Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2749/14.1T8BRG.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CULPA EXCLUSIVA
PEÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/10/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1 – Age com culpa exclusiva o peão que inicia o atravessamento de uma estrada de forma imprudente, sem se certificar de que o pode fazer sem perigo de acidente, tendo em conta a aproximação de um veículo, a cerca de 10 metros de distância, cuja trajectória cortou, sem que o veículo, que circulava a velocidade de 40 a 50 km/hora, pudesse evitar o embate.
2 – Sendo de atribuir o acidente exclusivamente a actuação culposa da vítima, não concorrendo para a respectiva eclosão, em termos de causalidade adequada, o risco inerente à circulação do veículo envolvido no acidente, porque a potencialidade de perigo que encerra a sua circulação foi alheia ao sinistro, não se pode considerar a concorrência do risco com a culpa exclusiva da vítima.
3 – Tal interpretação do disposto nos artigos 503º, nº1, 504º, nº1, 505º e 570º do Código Civil, não colide com o Direito comunitário, particularmente com os nºs 3°, n°1, da Primeira Directiva (72/166/CEE), 2°, n°1, da Segunda Directiva (84/5/CEE) e 1°-A da Terceira Directiva (90/232/CEE), introduzido pelo art. 4° da Quinta Directiva (2005/14/CE), todas relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de automóveis, por competir à legislação do Estado-membro regular, no seu direito interno, o regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação de veículos automóveis, conforme já foi decidido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia.
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2749/14.1T8BRG.G1
2.ª Secção Cível – Apelação
Relatora: Ana Cristina Duarte (R. n.º 529)
Adjuntos: João Diogo Rodrigues
Anabela Tenreiro

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Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I.RELATÓRIO
S (SUVA), pessoa coletiva de direito helvético, com sede na Suíça, deduziu ação declarativa contra L Seguros, SA pedindo que a ré seja condenada a pagar à autora a quantia de € 124.052,56 (posteriormente ampliada € 134.761,37), acrescido de juros de mora desde a citação, por tais serem os montantes que pagou em virtude de um atropelamento de que foi vítima um seu beneficiário e pelo qual foi responsável o condutor do veículo atropelante, cuja responsabilidade civil se encontrava transferida para a ré, bem como danos futuros nos quais a autora venha a incorrer decorrentes do acidente objeto dos autos e, mais concretamente, a condenação da ré a indemnizar e reembolsar nos termos do artigo 495.º do CC todos os gastos desembolsados pela autora em virtude do acidente, indicando-se, entre outros, despesas de assistência médica, medicamentosa, assistência e pensões, acrescidos dos correspondentes juros de mora vincendos, calculados à taxa legal, até efetivo e integral pagamento.
Contestou a ré sustentando que o acidente ocorreu por culpa exclusiva do peão, beneficiário da autora, e impugnando por desconhecimento as lesões por aquele alegadamente sofridas, bem como os montantes que a autora lhe pagou.
Dispensada a audiência prévia, foi definido o objeto do litígio e fixados os temas da prova.
Teve lugar a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença que julgou improcedente a ação, absolvendo a ré do pedido.
Discordando da sentença, dela interpôs recurso a autora, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes
Conclusões:
1. Escreve-se na sentença:
“5 - Surpreendido, o condutor do XF nada pôde fazer para evitar embater, como embateu, com a parte da frente do veículo na perna esquerda do peão;
Aliás, reconheceu ter pago ao proprietário do veículo atropelante o custo da reparação do veículo, sinal inequívoco de que se considerava responsável pela produção do sinistro”.
2. De facto, a minutos 0.33 o lesado disse que “deu ao condutor 60.00 € para não se chatear como era pouco.”
3. A minutos 9.46 disse “como era pouco dinheiro para não se chatear”.
4. A instância do Tribunal a minutos 15.00 o lesado continua a dizer que pagou para não se chatear, mas que achava que não era culpado.
5. A minutos 10.02 disse “eu vou por a acção para quê, eu resolvi as coisas na Suíça. A Suva deu-me a invalidez... “
6. Deste depoimento conclui-se que o lesado pagou para não ser chateado e
porque era pouco.
7. A minutos 3.10 o lesado disse que parou, viu se havia carros a passar, que passaram dois carros e depois verificou que não vinham carros e avançou a seguir avançou e foi atropelado.
8. A minutos 20.21 o lesado afirmou que como o seu seguro era na Suíça era a Suíça que tinha que resolver o acidente.
9. Atento os depoimentos supra é importante modificar os factos acima indicados e dar resposta aos mesmos nos seguintes termos:
“O lesado parou a sua moto, desmontou-se da mesma e assegurou-se que podia atravessar a via, deixou passar 2 viaturas e depois foi colhido pela viatura segurada na R.
Aliás, reconheceu ter pago ao proprietário do veículo atropelante o custo da reparação do veículo, o que não é de forma alguma sinal inequívoco de que se considerava responsável pela produção do sinistro. Tal pagamento decorre apenas da situação de o lesado ter pago “como era pouco dinheiro para não se chatear”.
De facto, o lesado entendia estar plenamente indemnizado pela Suva, pelo que não haveria mais nada a reclamar da L, o que se confirma com a afirmação de que como a Suíça pagava tudo não valia a pena por uma acção contra a L, aliás o lesado disse que quem tinha que tratar do assunto era o seguro na Suíça (ver indicação de depoimentos e minutos supra).
Há que aditar o seguinte facto provado:
No local não há qualquer local destinado à passagem de peões.
10. A sentença recorrida sustenta que foi o lesado quem deu causa ao acidente, por ter atravessado a via após ter-se apeado, sem ver se vinha algum carro
11. Ora, não havia no local nenhuma passadeira de peões (facto que aparentemente é indiferente ao Tribunal recorrido...).
