Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2231/14.7T8GMR.G1
Relator: SANDRA MELO
Descritores: COMPROPRIEDADE
REIVINDICAÇÃO
LEGITIMIDADE
DESISTÊNCIA DO PEDIDO POR LITISCONSORTE
DANO DE PRIVAÇÃO DO USO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/19/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (elaborado pela relatora):

1- A ação de reivindicação não precisa de ser deduzida por todos os comproprietários, pelo que a desistência de um nunca poderia pôr em causa a legitimidade ativa dos demais;

2- A desistência do pedido declarada por um dos Autores em caso de litisconsórcio necessário ativo não coloca em causa a legitimidade dos demais, porquanto tem os seus efeitos limitado às custas do processo, como decorre do disposto no artigo 288º, nº 2, do Código de Processo Civil.

3- O dano da privação do uso reside essencialmente na impossibilidade de usar a coisa causada pelo ato ilícito.

4- Competindo ao lesado provar o dano ou prejuízo que quer ver indemnizado, deve alegar e provar a privação da coisa, num contexto de onde se retire o cometimento em proceder à utilização da mesma.
Decisão Texto Integral:
Acordam no tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

Os Autores formularam o seguinte pedido:

A) Serem os 1º, 3ª, 4º, 5º e 6º AA. reconhecidos como comproprietários do prédio identificado no artigo primeiro, como assim que o mesmo integra a herança aberta por óbito do A. F., na respetiva quota-parte, de quem os 2ºs AA. são únicos herdeiros.
B) Serem os RR. condenados a entregar, imediatamente, aos AA., o prédio identificado no artigo primeiro, livre de pessoas e bens.
C) Serem os 1ºs RR. condenados no pagamento de uma indemnização global de € 205.000,00 (duzentos e cinco mil euros), pela ocupação ilegítima, sem título, do prédio identificado no artigo primeiro, desde Fevereiro de 2008 até à presente data, sendo, deste valor:
CA) € 71.875,00 (setenta e um mil oitocentos e setenta e cinco euros) à herança aberta por óbito de Maria, por corresponder, proporcionalmente, à quota de 5/8 da propriedade do prédio que a integrava, cuja partilha e, consequente, adjudicação transitou em julgado em 24/11/2011.
CB) € 133.125,00 (cento e trinta e três mil cento e vinte e cinco euros) aos AA. 1o, 3a, 4o, 5o e 6o AA. e à herança aberta por óbito de A. F., na proporção das respetivas quotas da propriedade do prédio.
D) Serem os 1ºs RR. condenados a pagar aos 1º, 3ª, 4º, 5º e 6º AA. e à herança aberta por óbito de A. F., a título de indenização pela ocupação, ilegítima, sem título, do prédio identificado no artigo primeiro, a quantia de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) mensais, enquanto o mesmo não for entregue a estes livre de pessoas e bens.
E) Ser a 2ª Ré condenada, solidariamente, com os 1ºs RR., no pagamento aos 1º, 3ª, 4º, 5º e 6º AA. e à herança aberta por óbito de A. F., a título de indemnização pela ocupação ilegítima, sem título, do prédio identificado no artigo primeiro, da quantia que venha a resultar da multiplicação do número de meses em que a mesma se tenha verificado e, eventualmente, venha a perdurar, pelo valor € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros).
F) Serem os RR. condenados a pagar às heranças abertas por óbito de Maria, de A. F. e aos 1º, 3ª, 4º, 5º e 6º AA., os juros de mora, calculados sobre o valor da indemnização que venha a ser fixada, desde a data de entrada da petição inicial até ao efectivo e integral pagamento.”

Alegaram, para tanto e em síntese, que são proprietários do prédio identificado no artigo 1º da petição inicial e que os Réus o ocupam desde pelo menos Fevereiro de 2008, recusando-se a abandoná-lo, livre de pessoas e bens, pese embora solicitados para o efeito, impedindo o arrendamento do mesmo, cujo valor perfaria 2.500,00 € mensais.

Os Réus contestaram, invocando que também o 1º Réu é titular de 3/64 partes indivisas do prédio reivindicado e que o edifício constitui benfeitoria, consentida e de boa-fé, realizada a expensas suas e do 5º Autor em prédio da herança; corre termos o processo com o nº 712/10.0TBFAF prejudicial relativamente ao pedido formulado na presente ação, porquanto ali se discute que o prédio constitui uma benfeitoria a reclamar da herança de Maria.

Foi no saneador conhecido parcialmente do mérito da causa, decidindo-se que “reconhecendo-se os 1º, 3º, 4º, 5º e 6º autores e bem assim a herança jacente por óbito de A. F., de que os 2ºs Autores são únicos herdeiros, comproprietários do prédio identificado no artigo 1º da petição inicial.”
O Autor habilitado José veio declarar desistir do pedido.
Foi proferida sentença, após audiência de julgamento e já com a sanação da nulidade invocada nas alegações de recurso, com os seguintes decisórios:

-- conhecendo da desistência do pedido formulado por José: “- por se tratar de litisconsorte necessário e incidir sobre direito que não se encontra na disponibilidade do Desistente/Habilitado José, não julgo, parcial ou totalmente, extinto o pedido formulado pelos Autores. Condeno o Desistente/Habilitado José, na proporção do seu quinhão hereditário e do direito de compropriedade do falecido Joaquim, nas custas do pedido, reduzidas metade do seu valor ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 528º do CPC.”.
-- conhecendo do mérito:

“Julgo parcialmente procedente a ação:

- Condenando os RR. a entregar, imediatamente, aos titulares do direito de compropriedade identificados na sentença proferida nos presentes autos a 7 de Fevereiro de 2017, o prédio identificado no artigo primeiro da p.i., livre de pessoas e bens;
- Condenando os RR., solidariamente, a pagar a cada um dos mesmos titulares, na proporção do respetivo direito, a quantia mensal de € 1.000,00, desde a data da citação até efetiva restituição do imóvel, acrescida de juros de mora, contados à taxa legal, desde o último dia da mês a que respeitar até efetivo e integral pagamento.

B. Julgo parcialmente improcedente a ação, absolvendo os Réus dos demais pedidos formulados”.

O presente recurso de apelação foi interposto pelos Réus, pugnando para que o tribunal declare a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, e a substitua por outra que, conhecendo e homologando a desistência do pedido, absolva os Réus da instância, ou, subsidiariamente, se dê como não provado o valor locativo do imóvel, remetendo as partes para liquidação de sentença quanto ao valor indemnizatório devido aos Autores.

