Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2367/17.2T8VCT.G1
Relator: JOSÉ ALBERTO MOREIRA DIAS
Descritores: CAIXA DE PREVIDÊNCIA
CONTRIBUIÇÃO PARA A PREVIDÊNCIA
EXECUÇÃO
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/18/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1- A Caixa de Previdência X (Caixa De Previdência X) foi criada pelo Estado em obediência ao comando constitucional enunciado no art. 63º, n.º 1 da CRP e visa promover e satisfazer fins de previdência e proteção social, ou seja, o interesse público, tratando-se de uma pessoa coletiva de direito público.

2- Embora a Caixa De Previdência X desempenhe aquelas funções segundo um regime próprio e sob a forma de gestão privativa, as normas que regulam a sua atividade e as relações desta com os seus associados são normas de direito administrativo e fiscal.

3- As contribuições para a Caixa De Previdência X apresentam grandes semelhanças com os impostos.

4- Consequentemente, as relações que se estabelecem entre a Caixa De Previdência X e os seus associados são relações jurídicas administrativas e fiscais.

5- Os tribunais administrativos e fiscais são os materialmente competentes para conhecerem de execução instaurada pela Caixa De Previdência X com vista à cobrança coerciva de contribuições não pagas e respetivos juros de mora por um seu associado (advogado).
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães.

I. RELATÓRIO.

Recorrente: Caixa de Previdência X.
Recorrido: José.
*
Caixa de Previdência X, instaurou a presente execução para pagamento de quantia certa contra José, advogado, tendo em vista a cobrança coerciva deste das contribuições em dívida para aquela, no montante de 86.238,52 euros, e respetivos juros de mora, servindo de título executivo a certidão emitida pela Direção da exequente.
Conclusos os autos, foi proferida decisão, indeferindo liminarmente o requerimento executivo, com fundamento em os tribunais comuns serem incompetentes, em razão da matéria, para apreciar da presente execução, constando aquela decisão da seguinte parte disjuntiva:

“Em face do exposto, julgo este tribunal incompetente em razão da matéria para apreciar a presente execução e, consequentemente, indefiro liminarmente o requerimento executivo”.

Inconformada com o assim decidido, veio a exequente interpor recurso daquela decisão, apresentando as seguintes conclusões:

