Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2148/10.4TBBRG.G1
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
INDEMNIZAÇÃO
BOA-FÉ
DEVERES ACESSÓRIOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/19/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1. Violam o princípio da boa fé e deveres acessórios ou laterais de conduta, incorrendo em responsabilidade civil e na obrigação de indemnizar a A. pela desvalorização da sua quota, os RR. que, antes de formalizarem a cedência dessa quota de 70% no capital social de uma sociedade, se aproveitam da confiança que a clientela deposita no trabalho pessoal deles e a informa de que vão deixar de trabalhar na sociedade, perspetivando a saída de grande parte desses clientes, como efetivamente aconteceu.
2. Em vez de prestarem essa informação, era dever dos RR. orientarem-se pela função auxiliar da realização positiva do fim contratual e de proteção à pessoa e aos bens da A., contra os riscos de danos concomitantes ao cumprimento da obrigação principal.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I.
MARIA…, casada, contribuinte n.º …, residente na Rua…, na cidade de Braga, instaurou ação declarativa sob a forma de processo ordinário contra
- S…, casada, residente na Rua …, concelho de Braga, e,
- A…, solteiro, residente na Rua…, na cidade de Braga, alegando, no essencial, o seguinte:
A A., sócia gerente da sociedade S…, Lda, gabinete de contabilidade, admitiu ao serviço os RR.
Porém, em finais de 2002, a A. alienou a quota que detinha naquela sociedade e constituiu com os RR., a 25.3.2003, a sociedade R…, Lda. formalizando-a com uma quota de 15% para o R. e uma quota de 85% para a R., mas sendo esta, de facto, duas quotas, uma de 15% da R. e outra de 70% da A., conforme, paralelamente, acordaram que formalizariam mais tarde, quando a A. entendesse.
A A. entregou a esta nova sociedade a sua carteira de clientes, trazida da S..., Lda., para onde já a levara anteriormente.
Esta nova sociedade era gerida pelos RR. que passaram a ter acesso a todos os dados dos clientes afetos à Autora Maria…, contactando-os pessoal e diretamente, recebendo-os, negociando o preço das avenças e o seu modo de pagamento.
Quando, em 2006/2007, a A. quis formalizar a sua quota de 70% na sociedade, como haviam acordado, os RR. recusaram, impediram a A. de entrar nas instalações da R…, Lda. e esvaziaram a sociedade do seu objeto comercial, designadamente da clientela existente, transferindo-a para uma outra sociedade por quotas, a O…, Lda., entretanto constituída por eles no dia 13.3.2007, com o mesmo objeto social: a contabilidade. Nesse mesmo mês, os RR. doaram à A. 70% do capital social, mas deixaram a R…, Lda. totalmente desvalorizada e que foi apresentada à insolvência e declarada insolvente por não possuir clientela suficiente para gerar lucros.
Naquelas circunstâncias, os RR. planearam e levaram a cabo contactos com os clientes da R…, Lda., informando-os de que iam sair para uma nova sociedade e oferecendo os seus serviços, bem sabendo que muitos desses clientes poderiam optar por transferir a sua contabilidade para a nova empresa, ficando, deste modo, aquela sociedade sem clientela e a quota da A. totalmente desvalorizada.
Todos os clientes da R…, Lda. rescindiram o contrato de prestação de serviços que possuíam com efeitos a partir do dia 28 de fevereiro de 2007 e grande parte dos clientes afetos àquela sociedade foi transferida para a nova empresa dos RR.
Antes daquela atuação dos RR., a quota da A. valia seguramente algumas dezenas de milhar de euros.
A A. não consegue esquecer esta situação que a atormenta diariamente, não dormia, não comia, nem saía com os amigos, não logrando recuperar a empresa que fundara, tendo, assim, sofrido danos não patrimoniais pelos quais pretende ser indemnizada com a quantia de € 2.500,00.
Os RR. haviam-se obrigado a devolver a quota tal como a receberam, ou seja, com a mesma capacidade de gerar lucros que tinha à data da constituição e, ao não o terem feito, agiram com culpa.