Apresenta as seguintes conclusões:

A- A douta sentença recorrida violou manifestamente o disposto nos artºs 608º, 609º e 607º do CPCivil.
B- Está ferida do vício de não pronuncia, o que acarreta a sua nulidade.
C- Estando, como estamos, perante um direito de compropriedade de um imóvel por pate dos AA. a sua revindicação judicial só pode ter lugar se exercida por todos os comproprietários, assegurando-se, assim, a legitimidade activa processual.
D- A falta de um comproprietário determina a ilegitimidade e a consequente absolvição da instância.
E- Esta legitimidade tem que estar garantida até final da acção.
F- No decurso da presente ação foi habilitado um A. e assim assegurada a legitimidade para os AA. prosseguirem a presente acção.
G- Esse A. no decurso da acção juntou aos autos um requerimento a desistir do pedido – notificadas as partes para se pronunciar nada disseram.
H- Impunha-se o Mº Juiz desde logo ou na sentença final homologar a desistência do pedido e declarar a inutilidade superveniente do pedido, ou se entendesse doutro modo a absolvição da instância por falta de um pressuposto processual a legitimidade activa dos demais AA. para estarem por si só em juízo, desacompanhados do A. que desistiu do pedido.
I- Ao contrário o Mº Juiz nada fez, ou seja, fez tábua rasa dessa desistência do pedido, houve assim a violação de pronuncia, pois não se pronunciou sobre uma matéria que tinha, obrigatoriamente, que se pronunciar, nem o fez antes, nem o fez na sentença final.
J- Violando-se as mais elementares normas de direito, relativamente, à sentença.
L- Por outro lado, está pendente um recurso, que subirá com o presente em que se pugnava pela suspensão dos presentes autos até à decisão final a ter lugar no Processo 712/14.0TBFAF.
M- Porque naquele processo está para se decidir e saber a quem pertencia o casão – que constitui uma benfeitoria, e determinar-se, assim, se havia qualquer indemnização a pagar ou não, a decidir se o Filipe ter direito a metade dessas benfeitorias, ocupando esse casão porque, também, lhe pertence essa benfeitoria.
N- Se a acção em curso vier a determinar que o casão que ocupa, pertence-lhe metade e tem que ser indemnizado por essa metade, será lícito condenar estes RR. a entregar o prédio completamente livre de pessoas e coisas ao AA. e condena-los a pagar um indemnização? Por ocuparem um casão que constitui uma benfeitoria e lhes pertence em parte?
O- Impunha-se suspender esta acção e esperar pelo resultado da outra até para clarificar tudo.
P- Foi dado como provado no iten 13 que o valor locativo do casão é não inferior a €1.000,00 sendo que esta matéria de facto tem que ser alterada e dada como não provada.
Q- Pois a única testemunha que nada conhecia do casão, que nunca lá esteve dentro, que em termos de conhecimento do mesmo casão é exactamente zero, atirou para o ar um valor na ordem de €1.500,00 e a douta sentença atirou sem qualquer fundamento decidiu por €1.000,00 – o Tribunal não conhece o casão, não houve inspecção ao local nem houve qualquer peritagem para determinar o valor locativo.
R- Sem quaisquer provas, pois as demais testemunhas nada disseram sobre o valor locativo, o Tribunal não pode dar como provado que o valor locativo é de €1.000,00.
S- Face à ausência de prova e de outros meios complementares de prova o impunha-se que a determinação do valor locativo fosse relegado para execução de sentença, face à ausência de prova suficiente, para alicerçar e fundamentar a convicção do julgador.
T- E é, claramente, insuficiente consistindo as declarações de parte como “prova testemunhal” encapotada, ou às claras, pois a parte já disse tudo que tinha de dizer ao Tribunal, na peça processual que fez no processo, e quando as testemunhas falham, então, a parte presta declarações e colmata as falhas da prova testemunhal.
U- As declarações de parte não é “prova” atendível no Direito Civil e como tal o Tribunal não pode socorrer-se das declarações de parte para dar como provado um dado facto, constante da matéria factual a provar, quando as testemunhas ouvidas em audiência disseram não saber – essa matéria tem que ser dada como não provada muito embora a parte tenha dito e deposto sobre esse facto nas suas declarações.
V- E, pelo A. A. F. em declarações de parte ter dito que um inquilino ( que não foi testemunha nem identificou) pagava de renda €1.000,00 o Tribunal não pode ter como certa e assente essa factualidade porque ficou por demonstrar em audiência, nenhuma testemunha sabia de tal factualidade.
X- Os recorrente para saberem com que linhas se cosem, solicitaram um parecer a um gabinete de arquitectura, que chegou à conclusão que o valor locativo do casão, somente é de €400,00 mensais – conforme parecer junto.
Z- Para assim demonstrar a sem razão da sentença que nem sequer teve em conta a crise que o país atravessou com a “falência” do País e a intervenção da Troika.
AA- O Tribunal nem sequer tem elementos e sabe quando é que o casão esteve arrendado – época- antes ou pós Troika?
BB- Pois as rendas antes da Troika era, umas e durante a intervenção da Troika eram outras e após o País sair dessa situação passaram a ser outras.
CC- Com a intervenção da chamada Troika tudo mudou radicalmente em Portugal – são factos do conhecimento publico que nem são necessários alegar.
DD- Pelo que, deve este Tribunal declarar o vício de omissão de pronuncia que a douta sentença padece, acarretando a sua nulidade, ser substituída por outra que aprecie e homologue a desistência do pedido, com as legais consequências, e se assim não se entender o que não se concede nem concebe, deve ser dada como não provada a matéria do iten 13 (da matéria de facto dada como provada nesta sentença em recurso) e remeter as partes para determinar em execução de sentença qual o valor locativo do casão, uma vez que a prova testemunhal não conseguiu dizer ao tribunal o valor por desconhecimento do interior do casão.
EE- A esse titulo o parecer junto chega á conclusão que o valor locativo é de €400,00 mensais.”