12. O facto de o lesado ter atravessado a via, não é por si só bastante para o considerar o exclusivo responsável pela produção do sinistro
13. O Tribunal tenta fundamentar a culpa exclusiva do lesado com base no pagamento de 60 Euros e no facto de o lesado não ter intentado acção contra a L.
14. Ora, do depoimento decorre que o pagamento foi feito para o vizinho não chatear e que a Suíça pagava tudo, pelo que nada haveria a reclamar.
15. Daí que se tenha que insistir que a fundamentação da douta sentença é simplista inadequada e está em contradição com os depoimentos indicados, que só por si implicam a alteração da mesma.
16. Perante todo o exposto deveria a douta sentença recorrida, ter optado por uma repartição de culpas, na ordem dos 70% para a viatura e 30% para o peão.
17. Ora, vem a A. indicar que, na eventualidade de por falta de prova ser afastada a imputação com base na culpa, serão sempre os danos imputáveis à R no âmbito da responsabilidade pelo risco.
18. Na nossa opinião, a própria Lei prevê a especial obrigação de indemnizar os danos sofridos por peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas
19. Em virtude de uma interpretação generosa da Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho o seguro automóvel em Portugal desde o da DL 291/2007 passou na nossa modesta opinião e de acordo com uma leitura atenta do artigo 11º a o cobrir os danos dos peões com base na responsabilidade objectiva.
20. Como em muitas matérias referentes ao seguro automóvel a redacção da lei é complexa. É curioso como o legislador usa frequentemente formulações complicadas para dizer aquilo que é simples.
21. O nº 2 artigo 11 da DL 291/2007 é um desses casos. Citamos:
Artigo 11.º
Âmbito material
1 O seguro de responsabilidade civil previsto no artigo 4.º abrange:
a) Relativamente aos acidentes ocorridos no território de Portugal a obrigação de indemnizar estabelecida na lei civil;
b) Relativamente aos acidentes ocorridos nos demais territórios dos países cujos serviços nacionais de seguros tenham aderido ao Acordo entre os serviços nacionais de seguros, a obrigação de indemnizar estabelecida na lei aplicável ao acidente, a qual, nos acidentes ocorridos nos territórios onde seja aplicado o Acordo do Espaço Económico Europeu, é substituída pela lei portuguesa sempre que esta estabeleça uma cobertura superior;
c) Relativamente aos acidentes ocorridos no trajecto previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo anterior, apenas os danos de residentes em Estados membros e países cujos serviços nacionais de seguros tenham aderido ao Acordo entre os serviços nacionais de seguros e nos termos da lei portuguesa.
2 O seguro de responsabilidade civil previsto no artigo 4.º abrange os danos sofridos por peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas quando e na medida em que a lei aplicável à responsabilidade civil decorrente do acidente automóvel determine o ressarcimento desses danos.
22. A lei no nº 1 define a cobertura do seguro em termos geográficos e no nº 2 estabelece um regime de acordo com os danos sofridos por determinado tipo de vítimas.
23. De facto, a Lei é clara e pretende criar um regime especial para este tipo de vítimas.
24. Na nossa opinião a Lei quis proteger os peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas que tenham danos. Não todos os danos, mas apenas os danos que a lei aplicável à responsabilidade civil decorrente do acidente automóvel determine serem ressarcíveis.
25. Poder-se-á argumentar que a Lei limita-se a remeter a definição do direito à indemnização para a lei geral sobre responsabilidade civil, mas então porque apenas nos casos de indemnização devida a peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas?
26. Por que razão deveria fazê-lo apenas para estas vítimas? As outras vítimas têm um regime diferente?
27. Interpretar desta forma o artigo seria retirar qualquer sentido útil ao preceito, pois tal como qualquer outro lesado, os peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas estão abrangidos pelo seguro, que indemniza nos termos gerais da responsabilidade civil.
28. De facto o legislador no nº 2 artigo 11º quis e veio dizer algo de novo, que consiste na nossa opinião em duas regras:
1 - O princípio geral de que o seguro automóvel abrange os danos sofridos por peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas, tal como acontece com os passageiros.
2- Os danos cobertos são aqueles que a lei aplicável à responsabilidade civil decorrente do acidente automóvel determine deverem ser ressarcíveis.
29. Ou seja, todos danos dos peões que a lei determina serem ressarcíveis estão cobertos e abrangidos pelo seguro automóvel.
30. Um exemplo prático de danos não ressarcíveis seria o caso de um peão apanhar um susto por o condutor ter buzinado e ter um eventual dano. Ora, este dano não será digno de ser ressarcível e por isso não está abrangido.
Será um mero incómodo eventualmente.
31. Dito de outra maneira, os danos dos peões estão sempre cobertos e abrangidos pelo seguro, desde que tais danos mereçam a tutela do direito.
32. Outra interpretação para o nº 2 seria de que os danos estão cobertos nos termos de pontos, propostas razoáveis e tudo mais previsto no DL 291/2007.
33. Por isso os danos estão cobertos, o que faz sentido para proteger a parte mais fraca de um acidente, ou seja passageiros e peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas numa tentativa de socializar o risco indo além das regras do CC e criando um regime próprio.
Nestes termos e nos mais de Direito, deve a sentença ser revogada, devendo a R, ser condenada a pagar à Suva os danos provados (pontos 15 a 26), bem como danos futuros nos quais a A venham a incorrer decorrentes do acidente objecto destes autos, e mais concretamente a condenação da R. a indemnizar e reembolsar nos termos do artigo 495º do CC todas os gastos desembolsados pela A em virtude do acidente, indicando-se entre outros: despesas de assistência médica, medicamentosa, assistência e pensões, acrescidos dos correspondentes juros de mora vincendos, calculados à taxa legal, até efectivo e integral pagamento do devido, bem como digna procuradoria, e custas de parte nas quais a A venha a incorrer.

A ré contra alegou, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

As questões a resolver prendem-se com a impugnação da decisão de facto e definição da responsabilidade, designadamente, também, da possibilidade de concorrência de culpa e risco.