1.ª O Tribunal a quo é o tribunal competente para a decisão e tramitação deste processo executivo.
2.ª Pois a Caixa De Previdência X, não obstante prosseguir fins de interesse público, tem uma forte componente privatística. Com efeito
3.ª A Caixa De Previdência X «é uma instituição de previdência autónoma, com personalidade jurídica, regime próprio e gestão privativa…» (cf. Art.º 1.º, n.º 1 do regulamento aprovado pelo Dec. Lei n.º 119/2015, de 29/06) não fazendo parte do sistema público de segurança social (cf. Ilídio das Neves in “Direito da Segurança Social – Princípios Fundamentais Numa Análise Prospectiva”).
4.ª A Caixa De Previdência X não está sujeita a um poder de superintendência do Governo, mas a um mero poder de tutela (cf. Art.º 97.º do regulamento aprovado pelo Dec. Lei n.º 119/2015, de 29/06), sendo essa tutela meramente inspectiva.
5.ª A Caixa De Previdência X não faz parte da administração directa ou indirecta do Estado.
6.ª Os seus membros directivos não são designados pelo Governo, mas eleitos «pelas assembleias dos advogados e dos associados da Câmara dos Solicitadores».
7.ª Mas além disso a Caixa De Previdência X não é financiada com dinheiros públicos, sejam oriundos do Orçamento do Estado ou do Orçamento da Segurança Social.
8.ª Pelo que a Caixa De Previdência X não deve ser qualificada como uma mera “entidade pública”.
9.ª As contribuições para a Caixa De Previdência X não têm natureza tributária, mais se assemelhando a contribuições para um fundo de pensões.
10.ª As contribuições para a Caixa De Previdência X assentam numa verdadeira relação sinalagmática entre o montante das contribuições pagas e a futura pensão de reforma a ser percebida pelo beneficiário.
11.ª A este facto acresce que, nos termos do disposto no art.º 80.º, n.º 4 do regulamento aprovado pelo Dec. Lei n.º 119/2015, o montante das contribuições depende em exclusivo da opção e, portanto, da única vontade do beneficiário.
12.ª Nos termos da sentença recorrida, os tribunais administrativos e fiscais seriam os competentes para a tramitação e decisão de execução fundada em certidão de dívida reportada a contribuições para instituição de previdência.
13.ª Todavia, o n.º 2 do art.º 148.º do CPPT impõe, para que se possa fazer uso o processo de execução fiscal, no caso de «dívidas a pessoas colectivas de direito público que devam ser pagas por força de acto administrativo», que a lei estipule expressamente os casos e os termos em que o pode fazer.
14.ª No novo regulamento da Caixa De Previdência X, aprovado pelo Dec. Lei n.º 119/2015, de 29/06, não existe norma que, de forma expressa, determine que as dívidas à Caixa De Previdência X sejam cobradas através de processo de execução fiscal a correr nos serviços de finanças.
15.ª O que foi confirmado, já depois da entrada em vigor do novo regulamento da Caixa De Previdência X, pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) à Direcção da Caixa De Previdência X. (doc.1)
16.ª E porque “não há direito sem acção”, não resta à Caixa De Previdência X outro caminho senão recorrer aos tribunais judiciais, como no presente caso, para cobrar as contribuições em dívida por parte dos seus beneficiários, isto sob pena de ficar sem tutela jurisdicional efectiva para o apontado propósito.
17.ª Assim a interpretação das referidas normas de modo a concluir pela incompetência do Tribunal a quo, acarretaria o incumprimento de preceito constitucional, constante do art.º 20.º, n.º 1 da CRP, que estipula que «a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos…»
18.ª Tendo em conta o princípio constitucional previsto no art.º 20.º, n.º 1 da CRP que dispõe que «a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos…», a interpretação conjugada da alínea o) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF (aprovado pela Lei n.º 32/2002, de 19/02) e do n.º 2 do art.º 148.º do CPPT, perfilhada na sentença recorrida, ou seja, de que apenas os tribunais administrativos e fiscais seriam competentes para dirimir os litígios entre a Caixa De Previdência X e os seus beneficiários, é inconstitucional por violação do disposto no art.º 20.º, n.º 1 da CRP, na medida em que, como vimos, levará a um verdadeiro “beco sem saída” pois a Caixa De Previdência X ficaria, dessa forma, sem possibilidade de poder cobrar as contribuições em dívida pelos seus beneficiários.
19.ª Pois, as dívidas à Caixa De Previdência X não poderão ser cobradas judicialmente nem nos tribunais administrativos e fiscais, nem por meio de execuções fiscais promovidas pela AT, nem por meio de execuções fiscais promovidas pela Segurança Social, por falta de norma habilitante para o efeito.
20.ª A sentença recorrida violou, assim, o art.º 2.º, n.º 2 do C.P.C.; o art.º 179.º, n.º 1 e 2 do NCPA e o art.º 148.º, n.º 2 do CPPT; o art.º 81.º, n.º 5 do R Caixa De Previdência X; a alínea o) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF e, além disso, a interpretação normativa extraída do referido conjunto de preceitos legais é inconstitucional por violar o artigo o art.º 20.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.

O recorrido não apresentou contra-alegações.
*
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
*

II- FUNDAMENTOS

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
No seguimento desta orientação, a única questão que é submetida à apreciação desta Relação consiste em saber se os tribunais comuns são materialmente competentes para conhecer da presente execução.
*
A- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os fundamentos de facto com relevância para a decisão a proferir nos autos são os que constam do relatório acima elaborado.
*
B- FUNDAMENTOS DE DIREITO.