O apelado respondeu às alegações do apelante,
defendendo a improcedência do recurso, formulando as seguintes conclusões:

1. A) Não correspondendo a decisão sob recurso a nenhuma das previstas no nº 3 do artigo 647º do CPC, não havendo disposição legal que o determine e não tendo os Recorrentes requerido a fixação de efeito suspensivo, nos termos do nº 4 do mesmo artigo, temos que o efeito a fixar ao recurso é, necessariamente, devolutivo;
B) Assiste razão aos Recorrentes quanto à invocada nulidade por omissão de pronúncia quanto à desistência do pedido pelo A. José, habilitado como sucessor de Joaquim;
C) Sem prejuízo, a desistência do pedido por este A., porque em litisconsórcio necessário com os demais habilitados como sucessores de Joaquim – e só com estes – apenas releva, nos termos do nº e do artigo 288º do CPC, para efeitos de custas;
D) Nos termos do nº 2 do artigo 1405º do CC, qualquer consorte pode reivindicar o prédio de que é comproprietário de terceiro, desacompanhado dos demais.
E) Com efeito, a situação dos autos consubstancia um exemplo paradigmático de litisconsórcio voluntário entre os comproprietários;
F) Vale isto por dizer que, in casu, bastava que um dos comproprietários estivesse em juízo para que a legitimidade activa estivesse assegurada;
G) Ainda que situação dos autos fosse de litisconsórcio necessário activo, garantida a intervenção principal de todos os litisconsortes, de forma voluntária ou provocada, seria manifestamente irrelevante, no que tange à legitimidade activa, a posição que os mesmos viessem a tomar nos autos, designadamente quanto ao pedido;
H) Não se verifica qualquer inutilidade superveniente da lide, por não ter ocorrido qualquer facto ou circunstância que tornasse inútil ou desnecessário que a mesma houvesse de prosseguir com vista a prolação de decisão judicial sobre a relação jurídica em discussão;
I) O Tribunal ad quem já se pronunciou, no douto Acórdão datado de 16 de Novembro do presente ano, pela evidente inexistência de causa prejudicial, pelo que esta questão se mostra, por via do trânsito em julgado da decisão, definitivamente resolvida;
J) A fixação pelo Tribunal a quo, sob o ponto 13. dos factos provados, do valor locativo de mercado do prédio em crise nos autos, considerando a globalidade da prova produzida sobre este facto, obedeceu a critérios de racionalidade e lógica, com absoluto cabimento na livre apreciação que lhe é conferida quanto ao às provas em que sustentou a sua decisão;
K) Por isso, a decisão, também, quanto a este ponto da matéria de facto, é inatacável;
L) Resulta evidente que o Tribunal a quo estava na posse de elementos/provas suficientes para decidir, como fez, sobre o valor locativo do prédio – questão diferente de se saber se decidiu bem ou mal;
M) Com efeito, nos termos do nº 2 do artigo 609 do CPC, não há qualquer justificação para o apuramento do quantum da indemnização arbitrada aos Recorrentes ser relegado para liquidação posterior;
N) Por fim, sem prejuízo do vindo de dizer, nos termos do nº 1 do 651º do CPC, deve ser indeferida a junção do documento junto pelos Recorrentes com a alegação, por manifesta inadmissibilidade legal”

II. Objeto da apelação e questões a decidir

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).
Este tribunal também não pode decidir questões novas, exceto se se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso e os autos contenham os elementos necessários para o efeito ou sejam de conhecimento oficioso. - artigo 665º nº 2 do mesmo diploma.
Da mesma forma, não está o tribunal ad quem obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, desde que prejudicadas pela solução dada ao litígio.

A -- questão prévia—

1- Os recorrentes juntaram com as suas alegações documento consistente em parecer emitido por um gabinete de arquitetura, cuja admissibilidade importa considerar, dando azo a incidente que extravasa já o objeto do recurso, sendo esta a primeira questão a decidir.

Face ao alegado nas conclusões das alegações, são as seguintes as questões que cumpria apreciar:

-- as questões prejudicadas--

a) da nulidade da sentença por falta de pronúncia, porquanto não foi proferida decisão sobre a desistência do pedido formulada por um dos herdeiros habilitados do 4º Réu.
Esta questão, no entanto, visto que a nulidade foi apreciada no tribunal recorrido, que a julgou procedente e a sanou, proferindo decisão conhecendo da desistência, sem que o recorrente se tenha insurgido contra o complemento da sentença, mostra-se sanada e logo prejudicada.
b) também a questão da pendência do recurso em separado relativo à suspensão da ação até decisão final do processo 712/14.0TBFAF se mostra prejudicada, visto que o mesmo já foi objeto de decisão final, por acórdão proferido em 16 de novembro de 2017, que o julgou improcedente, concluindo pela inexistência de prejudicialidade entre ambas as ações, o que faz caso julgado nestes autos.

B -- as questões que ainda importa decidir, face ao alegado nas conclusões das alegações---

Assim, restam por decidir as seguintes questões:

2- das consequências da desistência do pedido por um dos herdeiros de um dos comproprietários do imóvel reivindicado, no que diz respeito à legitimidade das partes ou à utilidade do pedido;
3- da alteração da matéria de facto provada no que toca ao valor locativo do imóvel;
4- do fundamento para a condenação no pagamento de quantia certa.

III. Fundamentação de Facto

A causa vem com a seguinte matéria de facto provada e não provada, sublinhando-se na matéria de facto provada os factos que foram postos em causa pelo apelante (e que se mantiveram na íntegra).

Factos provados:

1. No processo de inventário obrigatório por morte de José, ocorrida a 18.08.1979, que sob o n.º 16/1979, correu termos na 2ª Secção do Tribunal Judicial de Fafe, foram adjudicados:

- a cada um dos 1º, 3ª, 4º, 5º e 6º AA., ao falecido A. F., à M. F. e ao Réu Filipe, 3/64 da nua propriedade dos imóveis pertencentes ao inventariado, entre os quais se encontra o “Verba n.º 8, …, sito no lugar da …, a confrontar de norte e nascente com o caminho, do sul com o proprietário e do poente com o caminho e G. B. sia José, descrito na Conservatória sob o n.º … e inscrito na matriz no artigo 35…”, sito na freguesia de ..., concelho de Fafe;
- à cônjuge sobreviva, Maria, 5/8 dos imóveis e 3/8 do usufruto dos mesmos imóveis pertencentes ao inventariado; (cfr. certidão judicial junta de fls. 20 a 34 dos autos).
2. Encontra-se inscrito no Serviço de Finanças, sob o artigo matricial urbano ... da freguesia de ..., o prédio em propriedade total sem andares nem divisões susceptíveis de utilização independente, afecto a armazéns e actividade industrial, com 1 piso e 1 divisão, com área total e de implantação de 700 m2, edificado em terreno com 2.300 m2, tendo como titular inscrito do rendimento predial Maria, na qualidade de cabeça de casal (cfr. caderneta predial junta a fls. 16 dos autos);
3. No inventário por morte de Maria, ocorrida a 25.02.2008, que sob o n.º 1959/08.6TBFAF, correu termos no 2º Juízo do Tribunal Judicial de Fafe, foi adjudicado aos 1º, 3ª, 4º, 5º e 6º AA. e a A. F., em comum e na proporção dos respectivos quinhões, entre outros, o seguinte direito:

VERBA N.º 2, 5/8 de Edifício destinado á industria, de Rés do chão, com seis divisões, com a superfície coberta de 800 m2 e logradouro com 1.500 m2, sito no lugar da …, a confrontar do norte e nascente com caminho, sul com proprietário e poente com A. D., descrito na Conservatória dos Registo Predial sob o n.º ... e inscrito na matriz urbana respectiva sob o artigo 784 (…). Este prédio urbano, com o respectivo logradouro, corresponde ao prédio rústico antes existente, inscrito na matriz sob o artigo 35, onde aquele foi construído”, sito na freguesia de ..., concelho de Fafe; (cfr. certidão judicial junta a fls. 35 e ss. dos autos);
4. Na conferência de interessados do processo de inventário referido no número anterior, foi acordado por todos os interessados, relativamente à VERBA N.º 2 aí descrita, “…no sentido de que a alegada existência de benfeitorias revestem carácter litigioso, pelo que poderão vir a ser objecto de acção declarativa cível própria.” (cfr. certidão judicial junta a fls. 42 dos autos);
5. Através do Procedimento Simplificado de Habilitação de Herdeiros e Registos n.º … da Conservatória do Registo Predial, M. F., na qualidade de cabeça de casal, O. M., J. C. e G. R., na qualidade de herdeiros, foram habilitados únicos herdeiros de A. F., falecido a 24.11.2012, no estado de casado em únicas núpcias de ambos com M. F., no regime de comunhão geral (cfr. certidão junta a fls. 17 e ss. dos autos);
6. Entre o final de 2007 e início 2008, o 1º R. viu-se forçado a deixar as instalações onde desenvolvia a sua actividade industrial, têxtil, sitas na freguesia de ..., concelho de Fafe (artigo 6º da p.i.);
7. A actividade referida no número anterior era desenvolvida em proveito comum do casal dos 1ºs. Réus, constituindo o meio de subsistência da sua família (artigo 7º da p.i.);
8. A mãe do 1º R., depois de consultar o 1º A., autorizou que aquele passasse a desenvolver a sua actividade no prédio referido no facto descrito no facto provado número 2 (artigo 8º da p.i.);
9. O que veio a suceder a partir do início do mês de Fevereiro de 2008 e se mantém até à presente data (artigos 9º e 13º da p.i.);
10. Era pretensão inicial do 1º Réu, aceite pela mãe e pelo 1º Autor, ocupar o prédio referido no facto provado número 2 temporariamente, até encontrar outra solução para o desenvolvimento da sua actividade (artigo 10º da p.i.);
11. Actualmente, a 2º Ré exerce a sua actividade no imóvel referido no facto provado número 3, com a permissão, sob as ordens e no interesse do 1º Réu (artigos 16º e 17º da p.i.);
12. O 1º Réu marido é sócio da 2ª Ré “F. W. Têxteis Ld.ª”, que tem como gerente Filipe (certidão do registo comercial junta fls. 57 e ss. dos autos);
13. Atenta a dimensão, as condições, a aptidão e a localização do imóvel referido no facto provado número 2, o seu valor locativo de mercado é não inferior a € 1.000,00 (mil euros) mensais (artigo 19º da p.i.);
14. Por decisão, transitada em julgado a 01.12.2014, proferida na ação declarativa com processo sumário n.º 1969/08.2TBFAF que correu termos no J1 da Instância Local de Fafe, proposta pelos aqui Autores contra os aqui Réus Filipe e mulher, M. E., e contra AC e Amélia, foi reconhecido o direito de preferência dos aí Autores sobre o prédio identificado no artigo 1º da p.i. da presente ação (descrito sob o número 415 da freguesia de ..., na Conservatória do Registo Predial) e determinado que os Autores passem a ocupar a posição dos adquirentes (aí 2ºs Réus AC e Amélia) na compra e venda outorgada por escritura pública de 18.05.2001, pela qual os 1ºs Réus (Filipe e M. E.) venderam aos 2ºs, 3/64 indivisos da raiz ou nua propriedade daquele (entre outros) prédio (cfr. certidão judicial junta a fls. 254 e ss. dos autos).

Factos Não Provados

1. Era pretensão inicial do 1º R. ocupar o prédio referido no facto provado número 2 durante meia dúzia de meses (artigo 10º da p.i.);
2. Ficou, então, acordado, entre o 1º Réu, M. F. e os Autores que durante o período referido no número anterior aquele entregaria à mãe e irmãos um valor mensal de € 1.000,00 (mil euros) (artigo 10º da p.i.);
3. E que, caso o 1º R. pretendesse ocupar o prédio a título definitivo, pagaria uma renda pelo gozo do mesmo, de valor a acertar com os irmãos e a constar de um contrato de arrendamento a celebrar por escrito (artigo 11º da p.i.);
4. O valor locativo de mercado do imóvel referido no facto provado número 2 é de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) mensais (artigo 19º da p.i.);
5. Os Autores interpelaram o 1º Réu para lhes entregar o imóvel (artigo 15º da p.i.).

IV. Fundamentação de Direito

1) da junção dos documentos

Os Recorrentes apresentaram, com as suas alegações de recurso, um documento, consistente em parecer elaborado por um gabinete de arquitetura, datado de outubro de 2017, relativo ao imóvel cujo valor locativo é objeto da matéria de facto provada impugnada.

Os recorridos pugnam pela inadmissibilidade desta junção.

Nos termos do artigo 651º do Código de Processo Civil, as partes apenas podem juntar documentos cuja apresentação não tenha sido possível até ao encerramento da discussão (seja essa superveniência subjetiva ou objetiva) e no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.

Com efeito, determina o nº 1 do artigo 651º do Código de Processo Civil: “1 — As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância”. O nº 2 deste preceito refere-se a “pareceres de jurisconsultos”, não havendo dúvidas nos autos que o parecer junto não é da autoria e sobre matéria da especialidade de juristas.

Por seu turno, dispõe a norma para a qual remete este dipositivo: “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.”

Do exposto, resulta a excecionalidade da junção dos documentos nesta fase recursiva.

Assim, devia o recorrente, aquando da junção do documento justificar a sua pertinência, o que não fez. Podendo ser duvidoso se tal omissão é suficiente para a rejeição da apresentação de documentos, desde já se considera ser de explanar a inadmissibilidade desta junção por razões menos formais.

Na parte final do artigo 651º do Código de Processo Civil,prevêem-se aquelas situações em que, face a todos os elementos constantes do processo, a junção do documento não era necessária anteriormente, mas se tornou essencial, supervenientemente, face ao teor da decisão recorrida.

Dúvidas não se colocam que a matéria que os recorrentes pretendem demonstrar com este “parecer” era questão central de um dos pedidos formulados pelos Autores e logo que o mesmo era necessário logo no momento da apresentação da contestação, na perspetiva do interesse dos Réus, momento próprio para a apresentação dos documentos que visam a contraprova dos factos que constituem a causa de pedir (cf artigo 423º nº 1 do Código de Processo Civil).