II. FUNDAMENTAÇÃO
Na sentença foram considerados os seguintes factos:
MATÉRIA DE FACTO PROVADA:
1 - No dia 21 de Dezembro de 2011, cerca das 18 horas e 20 minutos, na Estrada Nacional n.º 204, ao quilómetro 26,30, Domingos O foi colhido pelo veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula 36-26-XF, pertencente a Joaquim G e por este conduzido, quando procedia à travessia daquela artéria da direita para a esquerda, atento o sentido de marcha prosseguido por este veículo;
2 - Momentos antes do sinistro, o XF circulava pela referida estrada nacional no sentido Barcelos-Famalicão, pela metade direita da faixa de rodagem, conforme esse sentido, e a uma velocidade não excedente a 50 quilómetros por hora;
3 - Por sua vez, o Domingos O acabara de imobilizar o motociclo em que se fizera transportar até àquele local na berma direita da via, conforme o sentido Barcelos-Famalicão;
4 - Mal se apeou do motociclo, o Domingos O iniciou a travessia da faixa de rodagem da Estrada Nacional n.º 204, visando dirigir-se a um estabelecimento de café localizado na margem oposta, sem ceder a passagem ao XF, em cuja aproximação atentou, e quando este se encontrava a cerca de dez metros de distância, cortando-lhe a trajectória;
5 - Surpreendido, o condutor do XF nada pôde fazer para evitar embater, como embateu, com a parte da frente do veículo na perna esquerda do peão;
6 - O embate ocorreu na metade direita da faixa de rodagem, conforme o sentido prosseguido pelo XF;
7 - Na altura era de noite, mas a via dispunha de iluminação pública;
8 - A Estrada Nacional n.º 204 admitia dois sentidos de trânsito, separados por uma linha longitudinal descontínua, e era marginada por estabelecimentos industriais e comerciais;
9 - A respectiva faixa de rodagem tinha 7,10 metros de largura;
10 - O pavimento, em betuminoso, encontrava-se seco;
11 - No local a via apresentava a configuração de uma recta;
12 - Em consequência do embate e subsequente queda no solo, o Domingos O sofreu fractura cominutiva dos pratos tibiais e diáfise proximal da tíbia esquerda;
13 - Do local do embate foi transportado de ambulância para o Serviço de Urgência do Hospital de Barcelos, onde foi sujeito a tratamento conservador, incluindo imobilização da fractura, e onde permaneceu internado;
14 - No dia 27 de Dezembro de 2011 foi sujeito a intervenção cirúrgica e, volvidas duas semanas, foi-lhe concedida alta do internamento;
15 - Após regressar de deslocação ao estrangeiro que então fez, apresentou dor intensa na perna resultante de infecção nos pinos do fixador, motivo pelo qual foi internado entre os dias 10 de Fevereiro e 20 de Março de 2012;
16 - Passou então a frequentar a consulta externa de ortopedia do referido estabelecimento de saúde;
17 - Após extracção do fixador, foi novamente operado para colocação de fixo interno, tendo obtido alta no dia 14 de Junho de 2012;
18 - Entre os dias 28 e 29 de Agosto desse ano voltou a ser internado para extracção de pinos;
19 - Submeteu-se a tratamentos de fisioterapia;
20 - Como sequelas de carácter definitivo das lesões sofridas, cuja consolidação médico-legal ocorreu no dia 18 de Novembro de 2012, apresenta:
I - Ao nível do membro inferior esquerdo:
- amiotrofia da coxa em dois centímetros(D – 54 cm; E – 52 cm);
- hipertrofia da perna em dois centímetros ( D- 39 cm; E – 41 cm);
- alterações tróficas da perna, que, para além de diminuírem as funções próprias da pele, apresentam um risco muito elevado de ulceração;
- limitação da flexão do joelho a 85º;
- duas cicatrizes com dois centímetros de diâmetro no terço inferior da coxa;
- duas cicatrizes com dois centímetros de diâmetro no terço inferior da coxa;
- cicatriz com dois centímetros no joelho;
- duas cicatrizes com dois centímetros de diâmetro no terço superior e anterior da perna, duas com meio centímetro no terço superior interno da perna e três cicatrizes com um centímetro na face anterior do terço médio da perna;
- limitação da dorsiflexão do tornozelo a 10º;
21 - Essas sequelas determinam-lhe um défice funcional permanente da integridade físico-psiquica de 17 pontos, bem como um dano estético permanente de grau 5 numa escala de 1 a 7 graus de gravidade crescente, e são incompatíveis com o exercício da sua actividade profissional habitual;
22 - Sofreu dores intensas, quer no momento do sinistro, quer durante a convalescença, fixáveis no grau 5 numa escala de 1 a 7 graus de gravidade crescente;
23 - À data do acidente encontrava-se emigrado na Suíça, onde trabalhava por conta de outrem como pedreiro, auferindo um vencimento anual de CHF66.788,00;
24 - Por causa das lesões sofridas e suas sequelas não voltou a trabalhar;
25 - Era beneficiário da SUVA, entidade helvética equiparada à segurança social portuguesa e que presta assistência aos seus beneficiários nos termos da Lei Suíça, nomeadamente por prejuízos decorrentes de acidentes;
26 - Em virtude do sinistro, esta suportou as seguintes despesas:
- €1.676,72 em despesas médicas, incluindo internamentos, intervenções cirúrgicas, tratamentos de fisioterapia, consultas e medicamentos;
- a título de perdas salariais, a partir do terceiro dia posterior ao acidente e até Agosto de 2012, a quantia de €69.710,54;
- a título de compensação de integridade, equivalente à nossa compensação por danos morais, a quantia de €41.956,49, liquidada em Agosto de 2012;
- a título de pensões por incapacidade permanente, equivalente a 40% do salário anual, a quantia mensal de CHF756,70, com efeitos reportados a 1 de Agosto de 2012, perfazendo no dia 13 do corrente mês (Maio de 2016) a quantia de €21.417,62;
27 - A responsabilidade civil emergente da circulação do veículo automóvel com a matrícula 36-26-XF encontrava-se transferida para a Ré mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º 034/01553903/000.
MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA:
Para além daqueles que se encontram em oposição com os dados como provados, nomeadamente no que concerne à dinâmica do sinistro, não existem factos não provados.

A apelante impugna a decisão de facto relativamente ao ponto n.º 5 dos factos provados – “Surpreendido, o condutor do XF nada pôde fazer para evitar embater, como embateu, com a parte da frente do veículo na perna esquerda do peão” – baseando-se para tal, unicamente, no depoimento do próprio lesado, seu segurado.
Pretende que seja dada nova redação a esse ponto e acrescenta mais dois parágrafos relativos ao reconhecimento da culpa do sinistrado, por ter pago a reparação do veículo atropelante e por ter renunciado a propor ação de responsabilidade contra a seguradora do mesmo veículo.
Ora, salvo o devido respeito, tal matéria apenas foi considerada na motivação da decisão, não constando do elenco dos factos provados e/ou não provados. Tais considerações apenas foram produzidas na motivação como forma de o julgador fundamentar a sua convicção.
E não é verdade que o julgador apenas tenha considerado a culpa exclusiva do peão porque este pagou a reparação do veículo atropelante e não propôs ação contra a seguradora do mesmo. Aliás, relida a fundamentação da matéria de facto, e relativamente a estes pontos, apenas aí consta o seguinte: “Aliás, reconheceu ter pago ao proprietário do veículo atropelante o custo da reparação do veículo, sinal inequívoco de que se considerava responsável pela produção do sinistro”, nada sendo dito quanto à proposição de ação contra a seguradora do veículo atropelante. E se é verdade, conforme alega o apelante, que o montante pago não foi elevado - € 60,00 – e que o depoente disse que pagou “para não se chatear”, a verdade é que, quem está ciente da sua razão, não paga danos sofridos pelos outros, muito pelo contrário, exige dos outros o pagamento dos seus prejuízos.
O que resulta da fundamentação é que o julgador firmou a sua convicção, sobretudo, com base no depoimento da testemunha António F, que assistiu ao atropelamento e que pretendia, também ele, proceder à travessia da via, o que não fez em virtude do trânsito que se processava, aliado com a análise da participação do acidente, designadamente, falta de sinais de travagem e localização do veículo após o embate e depoimento do agente da GNR que a elaborou, Cristóvão S, tudo conjugado com o depoimento da vítima.
Vem, agora, a apelante, pretender alterar aquele n.º 5 dos factos provados, apenas com base no que a vítima declarou, esquecendo todos os demais elementos de prova que foram considerados.
A vítima declarou que deixou passar dois carros e que “depois pensei que tinha tempo para passar, mas afinal, não…”, indiciando, claramente, que atravessou mesmo à frente do carro. Veja-se que não há qualquer rasto de travagem e o veículo ficou logo imobilizado após o embate, que ocorreu na hemi-faixa de rodagem por onde seguia o veículo, ou seja, o peão ainda nem tinha atingido o meio da via. O veículo circulava a menos de 50 km/hora. Quando confrontado com o advogado da ré, esta testemunha começou a ficar muito nervosa…”não digo mais nada…”, tendo acrescentado que se apercebeu que ia ser atropelado.
Já a testemunha António F o acidente e não teve dúvidas em dizer que estava no lado oposto para atravessar a estrada e não o fez porque havia trânsito nos dois sentidos, vários carros, e que, quando olhou para a frente, viu o Domingos O a estacionar a moto e, “mal estacionou, atravessou a rua e foi colhido pelo carro”. Mais disse que “o carro não vinha muito de força porque mal bateu ficou parado no mesmo sítio”. Confirmou que o peão ficou caído na hemi-faixa direita, atento o sentido que trazia a viatura e que tem a certeza disso, porque foi ele que foi socorrer o peão. Repetiu várias vezes que mal pousou a moto, saiu logo para a estrada, sem deixar passar carro nenhum. “Não havia tempo para passar”, por isso é que eu estava à espera.
Também a testemunha Cristóvão S da GNR, confirmou a inexistência de rastos de travagem, que o veículo se imobilizou logo após o impacto e que o embate se deu na hemi-faixa direita atento o sentido de marcha do veículo, bem como confirmou as declarações dos envolvidos constantes da participação. Em face dessas circunstâncias, calculou a velocidade da viatura entre 40 a 50 km/hora.
Com menos interesse, resulta o depoimento de Orlando O, que averiguou as condições do acidente para a ré e que relatou que falou, na altura, com o sinistrado, que assumiu a culpa por escrito, tendo dito que havia regressado nesse dia da Suíça e que estava ansioso por estar com os amigos, não tendo tido o cuidado necessário ao atravessar a estrada.
Improcede, assim, a pretendida alteração do ponto n.º 5 dos factos provados. Deve, também, dizer-se que a apelante não propõe a alteração do ponto n.º 4 dos factos provados, pelo que sempre se teria que considerar provado que o peão atravessou inopinadamente a estrada, quando o veículo se encontrava a cerca de 10 metros de distância e cortando-lhe a trajectória.
Pretende, ainda a apelante, que seja aditado aos factos provados, o seguinte facto: “No local não há qualquer local destinado à passagem de peões”.
Ora, pese embora tenha havido prova nesse sentido, não se vê a vantagem de tal aditamento, pois maior seria a culpa do peão se estivesse a atravessar fora da passadeira, caso esta existisse – artigo 101.º, n.º 3 do Código da Estrada.

Da conjugação de toda a prova, não fica, assim, qualquer dúvida quanto à culpa exclusiva do peão.
É que, ao contrário do que sustenta a apelante, para que um peão tenha culpa no seu atropelamento, não é necessário que se queira suicidar (sic).