Conforme acima se deixou dito, a única questão que se encontra submetida à apreciação desta Relação consiste em saber se os tribunais comuns são competentes, em razão da matéria, para conhecer da presente execução instaurada pela Caixa de Previdência X contra o advogado José, tendo em vista a cobrança coerciva deste de contribuições obrigatórias para a exequente e respetivos juros de mora.
Passando à apreciação desta concreta questão, cumpre referir que na ordem jurídica interna a competência dos tribunais reparte-se de acordo com a matéria, o valor, a hierarquia e o território.
No que respeita à matéria, dispõe o art. 211º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP) que “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”.
Por sua vez, o art. 212º, n.º 3 da CRP estabelece que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas”.
Em consonância com aqueles comandos constitucionais e densificando-os, o art. 40º, n.º 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), aprovado pela Lei n.º 62/2013, de 26/01, reafirma que “os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”, comando este que se encontra igualmente consignado no art. 64º do CPC, resultando indiscutivelmente destes comandos constitucionais e infraconstitucionais que a competência dos tribunais judiciais em razão da matéria é residual, impondo-se, consequentemente, verificar se perante determinada causa judicial, a competência em razão da matéria para conhecer dessa causa se encontra atribuída a outras ordens jurisdicionais, sendo que, no caso negativo, então essa competência para conhecer daquela concreta causa caberá aos tribunais judiciais.
Precise-se que como já entendia Manuel de Andrade(1), “a competência do tribunal afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum); é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do Autor”.
Deste modo, para se aferir da competência em razão da matéria impõe-se aferir da relação jurídica que se discute na ação, tal como a mesma é configurada pelo autor, seja quanto aos seus elementos objetivos (causa de pedir e pedido), seja quanto aos elementos subjetivos das partes (2).
No caso, a exequente, Caixa de Previdência X, instaurou a presente execução contra o executado, advogado, com vista à cobrança coerciva das contribuições que este, enquanto advogado, se encontra legalmente obrigado a descontar para a exequente e cujo pagamento alegadamente omitiu, e respetivos juros de mora, pelo que é a esta concreta relação jurídica controvertida que se impõe atender para aferir se os tribunais judiciais são materialmente competentes para conhecer da presente execução.
O tribunal a quo concluiu que essa competência cabia aos Tribunais Administrativos e Fiscais nos termos do disposto no art. 4º, n.º 1, al. o) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF).
Densificando o comando constitucional enunciado no art. 212º, n.º 3 da CRP, estabelece o art. 1º, n.º 1 do ETAF, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19/02, na sua 14ª versão, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02/10, vigente à data da propositura da presente execução e que é, de resto, aquela que atualmente continua a vigorar, que “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4º deste Estatuto”.
Já o art. 4º do ETAF enuncia os casos em que a competência se encontra deferida aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.
A propósito deste normativo tem-se entendido que se no âmbito da redação originária do ETAF, a pedra de toque para a atribuição de competência em razão da matéria aos tribunais administrativos e fiscais se encontra nos conceitos de gestão pública e gestão privada, atualmente, para se fugir a essa dicotomia e às zonas cinzentas da mesma, em função da atual redação daquele diploma, designadamente, ao estatuído no seu art. 4º, n.º 1, al. o), dever-se-á utilizar o conceito de relação jurídica administrativa, tido como conceito/quadro muito mais amplo (3).
No entanto, a competência dos tribunais administrativos não pode obter-se exclusivamente à luz, ainda que mais ampla, da noção de relação jurídica administrativa, posto que, conforme põe em evidência, Mário Aroso de Almeida, o art. 4º do ETAF enuncia como competentes os tribunais administrativos para situações que não cabem no critério da existência de um litígio sobre uma relação jurídico administrativa ou fiscal e exclui essa competência noutras situações em que a relação jurídica em discussão se insere nesse conceito.
Conforme escreve aquele autor “… a não convergência total de conteúdo entre alguns dos preceitos do art. 4º e o princípio do seu art. 1º, n.º 1, coloca a questão da respetiva articulação, a qual deve ser obtida deste modo: Tal como sucede com as múltiplas disposições derrogatórias que, sobre a matéria, existem em legislação avulsa, também as normas do art. 4º, sempre que afastem o regime do art. 1º, n.º 1, devem ser vistas como normas especiais em relação àquele preceito, dirigidas a derrogá-lo, prevalecendo sobre ele, para o efeito de ampliar ou restringir o âmbito da jurisdição. Significa isto que, de um modo geral, pertence ao âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de todos os litígios que versem sobre matéria jurídica administrativa e fiscal e cuja apreciação não seja expressamente atribuída, por norma especial, à competência dos tribunais judiciais, assim como aqueles que, embora não versem sobre matéria jurídica administrativa ou fiscal, são expressamente atribuídos à competência desta jurisdição – sendo que encontramos no art. 4º do ETAF algumas disposições especiais com este alcance”, concluindo que “ao introduzir (…) no art. 4º preceitos com um alcance mais amplo ou mais restrito que aquele que resultaria do art. 1º, n.º1, o legislador não pode ter deixado de pretender ampliar ou restringir o âmbito da jurisdição” (4).
Decorre do que se vem dizendo que perante um determinado litígio, com vista a aferir se o mesmo cabe no âmbito de competência material dos tribunais administrativos e fiscais ou antes na da dos tribunais judiciais, impõe-se indagar se a específica matéria em causa se subsume a alguma das previsões elencadas em legislação avulsa que atribua expressamente competência a esses tribunais para delas conhecer ou nas varias previsões enunciadas no art. 4º do ETAF, independentemente da relação jurídica controvertida, tal como vem delineada pelo autor ou exequente, se consubstanciar ou não numa relação jurídica administrativa ou fiscal. Quando tal suceda, então serão os tribunais administrativos e fiscais os materialmente competentes para conhecer dessa relação.