Assim, afastado o preenchimento da parte final do artigo 651º nº 1 do Código de Processo Civil, resta-nos a situação prevista no artigo 425º do Código de Processo Civil: verificar a superveniência objetiva ou subjetiva do parecer.

Quanto a estes casos, concretizam-se com a alegação e demonstração, pelo apresentante, de que não tinha os documentos à sua disposição em momento anterior ao requerimento para a sua junção.

Assim se excluem as situações em que se agisse com a devida diligência poderia aceder aos documentos até essa data: consideram-se então os mesmos disponíveis para o apresentante, sendo-lhe imputável, a título de negligência, o facto de não os ter na sua posse nos momentos devidos.

No entanto, esta indisponibilidade abarca, quer situações objetivas, quer situações subjetivas; cabe neste conceito, quer a indisponibilidade física dos documentos, quer o desconhecimento fundamentado da sua existência (torna-se a salientar: desde que nenhum lhe seja imputável a título de negligência).

Ora, a obtenção de uma avaliação está, em regra, na disponibilidade do interessado na sua apresentação, bastando solicitá-lo a quem o possa e queira prestar. Assim, o facto de não ter sido elaborado e junto com a contestação ou nos vinte dias anteriores à audiência final tem que ser imputada ao apresentante que não o requereu no devido tempo.

Enfim, é patente a intempestividade da junção do parecer elaborado por arquiteto, por não ser nem superveniente por causa não imputável ao apresentante, nem desnecessário até à prolação da decisão recorrida.

Termos em que se não admite a junção desse documento e se determina o seu oportuno desentranhamento e entrega aos recorrentes.

Mais se condenam os apresentantes, nos termos do artigo 443º nº 1 do Código de Processo Civil, no pagamento de uma multa, que se fixa em 2 UCs.
*
2) das consequências da desistência do pedido por um dos herdeiros de um dos comproprietários do imóvel reivindicado, (no que diz respeito à legitimidade das partes ou à utilidade do pedido).

A decisão desta questão resume-se às seguintes considerações:

a) -- a ação de reivindicação não precisa de ser deduzida por todos os comproprietários, pelo que a desistência de um nunca poderia pôr em causa a legitimidade ativa dos demais;

Quanto ao litisconsórcio necessário, determina o artigo 33º nº 1 do Código de Processo Civil que se “a lei ou o negócio exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade”. Os nº 2 e 3 preveem os casos em que que é “necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal. A decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado."

O litisconsórcio necessário, quanto ao conteúdo da decisão, pode ser simples ou unitário: é simples, quando a decisão pode ser distinta para cada um dos litisconsortes; é unitário, quando a decisão tem de ser uniforme para todos os litisconsortes, correspondendo a situações em que não podem ser proferidas decisões divergentes sobre o objeto do processo.

Se a falta de intervenção de um litisconsorte puser em causa o efeito útil normal da decisão, isto é, se não permitir a regulação em definitivo da situação concreta entre as partes, levando a que ela possa a ser subvertida ou a sofrer perturbação intolerável na hipótese de outra decisão vir a ser eventualmente proferida relativamente aos demais sujeitos da relação, a ação terá que ser proposta contra todos os interessados.

No que toca à ação de reivindicação é pacifica a inexistência de qualquer litisconsórcio, quer legal ou convencional, quer natural, face ao teor do nº 2 do 1405º do Código Civil, que determina “Cada consorte pode reivindicar de terceiro a coisa comum, sem que a este seja lícito opor-lhe que ela lhe não pertence por inteiro.”

Assim, é inequívoco que, no que toca à ação de reivindicação, que não é necessária a presença de todos os comproprietários para que a um terceiro se determine a entrega da coisa.

Já quanto ao pedido indemnizatório, resultante da privação do uso, pode atender-se aos prejuízos que cada demandante comproprietário sofreu por essa perda, podendo, em consequência, conhecer-se do direito de cada um destes na medida da sua quota-parte na compropriedade no prédio, sem que se mostre necessário que todos estejam na ação para que seja regulada em definitivo a situação concreta entre as partes. (em caso semelhante o Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, de 06/27/1995, no processo 087096, sendo este, e todos os demais acórdãos citados sem indicação de fonte, consultados no portal dgsi.pt.)

Assim, não seria a falta de um dos comproprietários que determinaria a ilegitimidade ativa por preterição de litisconsórcio necessário.

b) -- no entanto, porquanto o desistente foi habilitado nos autos como herdeiro de um dos comproprietários (o 4º Autor), conjuntamente com os demais, verifica-se nesse aspeto litisconsórcio necessário em relação aos demais herdeiros desse comproprietário;

Determina o artigo 2091º do Código Civil que, fora dos casos previstos nos artigos 2087º (administração dos bens pelo cabeça de casal), 2088º (exigência de entrega dos bens pelo cabeça de casal e uso de ação possessórias pelo mesmo e pelos herdeiros), 2089º (cobrança de dívidas pelo cabeça de casal), 2090º (venda de bens e satisfação de encargos pelo cabeça de casal) e do imposto pelo artigo 2078º do Código Civil (petição de restituição para a herança) os direitos relativos à herança só podem ser exercidos por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros.

Perante este quadro legal de poderes e faculdades de que os herdeiros ut singuli dispõem em relação aos bens da herança, a conclusão não pode deixar de ser no sentido de que eles não podem, cada um ou alguns, sem a presença dos demais, exercer a ação de reivindicação ou proceder ao exercício do direito indemnizatório pela violação desse direito.

Verifica-se assim, aqui, em relação aos sucessores do 4º Autor, uma situação de litisconsórcio necessário.

Importa, pois, verificar se a desistência de um destes herdeiros contende de alguma forma com o direito dos demais herdeiros, visto que se observou já que em não impede que os demais comproprietários exerçam o seu direito à reivindicação e, na sua quota parte, e exijam indemnização pela violação do seu direito.

c) -- a desistência do pedido declarada por um dos Autores em caso de litisconsórcio necessário ativo não coloca em causa a legitimidade dos demais, porquanto tem os seus efeitos limitado às custas do processo, como decorre do disposto no artigo 288º, nº 2, do Código de Processo Civil.

Esta norma explica-se por si só: visto que uma parte não pode dispor de direito que não tenha, se a relação jurídica em causa respeita a várias pessoas e exige uma decisão conjunta para todos os litisconsortes, não pode permitir-se que um dos interessados decida, por si, o destino dos interesses de todos os demais.