De acordo com o disposto no artigo 101.º, n.º 1 do Código da Estrada, “Os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respetiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente”.
No caso dos autos, o peão não tomou essas cautelas e foi essa sua atitude que foi causal do acidente, nenhuma culpa podendo ser assacada ao condutor do veículo, que seguia a velocidade moderada, permitida para o local e que foi surpreendido pelo peão que se lhe atravessou na frente, de forma imprevisível e repentina, face à curta distância a que se encontrava, numa recta com boa visibilidade e iluminação e com mais veículos a circular em ambos os sentidos, nada podendo fazer para evitar o embate, nem lhe sendo exigível a realização de qualquer manobra de recurso, face, de novo, à pouca distância que o separava do obstáculo.

Em face da atribuição da culpa exclusiva ao peão, mostra-se excluída a obrigação de indemnizar, nos termos do disposto no artigo 505.º do Código Civil.
Todas as demais considerações da apelante – conclusões 16.ª a 33.ª – têm, do nosso ponto de vista, como ponto de partida, a repartição de culpas ou a falta de prova da culpa, como pressuposto de aplicação da responsabilidade pelo risco, pelo que se tornam irrelevantes face à conclusão pelo culpa exclusiva do peão.
Considerado todo o circunstancialismo supra aludido, é de concluir, como fizemos supra, que a imprudência e inconsideração da vítima – acto censurável e culposo – foi a causa única e exclusiva do acidente. Este acto, de imprudente e contra-ordenacional atravessamento da faixa de rodagem, imputável unicamente ao lesado, exclui a responsabilidade objectiva, assente nos perigos ou riscos, de natureza geral, próprios da utilização e circulação da viatura, enquanto máquina, acolhida no artigo 503.º, n.º 1 do Código Civil. Os riscos criados pelo veículo, neste caso, mostram-se indiferentes para a produção do acidente e dos danos.
Neste sentido, veja-se Acórdão do STJ de 05/11/2013, proferido no processo n.º 8/10.8TBTNV.C1.S1, relatado pelo Conselheiro Alves Velho e disponível em www.dgsi.pt: “Ocorrendo um acto ou comportamento da vítima que se revele a causa exclusiva do acidente e do dano, sendo-lhe unicamente imputável, fica excluída a responsabilidade objectiva ou pelo risco, que poderia tornar admissível a responsabilidade do condutor do veículo, em concurso com a responsabilidade da vítima (ciclista), a título de culpa” (também o Acórdão do STJ de 27/03/2014, processo 136/07.7TBTMC.P1.S1, relatado pelo Conselheiro Granja da Fonseca)
No mesmo sentido e num caso de embate entre um veículo e um peão, o Acórdão do STJ de 20/01/2009, com o n.º 08A3807, relatado pelo Conselheiro Salazar Casanova, disponível no mesmo endereço, e cujo sumário é o seguinte:
“I- Se o acidente for unicamente devido a actuação culposa exclusiva do lesado, a responsabilidade pelo risco deve considerar-se excluída nos termos do artigo 505.º do Código Civil.
II- Admitindo-se a concorrência da culpa com o risco no processo causal do acidente, isso não significa considerar-se o risco causalmente verificado apenas porque o acidente se verificou entre um veículo motorizado e o peão sinistrado a partir do momento em que se provou que o acidente foi exclusivamente imputável a este último.
III- Se um peão inicia a travessia da faixa de rodagem à saída de um túnel destinado exclusivamente ao trânsito automóvel, atravessando-se subitamente e à frente do condutor que não se pôde desviar dada a proximidade entre ambos, a responsabilidade pelo risco do condutor do veículo motorizado está afastada pois tais factos comprovam que o acidente é imputável exclusivamente ao sinistrado”.

A tese sustentada pela apelante de que existirá um regime próprio para os peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas, em que é possível a concorrência da culpa exclusiva do peão com o risco inerente à circulação de um veículo, foi já objeto de pedido de reenvio prejudicial junto do TJE, efetuado por este Tribunal da Relação de Guimarães no processo n.º 113/07.8TBMLG.G1, relatado pelo Desembargador António Sobrinho, na sequência do qual foi proferida a seguinte decisão no processo C-486/11, de 21.03.2013:
“A Diretiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, a Segunda Diretiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, e a Terceira Diretiva 90/232/CEE do Conselho, de 14 de maio de 1990, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis, devem ser interpretadas no sentido de que não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito de a vítima de um acidente exigir uma indemnização a título do seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano”.
Igual questão foi também suscitada no processo n.º 4249/05.1TBVCT.G2, de que dá conta o Acórdão do STJ de 11/07/2013, proferido no processo n.º 97/05.7TBPVL.G2.S1, relatado pelo Conselheiro Fonseca Ramos e também disponível em www.dgsi.pt, nos seguintes termos:
“No caso o Tribunal da Relação de Guimarães, ante a questão colocada, da concorrência da culpa de um peão com o risco da circulação automóvel no domínio da responsabilidade civil, que a doutrina e jurisprudência nacionais maioritárias rejeitam, ordenou a suspensão da instância, tendo suscitado junto do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias o reenvio prejudicial, ao abrigo do art. 267°, l a) do Tratado da União Europeia, relativamente às seguintes questões:
“a) Em acidente de viação em que intervenham um veículo automóvel e um peão que atravessa a rua e do qual resultem, para o peão, danos pessoais e materiais, a exclusão de indemnização por tais danos quando o evento danoso seja imputável ao peão, segundo a interpretação dada aos referidos arts. 505° e 570°, do Código Civil português, é ou não contrária ao direito comunitário, particularmente aos nºs 3°, n°1, da Primeira Directiva (72/166/CEE), 2°, n°1, da Segunda Directiva (84/5/CEE) e 1°-A da Terceira Directiva (90/232/CEE) introduzido pelo art. 4° da Quinta Directiva (2005/14/CE), (todas relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de automóveis), considerando a jurisprudência do Tribunal de Justiça, no que concerne às circunstâncias em que pode de ser excluída a indemnização pelo seguro obrigatório de responsabilidade automóvel?
b) – Em caso afirmativo, ou seja, sendo contrária ao direito comunitário tal exclusão da indemnização, é conforme às citadas directivas comunitárias a interpretação daquelas normas da lei civil portuguesa, segundo a qual há lugar à limitação ou redução dessa indemnização, tendo-se em conta a culpa do peão, por um lado, e o risco do veículo automóvel, por outro, na produção do sinistro?”