Note-se que o que se acaba de dizer não exclui a irrelevância do recurso à noção de “relação jurídica administrativa ou fiscal”. É que caso inexista disposição legal especial que expressamente atribua competência material aos tribunais administrativos e fiscais para conhecerem daquele concreto litígio apresentado em juízo pelo autor ou exequente, conforme resulta da al. o), do n.º 1 do art. 4º do ETAF, este normativo declara competir aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a “relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores”, pelo que, nesse caso, para aferir-se se a competência material para conhecer desse litígio impende sobre os tribunais administrativos e fiscais ou se sobre os tribunais comuns (judiciais), sempre se terá de indagar se a concreta relação jurídica submetida pelo autor ou exequente a juízo é ou não uma relação jurídica administrativa ou fiscal.
A competência material para conhecer da presente execução instaurada pela Caixa de Previdência X tendo em vista a cobrança coerciva das contribuições e respetivos juros de mora de advogado não é atribuída expressamente por nenhuma disposição avulsa ou pelas várias alíneas do art. 4º do ETAF aos tribunais administrativos e fiscais, pelo que, em consonância com o estatuído na al. o), do n.º 1 daquele art. 4º, impõe-se indagar se essa relação material controvertida nos autos se insere no conceito de “relação jurídica administrativa e fiscal”.
De acordo com Fernandes Cadilha (5) “por relação jurídica administrativa deve entender-se a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjetivas. Pode tratar-se de uma relação jurídica intersubjetica, como a que ocorre entre a Administração e os particulares, intradministrativa, quando se estabelecem entre diferentes entes administrativos, no quadro de prossecução de interesses públicos que lhes cabe defender, ou inter orgânica, quando se interpõem entre órgãos administrativos da mesma pessoa coletiva pública, por efeito do exercício dos poderes funcionais que lhes correspondem. Por outro lado as relações jurídicas podem ser simples ou bipolares, quando decorrem entre dois sujeitos, ou poligonais ou multipolares, quando surgem entre três ou mais sujeitos que apresentam interesses conflituantes relativamente à resolução da mesma situação jurídica”.
Deste modo, com vista a determinar-se se a relação jurídica sobre que versem os autos estabelecida entre exequente e executado, mediante o qual, segundo a relação controvertida delineada pela primeira, lhe assiste o direito a reclamar do segundo, este enquanto advogado, contribuições para a primeira e perante a ausência do pagamento dessas contribuições, lhe assiste o direito a obter a cobrança coerciva dessas contribuições e respetivos juros de mora, é necessário verificar-se se a exequente é uma entidade pública, se a relação jurídica estabelecida entre ela e o executado é regulado por normas de direito administrativo ou fiscal e, bem assim se ao cobrar essas contribuições, a exequente prossegue o interesse público.
A exequente, Caixa de Previdência X, foi criada pelo Decreto-Lei n.º 36.550, de 22/10/1947, como instituição de previdência reconhecida pela Lei n.º 1.884, de 16/03/35, e pertence à categoria das “Caixas de reforma ou de previdência” (cfr. art. 2º do Decreto-Lei n.º 36.550 e art. 1º, n.º 1 da Lei n.º1.884).
A previdência social foi definida pela Base XXV, n.º 1, da Lei n.º 2115, de 18/06/1962, como atividade que, mediante o pagamento regular ou irregular de quantias fixas ou variáveis, se propunha conceder benefícios pecuniários ou de outra natureza, no caso de se verificarem factos contingentes relativos à vida ou à saúde dos interessados, à sua situação profissional ou aos seus encargos familiares.
De acordo com a Base III, n.º 3, desta Lei n.º 2115, as caixas de reforma ou de previdência eram as instituições de inscrição obrigatória das pessoas que, sem dependência de entidades patronais, exerciam determinadas profissões, serviços ou atividades.
O art. 63º, n.º 1 da CRP, veio estabelecer como direitos e deveres sociais e, consequentemente, de natureza análoga aos direitos fundamentais, que todos tinham direito à segurança social, sendo objetivo do sistema de segurança social proteger os cidadãos na doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho (n.º 3), impondo a todo aquele que tem trabalho, a obrigação de contribuir, nos termos da lei, para o sistema da segurança social (n.º 4) e impondo ao Estado a obrigação de organizar, coordenar e subsidiar o sistema de segurança social (n.º 2).
A Lei de Bases do Sistema de Segurança Social, aprovada pela Lei n.º 28/84, de 14/08, estabeleceu que as instituições de previdência seriam gradualmente integradas no sistema de segurança social e que as criadas anteriormente à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 549/77, de 31/12 – Lei Orgânica da Segurança Social – ficavam sujeitas, com as adaptações necessárias, àquela lei e à legislação dela decorrente (arts. 68º e 79º).
A Lei n.º 28/84, foi revogada pela Lei n.º 17/2000, de 08/08, mas esta manteve que, com as adaptações necessárias, a ela e à legislação dela decorrente, ficavam sujeitas as instituições de previdência criadas anteriormente à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 549/77.
A Lei n.º 32/2002, de 20/12, revogou a Lei n.º 17/2000, mas tal como esta, estabeleceu que, com as adaptações necessárias, a ela e à legislação dela decorrente, ficavam sujeitas as instituições de previdência criadas anteriormente à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 549/77 (art. 126º).
Esta Lei foi revogada pela atual vigente Lei de Bases da Segurança Social, aprovada pela Lei n.º 4/2007, de 16/01, a qual estabeleceu que a estrutura orgânica do sistema compreendia os serviços que faziam parte da administração direta e da administração indireta do Estado, que eram pessoas coletivas de direito público denominadas instituições de segurança social (art. 94º).