E assim, a eventual desistência ou transação de um dos litisconsortes só produz efeitos quanto a custas, não se repercutindo na relação jurídica controvertida (cf neste sentido Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Porto, de 11/25/2010, no processo 308/05.8TBMTS-A.P1).

Destarte, a declaração de desistência de José, herdeiro do 4º Réu, não tem qualquer outra influência senão nas custas, não interferindo na legitimidade das partes, nem retirando qualquer interesse à contenda.
Improcede esta pretensão recursória.

3) Da alteração da matéria de facto provada.

Pretende o apelante que se dê como não provado que “13. Atenta a dimensão, as condições, a aptidão e a localização do imóvel referido no facto provado número 2, o seu valor locativo de mercado é não inferior a € 1000,00 (mil euros) mensais (artigo 19º da p.i.)”.
Sustentam-se para tanto os recorrentes no facto de, no seu entender, não existirem elementos probatórios suficientes para tanto nos autos, porquanto:

--a única testemunha que depôs sobre o valor locativo do imóvel referiu uma renda mensal de cerca de 1.500,00 € mês, salientando o recorrente que esta não conhece o interior do pavilhão, não sabe a sua área exata, se tem licença para ocupação;
-- não se deve dar relevo probatório às declarações de parte de A. F., porquanto interessado na matéria;
-- com a intervenção da “Troika” deu-se uma alteração do valor locativo dos imóveis.
Compulsada a sentença a mesma esclarece de forma cuidada a resposta a este ponto da matéria de facto provada:
“No que respeita ao valor de arrendamento do imóvel, o tribunal teve em linha de conta as declarações de parte do Autor A. F. e o testemunho de Manuel.
O primeiro disse que o pavilhão teve, antes de 2007, um inquilino que pagava a renda mensal de € 1.000,00, mas que o Réu e a mãe tinham pensado fixá-la em € 1.500,00, embora este valor não tivesse sido transmitido ao Réu.
O segundo, com base na sua experiência do ramo imobiliário, embora não conheça o estado actual pavilhão pelo interior, disse que o seu actual valor no mercado de arrendamento será de € 1.500 mensais, avançando também que há dez anos atrás este valor era igual ou superior, porque tem havido uma redução nos últimos anos.
O tribunal considerou mais realista o valor de € 1.000,00 mensais, quer por se tratar do que anterior inquilino pagava, antes da ocupação do imóvel pelo Réu, quer porque, segundo Manuel, o mercado não apresentou melhorias durante os últimos dez anos.”
Importa, pois, explanar os critérios que permitem apurar se este facto se deve ou não dar como provado.

a) Dos critérios para a apreciação da impugnação da matéria de facto

Na reapreciação dos meios de prova deve-se assegurar o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria - com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância -, efetuando-se uma análise crítica das provas produzidas.
É à luz desta ideia que deve ser lido o disposto no artigo 662º nº 1 do Código de Processo Civil, o qual exige que a Relação faça nova apreciação da matéria de facto impugnada.
É patente que a falta da imediação de que padece o tribunal de recurso limita, por natureza, o acesso a uma mais profunda apreciação da convicção com que são proferidas as declarações dos intervenientes processuais (veja-se que a comunicação humana não é apenas verbal, exigindo a sua correta interpretação que as palavras e inflexões da voz sejam contextualizados com os gestos, a postura corporal, os olhares, todos estes demais elementos, consistentes na comunicação não verbal e tantas vezes afastadas da possibilidade de controlo do declarante e por isso mais fidedignas).

No entanto, como explanado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-10-2012 no processo 649/04.2TBPDL.L1.S1, (sendo este e todos os acórdãos citados sem menção de fonte consultados no portal www.dgsi.pt ) “A reapreciação das provas que a lei impõe ao Tribunal da Relação no art. 712.º, n.º 2, do CPC, quando haja impugnação da matéria de facto que haja sido registada, implica que o tribunal de recurso, ponderando as razões de facto expostas pelos recorrentes em confronto com as razões de facto consideradas na decisão, forme a sua prudente convicção que pode coincidir ou não com a convicção do tribunal recorrido (art. 655.º, n.º 1, do CPC).

A reapreciação da prova não se reduz a um controlo formal sobre a forma como o Tribunal de 1.ª instância justificou a sua convicção sobre as provas que livremente apreciou, evidenciada pelos termos em que está elaborada a motivação das respostas sobre a matéria de facto.”

Visto que vigora também neste tribunal o princípio da livre apreciação da prova, há que mencionar que esta não se confunde com a íntima convicção do julgador.

A mesma impõe uma análise racional e fundamentada dos elementos probatórios produzidos, que estes sejam valorados tendo em conta critérios de bom senso, razoabilidade e sensatez, recorrendo às regras da experiência e aos parâmetros do homem médio.

A formação da convicção não se funda na certeza absoluta quanto à ocorrência ou não ocorrência de um facto, em regra impossível de alcançar, por ser sempre possível equacionar acontecimento, mesmo que muito improvável, que ponha em causa tal asserção, havendo sempre a possibilidade de duvidar de qualquer facto.

Por princípio, a prova alcança a medida bastante quando os meios de prova conseguem criar na convicção do juiz – meio da apreensão e não critério da apreensão – a ideia de que mais do que ser possível (pois não é por haver a possibilidade de um facto ter ocorrido que se segue que ele ocorreu necessariamente) e verosímil (porque podem sempre ocorrer factos inverosímeis), o facto possui um alto grau de probabilidade e, sobretudo, um grau de probabilidade bem superior e prevalecente ao de ser verdadeiro o facto inverso. Donde resulta que se a prova produzida for residual, o tribunal não tem de a aceitar como suficiente ou bastante só porque, por exemplo, nenhuma outra foi produzida e o facto é possível.” cf o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26-06-2014 no processo 1040/12.2TBLSD-C.P1

A convicção do julgador é obtida em concreto, face a toda a prova produzida, com recurso ao bom senso, às regras da experiência, quer da vida real, quer da vida judiciária, à diferente credibilidade de cada elemento de prova, à procura das razões que conduziram à omissão de apresentação de determinados elementos que a parte poderia apresentar com facilidade, a dificuldade na apreciação da prova testemunhal e a fragilidade deste meio de prova.

Igualmente importa a “acessibilidade dos meios de prova, da sua facilidade ou onerosidade, do posicionamento das partes em relação aos factos com expressão nos articulados, do relevo do facto na economia da ação.” (mesmo Acórdão).

b) Quanto ao valor das declarações de parte

Temos por certo que as declarações de parte, pelo menos nos casos em que a prova possa ser efetuada por outros meios e não tenha uma natureza pessoal, em regra, não deve ser suficiente para, desacompanhada de outros elementos que sustentem a sua veracidade, sustentar a verificação de factos.