O preço da quota de 70% do capital social antes da conduta dos RR. seria de, pelo menos, € 82.359,45, pretendendo ser indemnizada por quantia a apurar em sede pericial, que se computa, aproximadamente, em € 80.000,00, por ter sofrido uma desvalorização de 100%.
Culminou o seu articulado com o seguinte pedido:
“Deve a presente acção ser julgada procedente, por provada, e, em consequência:
A. Devem os Réus ser condenados, solidariamente, no pagamento de valor correspondente à desvalorização da quota de 70% da Autora e que se vier a apurar em sede de prova pericial, sempre num valor mínimo de € 80.000,00, acrescida de juros moratórios à taxa legal;
B. Cumulativamente devem os Réus, solidariamente, ser condenados no pagamento de € 2.500,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros moratórios à taxa legal a contar desde a citação;
C. Serem os Réus condenados no pagamento das custas processuais e demais encargos com o processo, designadamente custas de parte e procuradoria condigna.” (sic)
Os RR. contestaram a ação impugnando grande parte dos factos alegados na petição inicial. Alegaram:
A A. moveu, sem sucesso, muitas ações judiciais contra os RR. e contra os seus clientes que deixaram de trabalhar com a R…, Lda., visando apenas prejudicá-los, tendo cobrar valores que não eram devidos.
A insolvência da R…, Lda. foi qualificada de fortuita e já nesse incidente foi tratada a questão da transferência de clientela.
A A. age e agiu sempre com má fé processual e má fé moral, deturpando a verdade, inventando factos, perseguindo de forma descarada e preocupante os RR. A A. não tinha qualquer carteira de clientes, estes eram da R…, Lda. e recusaram-se a trabalhar com ela.
Quando a A. manifestou vontade de entrar para a sociedade já as relações entre ela e os RR., eram conflituosas, pautadas por desconfianças e diferenças insuperáveis. Nunca agiram com intenção de prejudicar a A. nem a R…, Lda. e nada fizeram para aliciar os clientes da última. Os RR. limitaram-se a informar os clientes que iam sair da R…, Lda. e que ficaria a Maria… como sócia gerente. Não transferiram qualquer clientela daquela sociedade para a O…, Lda. Os clientes que deixaram de trabalhar com a R…, Lda. fizeram-no única e exclusivamente por não quererem trabalhar com a A.
Foi deliberado pelos sócios da R…, Lda., em 28.12.2006, dar consentimento aos sócios e gerentes para que exerçam atividade igual à exercida pela mesma sociedade.
A A. teve uma gerência desastrosa, descurando os clientes, destruindo o património da R…, Lda. abandonando as instalações onde funcionava a sua sede.
A R…, Lda. não ficou deserta de clientes; mantiveram-se comprovadamente clientes suficientes para manter a sociedade. Foi a A. que a quis encerrar e tudo fez nesse sentido.
A A. deturpa a verdade, alterando e falseando factos e omitindo a realidade para fazer valer direitos que sabe não lhe assistirem, pelo que deve ser condenada como litigante de má fé numa indemnização a favor dos RR. nunca inferior a € 3.000,00.
Terminam no sentido de que devem ser absolvidos do pedido e a A. condenada como litigante de má fé na supra referida indemnização.
A A. apresentou réplica opondo-se aos fundamentos da contestação e reforçando a argumentação da petição inicial
Foi proferido despacho saneador tabelar, seguido de factos assentes e de base instrutória, de que não houve reclamação.
Decorrida a fase de instrução, teve lugar a audiência final, a que se seguiu a prolação de sentença fundamentada em matéria de facto e de Direito que culminou com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, o Tribunal julga improcedente a acção, por não provada, e em consequência, absolve os réus dos pedidos formulados.
Custas pela autora.” (sic)

Inconformada, apelou a A., em matéria de facto e de Direito, resumindo e concluindo as alegações nos seguintes termos:
«I. Por decisão datada de 05 de Setembro de 2014, o Tribunal a quo julgou totalmente improcedente a acção intentada pela recorrente, absolvendo os recorridos do pedido, não se conformando, porém, a Recorrente, daí o presente recurso que versa sobre matéria de facto e de direito com reapreciação da prova gravada.