Em relação às instituições de previdência criadas antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 549/77, estabeleceu que as mantinha autónomas, com os seus regimes jurídicos e formas de gestão privativas, ficando subsidiariamente sujeitas às disposições dessa lei e à legislação dela decorrente, com as necessárias adaptações (art. 106º).
O novo regulamento da Caixa de Previdência X, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 119/2015, ao estabelecer o regime específico de segurança social dos advogados e solicitadores, reafirmou, no seu art. 1º, que essa Caixa é uma instituição de previdência autónoma, com personalidade jurídica, regime próprio e gestão privativa, que visa fins de previdência e de proteção social dos advogados e dos associados da Câmara dos Solicitadores (n.º 1), que se rege por esse Regulamento e, subsidiariamente, pelas bases gerais do sistema de segurança social e pela legislação dela decorrente, com as necessárias adaptações (n.º 2), estando sujeita à tutela do Governo (art. 97º) e gozando das isenções e regalias previstas na lei para as instituições de segurança social e previdência (art. 98º).
Quanto às contribuições para aquela Caixa, impõe que todos os advogados e advogados estagiários inscritos na Ordem dos Advogados e, bem assim todos os associados e associados estagiários inscritos na Câmara dos Solicitadores, estão obrigados a fazer essas contribuições e são beneficiários da Caixa, implicando a suspensão ou o cancelamento da inscrição naqueles organismos, respetivamente, a suspensão ou o cancelamento da obrigação de fazer descontos para a Caixa e dela poderem beneficiar (arts. 29º, n.º 1, 31º, n.º1, 32º, n.º 1 e 34º, n.º 1), pelo que todos os advogados e advogados estagiários, assim como todos os solicitadores e solicitadores estagiários estão, ex lege, obrigados a inscrever-se na Caixa exequente e para ela fazerem as contribuições legais, para que possam exercer a sua profissão.
Decorre do que se vem dizendo que a Caixa exequente foi criada pelo Estado, visa promover e satisfazer fins de previdência e de proteção social dos seus associados e familiares, ou seja, prossegue fins de natureza pública e embora desempenhe essas suas funções de previdência segundo um regime jurídico próprio e sob a forma de gestão privativa (que não é o mesmo que “gestão privada”), as normas a que se encontra subordinada na prossecução daquelas suas finalidade públicas, não deixam de ser normas de direito administrativo e fiscais, assim como as relações que estabelece com esses seus associados não podem deixar de ser relações jurídicas administrativas, tanto assim que a Caixa exequente não pode cobrar dos seus associados as contribuições que bem entenda, sequer pode isentá-los do pagamento dessas contribuições, sequer assiste o direito aos últimos de se inscreverem ou não na Caixa exequente e de para ela poderem ou não descontar (aos associados apenas assiste o direito a optarem pelo escalão, nos termos e condições enunciadas no art. 80º, n.º 4), uma vez que toda esta matéria está regulada por normas imperativas, as quais se impõem à Caixa exequente e, bem assim aos seus associados.
Os associados da Caixa, reafirma-se, não podem, sequer, exercer as respetivas atividades profissionais de advogado ou solicitador sem que estejam inscritos na Caixa exequente e, consequentemente, sem que para aquele tenham de descontar.
Acresce dizer que a Caixa exequente não foi apenas criada pelo Estado e não só prossegue o interesse público, como a sua criação e a prossecução desse interesse público corresponde a uma imposição constitucional que impõe ao Estado a obrigação de organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social unificado e descentralizado.
O que aconteceu é que o legislador ordinário, dentro da liberdade de conformação da norma constitucional que lhe assiste, em vez que ter criado um sistema de segurança social único, a que todos os cidadãos ficassem sujeitos, optou por criar subsistemas de previdência social e sistemas autónomos, como é o caso da Caixa exequente, sujeitando esses subsistemas e sistemas autónomos a regimes jurídicos específicos, aos quais, contudo, são subsidiariamente aplicáveis, as bases gerais do sistema da segurança social e a legislação dela decorrente, sem que daqui se possa, de modo algum, concluir que a Caixa exequente seja uma entidade particular e que a sua atividade não se encontra regulada por normas administrativas e fiscais.
Na verdade, o comando constitucional que presidiu à sua criação, o facto da Caixa exequente prosseguir fins de natureza pública (o bem comum da sociedade) e a circunstância daquela ver enformada a sua atividade e as relações com os seus associadas sujeitas ao quadro legal imperativo enunciado no referido Decreto-Lei n.º 119/2015, com as implicações acima elencadas, em que nenhum advogado, advogado-estagiário, solicitador ou solicitador-estagiário poderá exercer a sua profissão, estando inscrito na Ordem dos Advogados ou na Câmaras dos Solicitadores, sem, em simultâneo, estar inscrito na Caixa exequente, com o inerente direito de usufruir das vantagens decorrentes dessa inscrição, mas tendo como contraponto a obrigação de para ela ter de descontar, força a que se conclua que a qui exequente é uma pessoa coletiva de direito público.
Esta conclusão é ainda reforçada pela circunstância da exequente se encontrar sujeita à tutela dos membros do Governo responsáveis pelas áreas da justiça e da segurança social (art. 97º) e de gozar das isenções e regalias previstas na lei para as instituições de segurança social e de previdência e das estabelecidas na al. c), do n.º 1 do art. 9º do CIRS (art. 98º).
Precise-se, aliás, que em face do que se vem dizendo, em que, inclusivamente, a exequente não pode deixar de isentar os seus associados das contribuições legalmente estabelecidas para aquela, sequer estes podem deixar de estar inscritos na Caixa exequente, com a inerente obrigação de para ela terem de descontar, faz com que essas contribuições apresentem grandes semelhanças com os impostos (6).
Em face do que se vem dizendo, compreende-se, assim, que independentemente da qualificação jurídica da Caixa exequente como verdadeira instituição de segurança social, tanto a doutrina (7) como a jurisprudência do Tribunal de Conflitos (8), considerem que a Caixa exequente é uma pessoa coletiva de direito público.