Segue-se, assim, uma postura mais tradicional quanto a este meio de prova, sem prejuízo de se ter também como certo que estas declarações, desde que não incluam confissão, são livremente valoráveis. Mas na sua análise crítica deve ponderar-se o interesse direto que a parte tem no caso, sem prejuízo deste interesse não poder de imediato fazer concluir pela inveracidade do afirmado, desde que favorável ao declarante.

Há, aliás, factos que quase só por este meio de demonstram, como os de natureza estritamente doméstica e pessoal, outros do foro privado e íntimo que habitualmente não são percecionados por terceiros de forma direta, mas na experiência dos tribunais constata-se com frequência que o interesse do declarante exige ao julgador que encontre outros elementos que sustentem a veracidade das afirmações da parte, por ser comummente percecionável a sua postura emotiva e parcial. Assim, como regra, sem outros elementos que sustentem estas declarações, torna-se difícil encontrar o grau de certeza que permite a prova de um facto.

Com efeito, fora de qualquer situação de especial dificuldade probatória, mormente pela inexistência de outros elementos demostrativos face à natureza do facto, e sem quaisquer elementos secundários que permitam ao tribunal estribar-se em elementos objetivos, mais desinteressados ou regras evidente das experiência comum, permitir que, sem mais, o tribunal formasse a sua convicção nas simples declarações das partes, implicaria, quase, o desvirtuar da regra do ónus da prova, contentando-se o tribunal com a mera alegação dos factos, desta feita presencial.

Não obstante, se existirem outros meios probatórios ou elementos que permitam alcançar a sinceridade do que é declarado pela parte, entende-se que nada obsta a que as suas declarações sejam valorada e, após análise prudente e crítica, somada aos demais elementos probatórios carreados para os autos, permitindo-se que o seu conjunto aconselhe a convicção quanto a tal evento, mesmo que nenhum, sozinho, permitisse alcançar o grau de certeza ou probabilidade necessária para a prova do facto.

Considera-se ainda que há que ser aberta exceção para casos especiais em que a natureza do facto aconselha que se seja mais parco na exigência de outros elementos para a sua prova, para além das declarações da parte, mas esta sempre criteriosamente analisadas e sujeitas a raciocínio crítico.

c) Isto posto, vejamos se os elementos probatórios produzidos são suficiente para a prova destes factos.

A testemunha inquirida depôs com total isenção e distanciamento e com conhecimento da matéria por ser da sua área profissional.
Apesar de ter afirmado ter visitado o espaço há muito tempo, foi sincero quanto à falta de alguns elementos concretos que seriam, necessariamente, importantes para uma opinião mais balizada quanto ao valor do imóvel, como a existência de licença de utilização.

A mesma considerou elementos objetivos do imóvel como a sua área, o seu estado exterior, a sua idade e o local onde se situa, referindo um valor locatício atual e mensal de 1.500,00 €.

A parte, por seu turno, nas suas declarações mencionou que em data anterior a 2008 (à ocupação do imóvel pelo Réu) este estava arrendado pelo valor de € 1.000,00 €, mas que o Réu e a mãe tinham pensado arrendá-lo em 1.500,00 €, o que remete para o valor referido pela testemunha.

Considerando que a prova produzida, sem qualquer elemento que a contradite, aponta já com segurança para o montante supra mencionado, mas também que com facilidade poderiam ter sido trazidos elementos ainda mais seguros sobre tal valia, que o estado do mercado desse arrendamento terá piorado nos últimos dez anos (como refere o recorrente nas suas alegações), assim como a falta de obras no pavilhão, bem andou o juiz a quo, utilizando de todo o cuidado na fixação do valor e recorrendo às regras da experiência, em concluir, como concluiu, que este valor locativo não é inferior a 1.000,00 € mensais, afastando algum risco no empolamento que poderia ter ocorrido no depoimento e declarações em causa.

Termos em que se entende que o ponto nº 13 da matéria de facto provada se mostra suportado pela prova produzida, não havendo que o afastar.
*
A aplicação do direito quanto à atribuição da indemnização: da fundamentação da condenação no pagamento da quantia de 1.000,00 € mensais.

Estipula o artigo 483º do Código Civil: Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.

São, assim, elementos constitutivos da responsabilidade civil: o ato ilícito, a culpa, o dano e o nexo de causalidade adequada entre o facto e o dano.

O elemento básico da responsabilidade é o facto voluntário do agente, um facto dominável pela vontade, um comportamento ou uma forma de conduta humana.

É também essencial para se apurar a obrigação de indemnizar que o facto ilícito culposo tenha causado um prejuízo a alguém. O dano é a perda in natura que o lesado sofreu, em consequência de um certo facto, nos interesses materiais, espirituais ou morais que o direito violado ou a norma jurídica infringida visam tutelar.

Nem todos os danos sobrevindos ao facto ilícito são incluídos na responsabilidade do agente: exige-se um nexo de causalidade entre o facto e o dano, para cuja aferição foi adotada pelo legislador a teoria da causalidade adequada, a qual determina que para impor a alguém a obrigação de reparar o dano sofrido por outrem, não basta que o facto praticado pelo agente tenha sido, no caso concreto, condição sine qua non do dano, é necessário ainda, que em abstrato, o facto seja uma causa adequada do dano – artigo 563º do Código Civil.

Quanto á obrigação de indemnização, estipula o artigo 562º do Código Civil que quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.

Assim, rege no nosso Direito Civil o princípio da reposição natural quanto à indemnização, sendo dever do lesante repor a situação no estado anterior à lesão, atendendo-se ao dano real ou concreto.

Pediram os Autores a condenação dos Réus no pagamento de uma indemnização global de 205.000,00 € pela ocupação ilegítima do prédio desde fevereiro de 2008 até àquela data, à razão de 2.500,00 € por mês.

Pedem a indemnização pela chamada privação do uso que sofreram, invocando que o uso que dele fazem os Réus os impedem de o arrendarem, rentabilizando-o.