II. Com efeito, salvo diferente e melhor entendimento, o Tribunal a quo deveria ter considerado provada a totalidade da matéria que constava do quesito 9º, com base no depoimento prestado a 18/06/2014 do então técnico oficial de contas da sociedade comercial R…, J…, gravado no sistema H@bilus, aos 6 minutos e 50 segundos a 7min 49 segundos e, ainda, porque na própria sentença, a propósito da motivação quanto à matéria de facto, o próprio Julgador a quo afirma que “ficou claro que a mesma (clientela) proveio apenas em parte do Gabinete de Contabilidade de S…, onde já havia clientes da Autora e dos seus outros dois sócios, e ainda que foram angariados novos clientes para aquela (R…).
III. O Tribunal a quo deveria ter considerado provada a totalidade da matéria que constava dos quesitos 16º e 17º, com base no depoimento do anterior funcionário T…, prestado no dia 03/07/2014, dos 27 minutos aos 29 minutos, de A…, depoimento prestado no dia 03/07/2014, gravado no sistema H@bilus, aos 9 minutos até 12 minutos.
IV. O Tribunal a quo deveria ter considerado provada a totalidade da matéria que constava dos quesitos 18. e 24. com base nos depoimentos de A… (dos 7 minutos aos 7 minutos e 20 segundos), H… (aos 5 minutos e 20 segundos), T… (aos 39 minutos), A… (dos 7 minutos aos 9 minutos e dos 13 minutos aos 14 minutos e 10 segundos), todos prestados no dia 03/07/2014 e registados no sistema H@bilus.
V. Por constituírem factos essenciais para a decisão da causa deverá ser aditado à matéria de facto provada o teor dos artigos 61º e 71º da petição inicial na medida em que resultou do depoimento do então técnico oficial de contas da sociedade comercial R…, J…, gravado no sistema H@bilus, prestado a 18/06/2014, dos 23 minutos aos 44 minutos.
VI. Provados os factos que constam da decisão, com e sem as ressalvas supra indicadas a propósito da impugnação da matéria de facto, a decisão quanto à matéria de direito está ferida de erro, o que se invoca para todos os efeitos legais, dái, também, o presente recurso.
VII. A questão de direito que carece de ser analisada nestes autos prende-se, salvo diferente e melhor entendimento, com a análise e qualificação jurídica do tipo contratual celebrado entre Recorrente e Recorridos, verificação do respectivo cumprimento e consequências jurídicas ou, em última análise, da análise da responsabilidade extracontratual dos Recorridos.
VIII. Os Recorridos assumiram a obrigação de transmitir à Recorrente uma quota de 70% do capital social nas exactas condições em que foi recebida, sendo que a entrega da mencionada quota ocorreu dias após 64 dos 90 clientes da sociedade cuja quota se cedia ter rescindido contrato de prestação de serviços com a sociedade em causa (na sequência de informação prestada pelos próprios Recorridos de que iriam cessar funções de técnicos de contabilidade), acompanhada pelo ganho simultâneo, a favor de sociedade comercial detida exclusivamente pelos Recorridos e criada antes da doação, desses mesmos 64 clientes.
IX. O valor real da quota que foi transmitida à Autora pelos Recorridos sofreu, assim, um “duro golpe” por acção dos próprios recorridos que entenderam agir em total desrespeito pelo princípio da boa-fé e em plenas conversações tendentes à transmissão da quota à Recorrente (cumprimento do dever principal de prestação), informaram os clientes da sua intenção de cessar funções e, entretanto, constituíram uma sociedade comercial para onde, antes da transmissão, transitaram grande parte desses mesmos clientes.X. Os Recorridos sabiam, pois trata-se além do mais de facto público e notório, que a relação profissional entre o técnico de contabilidade e o seu cliente se baseia numa estreita relação de confiança, aliás, muito idêntica à que existe entre o advogado e o cliente, sendo que qualquer alteração subjectiva da parte activa desta relação de prestação de serviços de contabilidade implica, necessariamente, alterações na vontade dos clientes.