O Tribunal de Justiça da União Europeia, tendo, entretanto, proferido um Acórdão em 9.6.2011, onde abordava a problemática assim sumariada – “Seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis – Directivas 72/166/CEE, 84/5/CEE e 90/232/CEE – Direito a indemnização pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis – Requisitos de redução – Contribuição da vítima para o seu próprio dano – Responsabilidade pelo risco – Disposições aplicáveis ao terceiro menor vítima de acidente” – Acórdão esse proferido no Processo em que GG, HH, litigavam contra a Companhia de Seguros II S.A, afirmou na sua decisão (Terceira Secção), perante a mesma questão prejudicial, que:
“A Directiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de Abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, a Segunda Directiva 84/5/CEE do Conselho, e 30 de Dezembro de 1983, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, e a Terceira Directiva 90/232/CEE do Conselho, de 14 de Maio de 1990, relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis, devem ser interpretadas no sentido de que não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito da vítima de um acidente de exigir uma indemnização a título do seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano”.
Conforme se pode ver no Acórdão do STJ proferido no processo em que foi suscitado o reenvio, aquele Tribunal de Justiça comunicou à Relação de Guimarães, ter sido proferido o citado Acórdão, “no processo idêntico C-409/09” (GG et II), e indagou se se mantinha o reenvio prejudicial no processo agora em apreciação, tendo a Relação, depois de ouvidas as partes, comunicado que deixara de ter interesse o reenvio.
Verifica-se, assim, a desnecessidade de reenvio, face ao já decidido pelo Tribunal de Justiça relativamente à mesma questão.

É o seguinte o sumário deste Acórdão de 11/07/2013 que, de forma muito significativa trata esta questão:
“II - Algumas decisões, sobretudo deste Supremo Tribunal, têm vindo a afastar-se do entendimento tradicional e largamente maioritário de que havendo culpa do lesado, o risco próprio do veículo interveniente no acidente, previsto no art. 503.º, n.º 1, do CC, fica excluído, nos termos do art. 505.º do CC, ou seja, não há lugar a concorrência de culpa e responsabilidade objectiva pelo risco.
III - Também entendemos que, em tese, as duas culpas não podem concorrer, a menos que se trate de culpa leve ou levíssima da vítima.
IV - Os arts. 503.º, n.º 1, 504.º, n.º 1, 505.º e 570.º do CC, quando interpretados no sentido de que a existência de culpa exclusiva ou parcial da vítima pode fundamentar a exclusão ou redução da indemnização, por lesões sofridas em consequência de acidente de viação, não colidem com o Direito Comunitário, particularmente com os arts. 3.º, n.° 1, da Primeira Directiva (72/166/CEE), 2.°, n.° 1, da Segunda Directiva (84/5/CEE) e 1.°-A da Terceira Directiva (90/232/CEE), introduzido pelo art. 4.° da Quinta Directiva (2005/14/CE), todas relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de automóveis, por competir à legislação do Estado-membro regular, no seu direito interno, o regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação de veículos automóveis.
V - Na responsabilidade objectiva, importa ponderar se um concreto dano pode ou não ser incluído no risco de actuação de alguém, ou de alguma actividade, por se impor a consideração de que quem colhe vantagem de um exercício ou de uma actividade que comporta riscos deve suportar a desvantagem dos danos que essa actuação causa, assim, acolhendo um princípio de justiça distributiva ubi commoda ibi incommoda.
VI - A responsabilidade objectiva não prescinde da consideração de uma actividade que para ser perigosa deve ser apta a causar danos mesmo que não haja culpa, importando que esse dano se inscreva, senão exclusivamente, pelo menos em larga medida, no círculo de actividade geradora do risco, no caso, nos riscos próprios do veículo, esteja ou não em circulação, não se prescindindo do nexo de causalidade entre o resultado danoso e a sua causa reportada à actividade que implica o risco.
VII - De há muito que a jurisprudência considerou não ser actividade perigosa a circulação automóvel, conforme Assento n.º 1/80, do STJ, de 21-11-1979, nos termos do qual “O disposto no artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil não tem aplicação em matéria de acidentes de circulação terrestre”.
VIII - Em caso de contribuição exclusiva de um peão, como no caso, mesmo tratando-se de um menor que, naturalmente e como se implícita do caso, passa o seu tempo descuidadamente numa rua próximo de casa, que reputa seu espaço de lazer, não pode considerar-se que o veículo envolvido no sinistro, em si mesmo, aportou um risco inerente à sua circulação concorrente com a actuação do lesado, o que seria impor um gravame injustificado atendendo a que a lei, no art. 503.º, n.º 1, do CC, já consagra a responsabilidade objectiva no domínio da circulação rodoviária.
IX - Sendo de atribuir o acidente exclusivamente a actuação culposa da vítima, não concorrendo para a respectiva eclosão, em termos de causalidade adequada, o risco inerente à circulação do veículo envolvido no acidente, porque a potencialidade de perigo que encerra a sua circulação foi alheia ao sinistro, não se pode considerar a concorrência de um risco causalmente adequado, inerente à circulação do veículo e resultado danoso sofrido por culpa exclusiva da vítima”.