Decorre do exposto que reportando-se o presente litígio à cobrança coerciva de contribuições não pagas por beneficiário da Caixa exequente, que é uma pessoa coletiva de direito público, esse litígio emerge de uma relação jurídica administrativa e fiscal e não de uma relação de direito privado, uma vez que nele a Caixa intervém no exercício de um poder de autoridade que lhe é conferido diretamente da lei, sendo, em consequência, competentes os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, nos termos dos arts. 212º, n.º 3 da CRP e 1º, n.º 1 e 4º, n.º 1, al. o) do ETAF, os materialmente competentes para dele conhecer (9).

Realce-se que este entendimento tem sido aquele que tem sido sufragado pelos tribunais administrativos e fiscais, onde se encontra firmada uma tendência jurisprudencial consolidada no sentido de serem os mesmos os competentes para dirimirem os conflitos entre a Caixa exequente o os seus associados, sem que se descortine motivo material para se inverter este entendimento enraizado (10).
Sustenta a apelante que a interpretação do art. 4º, n.º 1. Al. o) do ETAF que acabamos de propugnar e que foi, também, o seguido pelo tribunal a quo é materialmente inconstitucional por violar o seu direito à tutela jurisdicional efetiva, consagrado no art. 20º, n.º 1 da CRP, isto porque, segundo o seu entendimento, e aquele que lhe foi já transmitido pela Autoridade Tributária e Aduaneira, o facto de no Novo Regulamento da Caixa De Previdência X não existir norma que, de forma expressa, determine que as dívidas à última sejam cobradas através de processo de execução fiscal correrem nos serviços de finanças e o facto do n.º 5 do art. 85º estabelecer que a emissão da certidão de dívida deve obedecer aos requisitos previstos do CPPT, sem que tivesse, em alternativa, habilitado a AT para a execução, faz com que os pressupostos para a aplicação do disposto nos arts. 179º, n.ºs 1 e 2 do CPA e 148º e seguintes do CPPT não se encontrem preenchidos, deixando-a sem meio judicial para poder cobrar aquelas contribuições, mas sem razão.
Com efeito, o art. 81º, n.º 5 do Regulamento configura uma norma especial e segundo esta “a certidão em dívida de contribuição emitida pela direção constitui título executivo, devendo obedecer aos requisitos previstos no Código de Procedimento e de Processo Tributário”.