XI. Os Recorridos estavam, assim, adstritos a obrigações acrescidas para com a Recorrente pois não eram, apenas, técnicos ou sócios da empresa, eram, também, titulares da obrigação de entregar a quota à Autora nas exactas circunstâncias em que a receberam, pelo que se lhes impunha que tratassem a questão com uma diligência irrepreensível, que a sua actuação fosse de modo a não prejudicar a Recorrente.
XII. Nunca este em causa a responsabilidade dos Recorridos enquanto gerentes da sociedade comercial “R…” nos termos que melhor se descrevem na decisão em crise conquanto os danos nada tiveram que ver com a qualidade de gerentes dos Recorridos, outrossim, com a conduta que estes entenderam assumir no momento em que, conhecendo a confiança que os clientes teriam no trabalho destes, os informaram da sua intenção de deixar de trabalhar (como técnicos de contabilidade e não como gerentes) na sociedade em causa, transmitindo, inclusivamente, a ocorrência de desentendimentos entre sócios, quando bem sabiam que, pela natureza do trabalho em causa, seria possível que os clientes ficassem receosos e optassem por deixar de contratar com a sociedade.
XIII. A atitude mais cumpridora do princípio da boa-fé entre contratantes exigiria que os Recorridos adoptassem uma atitude bastante diferente, desde logo que não transmitissem aos clientes da sociedade (cujas quotas iriam ceder) que iriam cessar a prestação do seu trabalho de técnicos de contabilidade.
XIV. Dos factos dados por provados resulta, claramente, um claro incumprimento dos deveres acessórios de conduta a que estavam adstritos os Recorridos no âmbito do contrato celebrado com a Recorrida, incumprimento esse que implicou uma desvalorização da quota transmitida à Recorrente na proporção idêntica aos clientes que rescindiram contrato com a sociedade Rubriminho e que transitaram para a sociedade detida pelos Recorridos.
XV. No que concerne aos danos não patrimoniais, salvo diferente e melhor entendimento, sempre serão os mesmos ressarcíveis na medida em que são graves e constituíram-se devido ao modo absolutamente anormal e desviante dos actos dos Recorridos, indignando de modo profundo a cocontratante, a aqui Recorrente.
XVI. Sem prescindir, mesmo que se considere in casu a aplicação do regime da responsabilidade extracontratual, o qual onera a Recorrente com o ónus da prova de quase todos os elementos constitutivos da obrigação de indemnização, sempre ocorreu prova bastante dos mesmos, o que aqui se invoca, devendo condenar-se os Recorridos na obrigação de indemnizar a Recorrente reconstituindo a situação que existiria não fosse o facto ilícito.» (sic)
Pugna pela revogação da sentença.

Os RR. ofereceram contra-alegações, com as seguintes conclusões:
«I. Pretende a recorrente que o presente recurso seja julgado procedente, por provado, e, em consequência, revogada a decisão recorrida, pretensão que não pode proceder, não merecendo a douta decisão qualquer reparo, encontrando-se inteiramente sustentada na prova produzida.
II. Os quesitos 9º, 16º, 17º 18º e 24º foram doutamente decididos, não merecendo qualquer reparo.
III. O Gabinete de Contabilidade de S…, Lda, detinha uma carteira de clientes, não tendo a recorrente alegado nem produzido qualquer prova quanto ao número de clientes seus que passaram a integrar a carteira de clientes do referido Gabinete.
IV. Não foi alegado nem produzida qualquer prova para aferir quais os clientes que deixaram de trabalhar com o Gabinete de Contabilidade S… e entregaram as respectivas contabilidades à R…, e dentro destes quais eram os clientes da recorrente antes da constituição do Gabinete de Contabilidade S....
V. Com a constituição do Gabinete de Contabilidade S…, a clientela passou a ser da sociedade, independentemente da sua origem, deixando a recorrente de possuir qualquer carteira de clientes.
VI. A clientela da R… proveio em parte do Gabinete de Contabilidade de S…, onde já havia clientes da recorrente e dos outros dois sócios, tendo sido angariados novos clientes pela R….
