparecer o produto da venda.
Contudo, muito embora se tenha dado como provado que o administrador da insolvência não apreendeu qualquer quantia monetária referente às vendas alegadamente feitas, ficou igualmente demonstrado que, entre 2011 e 2014, a insolvente, já então inactiva, amortizou mais de €250.000,00 ao seu passivo, o que apenas foi possível “através da venda de activos”.
Pergunta-se:
Que “activos” eram esses?
Não seriam, precisamente, aqueles que foram transmitidos a favor da Pré-Ave II?
Tudo aponta nesse sentido.
Importa ainda salientar que se ignora(m) a(s) data(s) concreta(s) em que ocorreu(ram) o(s) pretenso(s) acto(s) de ocultação de bens, nomeadamente se ocorreu(ram) nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência (2), e a importância dos bens por ele(s) abrangido(s) no contexto do património da devedora, designadamente se os mesmos constituíam todo ou parte considerável deste.
Por sua vez, o segundo pressupõe que os gerentes, dispondo efectivamente dos bens, o façam em proveito pessoal ou de terceiro, ou seja, sem qualquer contrapartida ou mediante uma contrapartida inferior à devida, beneficiando o adquirente e prejudicando o devedor.
Prevê-se nessa alínea, como bem referem os recorrentes, louvando-se no acórdão desta Relação de 2.2.2017, relatado por Isabel Silva, as situações em que os bens são transferidos a “título gratuito ou por preço inferior e desconforme com o seu valor real”.
No mesmo sentido, pode ler-se no sumário do acórdão da Relação do Porto de 24.11.2015, relatado por Rui Moreira, que “É subsumível à al. d) do nº 2 do art. 186º do CIRE a actuação de um devedor que aliena o seu património pessoal em favor do seu ex-cônjuge, numa partilha por divórcio, sem benefícios proporcionais ou contrapartidas, esvaziando-o de tal forma que, quando chamado a responder por tais obrigações, nada tem que propicie a sua satisfação” (sublinhado nosso).
Ora, no caso em apreço, repete-se, não se deu(ram) como provado(s) o(s) concreto(s) negócio(s) por via do(s) qual(is) os equipamentos da insolvente transitaram para a esfera jurídica da DD.
Mais. Inferindo-se que foram vendidos, não se apurou o seu valor real, nem a(s) contrapartida(s) pecuniária(s) inerente(s) à sua transmissão, elementos esses que eram indispensáveis para que se pudesse concluir pela existência de um efectivo proveito para a sua adquirente.
Valendo-nos, mais uma vez, da jurisprudência desta Relação, lembramos que, como se decidiu no acórdão de 09.02.2012, relatado por Rita Romeira, “Sem se ter apurado o valor dos bens não é possível determinar (…) o proveito de terceiros (…), nos termos exigidos na al. d) (…)”.
Em suma, entendemos que não se mostram preenchidas as alíneas a) e d) do n.º 2 do artigo 186º do CIRE.
Resta apreciar o incumprimento do dever de apresentação à insolvência.
Impunha-se, neste conspecto, demonstrar o nexo de causalidade entre essa conduta omissiva e a situação de insolvência, consistente na sua contribuição para a criação ou agravamento da situação de insolvência.
Essa prova não foi feita.
É certo que, em 27 de Janeiro de 2011, a devedora cedeu à DD a sua posição no contrato de locação financeira imobiliária ao abrigo do qual lhe fora facultado o gozo do imóvel onde exercia a sua actividade, encontrando-se inactiva desde então, e bem assim que tinha dívidas que remontavam a 2010.
Sendo assim, parece legítimo concluir que os recorrentes incumpriram o dever de apresentação à insolvência (3) (artigos 18º, números 1 e 3, e 20º, n.º 1, alínea g), do CIRE).
Porém, não basta.
É que a demora na apresentação à insolvência não pode confundir-se com a criação ou agravamento desta.
Ora, entre 2011 e 2014, a devedora, não só não aumentou o seu passivo, como o reduziu substancialmente, ainda que mediante a venda de activos.
Indemonstrado o nexo causal entre o incumprimento do dever de apresentação à insolvência e a criação ou agravamento da situação de insolvência, esta não pode ser tida como culposa, ao abrigo do n.º 3, alínea a), do artigo 186º do CIRE.
Concluímos, pois, que a insolvência deve ser qualificada como fortuita.
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IV. DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar a sentença recorrida, qualificando a insolvência como fortuita.
Sem custas.
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Guimarães, 1 de Junho de 2017


1.Código de Processo Civil anotado, volume II, página 24.
2.Note-se que, como ponderam Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda em “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2ª edição, página 611, apesar de o n.º 2 do artigo 186º “não estabelecer, em nenhuma das suas alíneas, um limite temporal para a relevância dos factos nelas previstos, a sua articulação com o n.º 1 leva-nos a sustentar que é de atender, para o efeito, ao prazo neste estatuído”.
3.Note-se que a insolvência foi requerida em 2014 por dois ex-trabalhadores da devedora.