Veja-se, ainda, os seguintes extratos que transcrevemos, face à forma claríssima como a questão aí está colocada e resolvida:
“Este entendimento perdurou largos anos, como doutrina dominante, como tese clássica, sendo quase constante essa a perspectiva jurisprudencial, no sentido da impossibilidade da concorrência das duas responsabilidades, subjectiva do lesado e objectiva do condutor do veículo.
No entanto, a partir do Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 4.10.2007 – Proc. 100/10.9YFLSB, – Relator Santos Bernardino – acessível in www.dgsi.pt, a doutrina tradicional foi posta em crise, já que se entendeu aí que as duas responsabilidades podiam concorrer, o que mereceu o aplauso de Calvão da Silva em douto estudo publicado na RLJ, Ano 137º, nº3496.
Para lá de argumentos que postulam a interpretação actualista do art. 505º do Código Civil, já que o tempo histórico do Código Civil de 1996 não é o hodierno, em que a intensidade do tráfego automóvel (muitíssimo maior), a modernização da vias estradais, a sofisticação dos veículos, e a socialização do risco com a inerente protecção, no domínio estradal, dos utentes que carecem de maior protecção, como sejam os idosos, as crianças, e a necessidade de contemplar muitos casos que ficariam sem adequado resguardo, a não se admitir a questionada concorrência de responsabilidade, os defensores de tal aggiornamento, aduzem em seu favor as Directivas comunitárias que vão no sentido de tutelar ocorrências em que a par da culpa do lesado não deve ser excluída a concorrência do risco inerente à circulação rodoviária.
Mas, mesmo depois daquele Acórdão, outros deste Supremo Tribunal de Justiça não secundaram aquele entendimento, tendo, se assim nos podemos expressar, rompido com a perspectiva que se antevia inovadora.
Porque também entendemos que, em tese, as duas culpas não podem concorrer, a menos que se tratasse de culpa leve ou levíssima da vítima, seguiremos de perto a doutrina dos Acórdãos de 20.1.2009 – Salazar Casanova – e de 17.5.2012 – Abrantes Geraldes – de 17.5.2012, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
Antes, porém, cumpre dizer que as Directivas a que se arrimam os defensores da minoritária tese, não impõem aos Estados Membros a adopção de quadro legal de responsabilidade civil no domínio da circulação automóvel includente dos dois tipos de responsabilidade, em regime de aplicação concorrente.
Como escrevemos no Acórdão de 10.5.2012 – Proc. 4249/05.1TBVCT.G2.S1 – que relatámos, acessível in www.dgsi.pt:
“Os artigos 503º, nº1, 504º, nº1, 505º e 570º do Código Civil, quando interpretados no sentido de que a existência de culpa exclusiva ou parcial da vítima pode fundamentar a exclusão ou redução da indemnização, por lesões sofridas em consequência de acidente de viação, não colide com o Direito comunitário, particularmente com os nºs 3°, n°1, da Primeira Directiva (72/166/CEE), 2°, n°1, da Segunda Directiva (84/5/CEE) e 1°-A da Terceira Directiva (90/232/CEE), introduzido pelo art. 4° da Quinta Directiva (2005/14/CE), todas relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de automóveis, por competir à legislação do Estado-membro regular, no seu direito interno, o regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação de veículos automóveis.”
No Acórdão relatado por Salazar Casanova pode ler-se:
“Admitindo-se o concurso do facto do lesado ou de terceiro, já não com a culpa do dono ou do condutor, mas com o risco do veículo, a interrogação que se suscita é a de saber como se preenche ou densifica agora, para efeitos de exclusão da responsabilidade pelo risco, a expressão “quando o acidente for imputável ao próprio lesado” (artigo 505.º do Código Civil).
O significado desta expressão era entendida no sentido de que não é só o facto culposo do lesado ou de terceiro a excluir a responsabilidade do dono do veículo. É que a fórmula legal deve considerar-se equivalente a “acidente devido a facto do lesado ou de terceiro” e, assim, a responsabilidade do dono poderá ser excluída mesmo que o lesado ou terceiro sejam inimputáveis. O que importa é que o facto do lesado ou de terceiro seja a única causa do acidente ou, por outras palavras, que este seja unicamente devido àquele facto […]” (Código Civil Anotado, Mário de Brito, vol. II, 1972, pág. 216).
Antunes Varela considera “para que o acidente deva considerar-se imputável ao próprio lesado ou a terceiro, não é necessário que o facto por estes praticado seja censurável ou reprovável. A lei quer abranger todos os casos em que o acidente é devido a facto do lesado ou de terceiro, ainda que qualquer deles seja inimputável […] ou tenha agido sem culpa; basta, noutros termos, que o acidente tenha sido causado por facto da autoria de um ou outro, posto que sem culpa do autor.
[…] Admite-se, à luz da lei que nos rege e aceitando a possibilidade de concorrência de risco com culpa, que aquele deve considerar-se verificado quando se evidencia um risco próprio concretizado a concorrer com o facto causal do lesado ou quando a actuação culposa do lesado projectada no próprio acidente não permite dizer que o acidente foi exclusivamente causado pelo lesado. Assim, por exemplo, um atropelamento de peão fora da passadeira próxima do local de atravessamento, só por si, não obstante a culpa do lesado, não permite afirmar que o acidente é unicamente devido ao lesado. No entanto, este entendimento não resolve os casos em que, não havendo culpa ou sendo esta diminuta – o caso da criança que atravessa a estrada em correria para agarrar a bola – se constata que o acidente resultou exclusivamente da conduta do lesado, não se evidenciando a interferência de nenhum risco próprio do veículo.
Para não ser assim, importaria então que a lei ressalvasse todos os casos em que, apesar de se reconhecer que a conduta do lesado constituiu o facto causal do acidente, o único dele determinante, ainda assim a indemnização pelo risco fosse atribuída por não resultar a conduta do lesado de uma actuação culposa grave. Por outras palavras: a responsabilidade pelo risco seria excluída apenas quando o lesado tivesse incorrido em culpa grave que fosse determinante de conduta à qual unicamente se deveu o acidente.”