VII. O recorrido A… não transferiu pastas das instalações da R… para o seu carro. Os clientes que rescindiram contrato com a R… solicitaram a entrega/devolução da sua documentação, tendo a mulher de um cliente que havia falecido pedido ao recorrido A… a entrega dos documentos em sua casa por não saber conduzir.
VIII. Os recorridos não exerceram qualquer pressão ou tampouco tentaram influenciar os clientes, de que forma fosse, na tomada de decisão, agindo sempre com total respeito pelos clientes e pelo princípio da boa-fé.
IX. Quanto ao aditamento à matéria de facto provada dos factos alegados nos artigos 61º e 71º da douta petição inicial, não tendo havido reclamação contra a selecção da matéria de facto, incluída na base instrutória, no prazo de 10 dias a contar da notificação, esta pretensão torna-se extemporânea. Sendo certo, que a não ser colhido este entendimento, sempre se dirá que não foi produzida qualquer prova quanto aos factos vertidos nestes artigos.
X. O longo dos seus articulados a recorrente invocou factos que se reportam em primeira e principal linha à sociedade. Os danos que invoca e que pretende ver ressarcidos são reflexo dos que ocorreram na esfera da sociedade!
XI. A quota de 70% do capital social foi transmitida à recorrente. Quanto às “exactas condições em que foi recebida, não foi alegado nem produzida qualquer prova para aferir as exactas condições em que os recorridos receberam a quota da recorrente.
XII. O número de clientes que mantiveram a sua contabilidade na R… era suficiente à sua manutenção em laboração, ao que acresce favoravelmente a diminuição dos custos, os valores em caixa e o activo imobilizado.
XIII. A quebra no volume de negócios da R… não ultrapassou os vinte pontos percentuais.
XIV. O relatório de inspecção e o relatório pericial, subscrito por unanimidade, constituem prova incontornável e incontestável, e do mesmo resulta de forma clara que não se pode concluir que a quota da recorrente desvalorizou 100% ou o que quer que fosse.
XV. Não foram provados os pressupostos da responsabilidade civil: facto voluntário do agente; ilicitude; culpa; dano; nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano. Nem a existência de uma relação directa entre a actuação dos gerentes e os danos dos sócios.
XVI. Pela via da responsabilidade contratual, a pretensão da recorrente também cai por terra, por não ter provado a desvalorização da sua quota, resultando que não há qualquer dano apurado e provado.» (sic)
Defenderam, assim, a confirmação do julgado.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II.
As questões a decidir --- exceção feita para o que é do conhecimento oficioso --- estão delimitadas pelas conclusões da apelação da A., acima transcritas (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º do Código de Processo Civil [1]), sendo elas:
1. Erro de julgamento em matéria de facto; e
2. Responsabilidade civil dos RR. recorridos por danos causados à A. recorrente.
III.
São os seguintes os factos considerados provados pelo tribunal a quo :[2]
1. A autora Maria… exerce, desde há 30 anos, a profissão de técnica de contabilidade e de mediadora de seguros.
2. No exercício destas actividades, em meados de 1995, a autora Maria…admitiu ao seu serviço a ré S….
3. O réu A… foi igualmente admitido pela autora Maria ….
4. As funções exercidas pelos réus, naquele período, consistiam na classificação e lançamento documentos na contabilidade de cada um dos clientes da autora e, posteriormente, no arquivamento desses documentos.
5. Os réus, na qualidade de funcionários da Maria…, tinham total acesso aos dados dos clientes desta.
6. Em Abril de 2001, a autora Maria…, juntamente com dois técnicos oficiais de contas, constituiu uma sociedade por quotas denominada "Gabinete de Contabilidade de S…, Lda.", subscrevendo uma quota correspondente a 50% do capital social, sendo que cada um dos restantes sócios possuía 25% do capital social, sendo estes nomeados gerentes da sociedade. - certidão de matrícula de fls. 255 a 259.