Por sua vez, o art. 148º, n.º 2, al. a) do CPPT estabelece que “poderão ser igualmente cobradas mediante processo de execução fiscal, nos casos e termos expressamente previstos na lei outras dívidas ao Estado e a outras pessoas coletivas de direito público que devam ser pagas por força de ato administrativo” (sublinhado nosso).
Deste modo é o próprio art. 81º, n.º 5 do Regulamento que ao assim estatuir, permite que a certidão de dívida de contribuições emitida pela direção da Caixa exequente valha como título executivo, desde que obedeça aos requisitos previstos no CPPT.

Ora, o facto do legislador fazer depender a natureza de título executivo dessa certidão da observância dos requisitos previstos no CPPT não pode deixar de implicar a expressa previsão para a utilização do processo de execução fiscal enunciado no n.º do art. 148º do CPPT tendo em vista a cobrança coerciva daquelas contribuições, cumprindo à Caixa exequente reagir contra qualquer entendimento da administração tributária contrário ao ora propugnado, junto dos Tribunais Fiscais, sabendo-se que esta, tal como os tribunais, se encontram subordinados à Constituição e à Lei.
Resulta do que se vem dizendo, improcederem, in totum os fundamentos de recurso aduzidos pela recorrente, impondo-se, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
**
Sumário (elaborado pelo relator – art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil).