Na responsabilidade objectiva, importa ponderar se um concreto dano pode ou não ser incluído no risco de actuação de alguém, ou de alguma actividade, por se impor a consideração de quem colhe vantagem de um exercício ou de uma actividade que comporta riscos deve suportar a desvantagem dos danos que essa actuação causa, assim, acolhendo um princípio de justiça distributiva ubi commoda ibi incommoda.
A responsabilidade objectiva não prescinde da consideração de uma actividade que para ser perigosa deve ser apta a causar danos mesmo que não haja culpa, importando que esse dano se inscreva, senão exclusivamente, pelo menos em larga medida, no círculo de actividade geradora do risco, nos caso nos riscos próprios do veículo esteja ou não em circulação, não se prescindindo do nexo de causalidade entre o resultado danoso e a sua causa reportada à actividade que implica o risco.
José Alberto Gonzalez, in “Responsabilidade Civil”, 3ª edição, na pág. 198:
[…] Por seu turno, o European Group on Tort Law (Princípios de Direito Europeu da Responsabilidade Civil, artigo 5:101) sugere nos seguintes moldes o estabelecimento da imputação objectiva pelo risco: (1) Aquele que exercer uma actividade anormalmente perigosa é responsável, independentemente de culpa, pelos danos resultantes do risco típico dessa actividade. (2) Uma actividade é considerada anormalmente perigosa quando: a. cria um risco previsível e bastante significativo de dano, mesmo com observância do cuidado devido, e b. Não é objecto de uso comum”.
De há muito que a jurisprudência considerou não ser actividade perigosa a circulação automóvel – “O disposto no art. 493°, n.º 2, do Código Civil não tem aplicação em matéria de acidentes de circulação terrestre” – Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 21.11.1979, in BMJ 291-285, com anotação de Vaz Serra na RLJ 113-152.
(…)
Em caso de contribuição exclusiva de um peão, como no caso, mesmo tratando-se de um menor que, naturalmente e como se implícita do caso, passa o seu tempo descuidadamente numa rua próximo de casa e, como é natural e próprio da sua jovem idade (seis anos) considere a rua o seu espaço de lazer, não pode considerar-se que o veículo envolvido no sinistro, em si mesmo, aportou um risco inerente à sua circulação concorrente com a actuação do lesado.
Seria impor um gravame injustificado atendendo a que a lei, no art. 503º, nº1, do Código Civil, já consagra a responsabilidade objectiva no domínio da circulação rodoviária.
Como consta no sumário do Acórdão de 17.5.2012 – Abrantes Geraldes – antes citado:
“O atropelamento de um peão – menor de 4 anos de idade – que inopinadamente se atravessou à frente de um veículo que, numa localidade, seguia na sua faixa de rodagem, a uma velocidade não superior a 20 km/h, sem que o condutor o pudesse prever, é de imputar em exclusivo ao lesado, tornando irrelevante o risco genérico decorrente do facto de o veículo se encontrar a circular numa via pública.
Uma interpretação do art. 505º do Código Civil que admita a concorrência entre a responsabilidade pelo risco inerente ao veículo automóvel e a imputação do acidente ao lesado, sujeitando a quantificação da indemnização à ponderação prevista no art. 570º do Código Civil, fica necessariamente afastada quando o acidente seja exclusivamente devido ao sinistrado, sem qualquer contribuição causalmente adequada dos riscos próprios do veículo.”
(…)
O mero facto naturalístico de o acidente ter envolvido um veículo automóvel, como corpo em movimento, com determinado peso e dimensões, dotado de inércia, não pode ser considerado determinante de um risco causalmente adequado ao acidente, perdendo todo o relevo, quer em termos absolutos, quer em termos relativos.”
Sufragando este entendimento, que não colide, como vimos, com a normatividade das Directivas Comunitárias que antes citámos, concluímos que o acidente, sendo de atribuir exclusivamente a actuação culposa da vítima, não concorrendo para a respectiva eclosão, em termos de causalidade adequada, o risco inerente à circulação do veículo envolvido no acidente, porque a potencialidade de perigo que encerra a sua circulação foi alheia ao sinistro, não se pode considerar a concorrência de um risco causalmente adequado, inerente à circulação do veículo e resultado danoso sofrido por culpa exclusiva da vítima”.

Em face de tudo o que fica dito, improcede a apelação, sendo de confirmar a sentença recorrida.

Sumário:
1 – Age com culpa exclusiva o peão que inicia o atravessamento de uma estrada de forma imprudente, sem se certificar de que o pode fazer sem perigo de acidente, tendo em conta a aproximação de um veículo, a cerca de 10 metros de distância, cuja trajectória cortou, sem que o veículo, que circulava a velocidade de 40 a 50 km/hora, pudesse evitar o embate.
2 – Sendo de atribuir o acidente exclusivamente a actuação culposa da vítima, não concorrendo para a respectiva eclosão, em termos de causalidade adequada, o risco inerente à circulação do veículo envolvido no acidente, porque a potencialidade de perigo que encerra a sua circulação foi alheia ao sinistro, não se pode considerar a concorrência do risco com a culpa exclusiva da vítima.
3 – Tal interpretação do disposto nos artigos 503º, nº1, 504º, nº1, 505º e 570º do Código Civil, não colide com o Direito comunitário, particularmente com os nºs 3°, n°1, da Primeira Directiva (72/166/CEE), 2°, n°1, da Segunda Directiva (84/5/CEE) e 1°-A da Terceira Directiva (90/232/CEE), introduzido pelo art. 4° da Quinta Directiva (2005/14/CE), todas relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de automóveis, por competir à legislação do Estado-membro regular, no seu direito interno, o regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação de veículos automóveis, conforme já foi decidido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia.

III. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
***
Guimarães, 10 de novembro de 2016