Não há dúvidas que o artigo 1305º do Código Civil confere ao proprietário os direitos de uso e fruição da coisa pelo que com a ocupação do imóvel está impedido de gozar dessa coisa.
E daqui pode resultar, como classicamente é entendido, um dano emergente, derivado da utilização mais onerosa de um bem em substituição do esbulhado ou um lucro cessante, em consequência da perda de rendimento que o bem esbulhado concederia.
Tem sido modernamente aceite (embora não pacificamente, mas já maioritariamente, embora nem sempre em termos uniformes) que também pode surgir um outro dano, que consiste na própria privação do uso da coisa. Conceção esta que foi trazida a lume entre nós por Júlio Gomes in O Dano de Privação do Uso, RDE 12 (1986)p. 196 e seguintes, foi também desenvolvida por Abrantes Geraldes, Temas da Responsabilidade Civil, I Vol., Indemnização do Dano da Privação do Uso, 2ª ed., tendo já vários outros seguidores na doutrina como Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, 297 e 298.
A tese que afasta a indemnização da simples perda da faculdade de uso baseia-se no facto de que é condição da indemnização a existência de um dano efetivo e concreto, a existência de prejuízos decorrentes da não utilização do bem, e não uma perda de uma faculdade abstrata concedida por um direito, por um lado e, por outro, que a teoria da diferença, imposta pelo Código Civil no cálculo da indemnização, não abarca a perda de faculdades, sem base material, por ser aí impossível encontrar uma desigualdade patrimonial concreta entre a situação existente e a que existiria caso não tivesse tido lugar o facto danoso.
Na jurisprudência que pugna pela indemnização da simples privação do uso salienta-se que a perda da possibilidade de utilização do bem quando e como lhe aprouver tem valor económico e recorre-se para o cálculo da correspondente indemnização á equidade, por não ser possível avaliar “o valor exato dos danos”. Entre muitos outros, o Ac do STJ de 05.08.2013 no processo nº 07B1849, vai neste sentido, mas no entanto, considerou que teria que se obviar a um “enriquecimento injustificado do autor, não compatível com a teoria da diferença, que é a regra básica do cálculo da indemnização no âmbito da responsabilidade civil (nº 2 do artigo 566º do Código Civil)”.

Como salienta Pinto de Almeida, in “ Responsabilidade Civil Extracontratual” no texto que apresentou no Curso de Especialização Temas de Direito Civil organizado pelo CEJ, disponível in www.trp.pt/ficheiros/estudos/pintoalmeida_respcivilextracontratual.pdf, 2010, surgiu uma tese diferente, que pode considerar-se intermédia: se, por um lado, se “afirma que não basta a simples privação do uso do bem, também não exige a prova de danos concretos e efetivos; será essencial a alegação e prova da frustração de um propósito real, concreto e efetivo de proceder à sua utilização.”, remetendo para o Ac STJ de 09.12.2008, no processo 08A3401, disponível no portal dgsi.pt.

Pensa-se, porém, que a questão da ressarcibilidade da “privação do uso” não pode ser apreciada e resolvida em abstrato, aferida pela mera impossibilidade objetiva de utilização da coisa.
Na verdade, uma coisa é a privação do uso e outra, que conceptualmente não coincide necessariamente, será a privação da possibilidade de uso.
Uma pessoa só se encontra realmente privada do uso de alguma coisa, sofrendo com isso prejuízo, se realmente a pretender usar e a utilizasse caso não fosse a impossibilidade de dela dispor.
Não pretendendo fazê-lo, apesar de também o não poder, está-se perante a mera privação da possibilidade de uso, sem repercussão económica, que, só por si, não revela qualquer dano patrimonial indemnizável.
É que bem pode acontecer que alguém seja titular de um bem, móvel ou imóvel, e apesar de privado da possibilidade de o usar durante certo tempo, não sofra com isso qualquer lesão por não se propor aproveitar das respetivas vantagens ou utilidades, como pode suceder com o dono de um automóvel que o não utiliza ou utiliza em circunstâncias que uma certa indisponibilidade não afeta, ou com o proprietário de um terreno que lhe não dá qualquer utilização.
Bastará, no entanto, que a realidade processual mostre que o lesado usaria normalmente a coisa, para que o dano exista e a indemnização seja devida.
Por isso se tem entendido que não basta a simples privação, em si mesma, sendo necessário ainda que se alegue e prove a frustração de um propósito de proceder à utilização da coisa, demonstrando o lesado que a pretenderia usar, dela retirando utilidades que a mesma normalmente lhe proporcionaria, não fora a privação dela pela atuação ilícita de outrem, o lesante.
Não é, pois, suficiente a simples privação em si mesma: torna-se necessário que o lesado alegue e prove que a detenção ilícita da coisa por outrem frustrou um propósito real – concreto e efetivo – de proceder à sua utilização.
A privação do uso é condição necessária, mas não suficiente, da existência de um dano correspondente a essa realidade de facto”.
O dano da privação do uso reside essencialmente na impossibilidade de usar a coisa, causada pelo ato ilícito, prolongando-se enquanto durar.
Competindo ao lesado provar o dano ou prejuízo que quer ver indemnizado, deve alegar e provar a privação da coisa, num contexto de onde se retire o propósito de proceder à utilização da mesma.
A prova de tal circunstancialismo de facto, isto é, do uso normal da coisa, em “muitos casos poderá advir de simples presunções naturais ou judiciais, a retirar pelas instâncias da factualidade envolvente”. cf, entre muitos, Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, de 09/10/2013, no processo 438/11.8TBTND.C1. e do Tribunal da Relação de Porto no processo 1091/05.3TBMCN.P2 .
Segue-se esta solução intermédia, por ser a que parece melhor adaptar-se à necessidade de proteger os interesses do lesado, face á necessidade de o ressarcir dos prejuízos causados pela perda da possibilidade de uso, mas também, por outro lado, face ao interesse em impedir um enriquecimento injusto deste nos casos (excecionais, na verdade, mas que se verificam na prática) em que este nenhuma perda tem.
Com efeito, mesmo no instituto do enriquecimento sem causa, a medida da restituição é a do empobrecimento, não a do enriquecimento, quando não coincidam.
É certo que nesta sede se está perante a responsabilidade por ato ilícito, cabendo, pois, também na indemnização caracter sancionatório, mas esta vertente não permite um enriquecimento do lesado desproporcional á perda que sofreu.
Voltando ao caso presente.
Decorre da matéria de facto provada que os Réus ocupam o imóvel desde 2008, sem, no entanto, se ter demonstrado que os Autores lhe exigiram em data anterior à citação a entrega do imóvel.
Assim, só com exigência do imóvel, ocorrida com a citação destes autos, se logra encontrar o contexto de onde se retire o propósito dos Autores de proceder à utilização do mesmo, tendo perdido o valor locativo encontrado.
Encontrado este contexto a partir da citação, importa condenar os Autores no seu pagamento.
E o mesmo, caso se não apurasse o valor de mercado do arrendamento, sempre seria, então, passível de ser obtido com recurso à equidade, o que aqui se não mostrou necessário.
Assim, improcede in totum a apelação.

V. Decisão:

Por todo o exposto julga-se a apelação improcedente e em consequência, confirma-se integralmente a sentença recorrida.
Custas pelos Recorrentes.
Notifique.
Guimarães, 19 de abril de 2018

Sandra Melo
Amílcar Andrade
Heitor Gonçalves