1- A Caixa de Previdência X (Caixa De Previdência X) foi criada pelo Estado em obediência ao comando constitucional enunciado no art. 63º, n.º 1 da CRP e visa promover e satisfazer fins de previdência e proteção social, ou seja, o interesse público, tratando-se de uma pessoa coletiva de direito público.
2- Embora a Caixa De Previdência X desempenhe aquelas funções segundo um regime próprio e sob a forma de gestão privativa, as normas que regulam a sua atividade e as relações desta com os seus associados são normas de direito administrativo e fiscal.
3- As contribuições para a Caixa De Previdência X apresentam grandes semelhanças com os impostos.
4- Consequentemente, as relações que se estabelecem entre a Caixa De Previdência X e os seus associados são relações jurídicas administrativas e fiscais.
5- Os tribunais administrativos e fiscais são os materialmente competentes para conhecerem de execução instaurada pela Caixa De Previdência X com vista à cobrança coerciva de contribuições não pagas e respetivos juros de mora por um seu associado (advogado).
**
Decisão:

Nestes termos, os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar a apelação totalmente improcedente e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
*
Custas pela apelante (art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
Notifique.
*
Guimarães, 18 de janeiro de 2018

(Dr. José Alberto Moreira Dias)
(Dr. António José Saúde Barroca Penha)
(Dra. Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha)

1. Manuel de Andrade, in “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, págs. 90 e 91.
2. Acs. STJ. de 10/04/2008, Proc. 08B396; 25/06/2009, Proc. 1186/07.9TBVNO.C1.S1; 12/01/2010, Proc. 1337/07.3TBABT.E1.S1; TCAN de 26/11/2009, Proc. 01009/07.9BEPRT, todos in base de dados da DGSI.
3. Ac. STJ. 08/05/2007, Proc. 07A1004, in base de dados da DGSI.
4. Mário Aroso de Almeida, in “Manual de Direito Administrativo”, 2010, págs. 156 e 157.
5. Fernandes Cadilha, in “Relações Jurídicas Poligonais, Ponderação Ecológica de Bens e Controlo Judicial Preventivo”, Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiante”, n.º 1, junho de 1995, págs. 55 e ss.
6. Neste sentido vide Ac. Tribunal de Conflitos de 27/04/2017, Proc. 037/16, in base de dados da DGSI. No mesmo sentido vide AC. TCAN, de 26/11/2009, Proc. 01009/07.9BEPRT, in base de dados da DGSI, onde se lê: “ são questões fiscais, as que emergem de soluções autoritárias que imponham aos cidadãos o pagamento de quaisquer prestações pecuniárias com vista à obtenção de receitas destinadas à satisfação de encargos públicos dos entes respetivos. Trata-se, portanto, da consagração jurisprudencial da tese ampliativa, que se opõe à restritiva ou redutora que situa a questão fiscal apenas na área do imposto (…). As contribuições para a Segurança Social têm sido qualificadas, uniformemente, pela jurisprudência deste tribunal como tendo natureza tributária, designadamente porque a Segurança Social passou a ser um direito fundamental dos cidadãos, contribuintes ou não do distema (art. 63º da CRP) … tratando-se, pois, de uma imposição pecuniária visando a obtenção de receitas para a satisfação de encargos públicos (…). Por outro lado, tem sido também uniforme o entendimento de que questões fiscais são todas as que emergem de resolução autoritária que imponha aos cidadãos o pagamento de qualquer prestação pecuniária com vista à obtenção de receitas destinadas à satisfação de encargos públicos do Estado e demais entidades públicas, bem como o conjunto de relações jurídicas que surjam em virtude do exercício de tais funções ou que com elas estejam objetivamente conexas ou teleologicamente subordinadas”.
7. Freitas do Amaral, in “Curso de Direito Administrativo”, 2012, págs. 370 e 371, e Mário Esteves de Oliveira, in “Direito Administrativo”, vol. I, 1984, pág. 213.
8. Acs. de 27/04/2017, Proc. 037/16; e de 02/10/2008, Proc. 010/08, ambos in base de dados da DGSI.
9. Neste sentido Acs. Trib. Conflitos de 27/04/2017, já atrás identificado; RL. de 09/03/2017, Proc. 17398/15.9T8LRS.L1-2; de 02/11/2017, Proc. 9354-16.6T8LSB.L1-8; e RP. de 20/06/2016, Proc. 6988/16.2T8PRT.P1, todos in base de dados da DGSI.
10. Entre outros, Acs. STA de 08/10/1996, de 02/10/2008 e 22/09/2015, todos in base de dados da DGSI.