7. O "Gabinete de Contabilidade de S…, Lda." admitiu ao serviço os réus.
8. Em finais de 2002, a autora Maria… decidiu alienar a quota que detinha na sociedade por quotas supra referida, transmissão de quotas que foi registada através das menções Dep. 7205/03.11.2008, 7206/03.11.2008 e 7207/03.11.2008. -acordo e certidão de matrícula de fls. 255 a 259.
9. No dia 25 de Março de 2003, foi constituída a sociedade por quotas "R…, Lda", que tinha por objecto a exploração de gabinete de contabilidade, consultoria fiscal e consultoria para os negócios e a gestão, sendo que, formalmente, o seu capital social de 5.000,00 Eur. (cinco mil euros), se encontrava dividido em duas quotas: uma de 85% (4.250,00 Eur.) pertencente à ré S… e outra de 15% (750,00 Eur.) pertencente ao réu A…. - acordo, certidão de escritura pública de constituição de sociedade de fls. 15 a 19 e certidão de matrícula de fls. 246 a 254.
10. Em Março de 2007 o A… entregou à S… as novas chaves das instalações da empresa.
11. E informou a autora Maria…que não lhe entregaria a chave "até a situação estar resolvida" e que a sua presença nas instalações da "R…, Lda." ficaria limitada ao horário de expediente.
12. No dia 13 de Março de 2007 as instalações da sociedade estavam fechadas, tendo um papel afixado na porta que dizia: "Encerrado para Balanço".
13. A 23 de Março de 2007, no Cartório Notarial da Dr.ª Margarida Azenha, a autora foi informada da proposta de doação que consta do documento que ora se junta sob o n.º 3 (fls. 20 a 22), através do qual os réus propunham transmitir-lhe uma quota de valor nominal de 3.500,00 Eur. (três mil e quinhentos euros), titulada em nome de S…, no capital social da "R…, Lda.", o que veio a aceitar a 25 de Março de 2007, através de documento exarado no mesmo cartório, nomeando-se, em simultâneo, gerente da aludida sociedade. - acordo e teor das certidões de fls. 20 a 25.
14. A 4 de Março de 2008, Maria…requereu a declaração de insolvência da "R…", insolvência essa decretada por sentença proferida a 27.03.2008 e transitada em julgado a 11.06.2008 pelo 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Braga no âmbito do processo n.º 1669/08.3TBBRG. - teor do anúncio publicado no Diário da República de 8.9.2008 a fls. 26 e certidões de fls. 241 a 245 e fls. 263 a 271.
15. A 13 de Março de 2007, os réus constituíram a sociedade por quotas "O…, Lda.", pessoa colectiva …, com sede na Rua…, em Braga, com o capital de 5.000,00 Eur. (cinco mil euros), dividido em duas quotas com o valor nominal de 2.500,00 Eur. (dois mil e quinhentos euros), tendo por objecto a exploração de gabinete de contabilidade e de consultoria fiscal, actividades de consultoria para os negócios e a gestão. - acordo, fotocópia simples do contrato de sociedade de fls. 27 a 30 e certidão de matrícula de fls. 275 e 276.
16. De acordo com as correcções efectuadas pela Direcção Geral de Contribuições e Impostos em 2004 a Sociedade "R…, Lda." possuía um lucro tributável de € 33.557,53, em 2005, um lucro tributável de € 35.943,47, e em 2006 um lucro tributável de € 31.347,31, sendo a média anual de lucro de € 33.616,10. - acordo.
(alíneas A) a P) da matéria de facto assente no despacho saneador)
*
17. Alguns clientes da autora Maria… passaram a fazer parte da clientela da sociedade referida em 6. (resposta restritiva ao quesito 1.º)
18. A autora Maria… propôs aos réus constituição de uma sociedade por quotas de prestação de serviços de contabilidade.
19. A proposta da autora definia-se do seguinte modo:
- seria constituída uma sociedade por quotas denominada "R…, Lda", com capital social de € 5.000 (cinco mil euros);
- tal capital social seria depositado na conta bancária da sociedade pela autora;
- e seria dividido em três quotas: 70% do capital social seria detido pela autora M…, sendo que os réus deteriam, cada um, uma quota equivalente a 15% do capital social;
- a gerência seria exercida pelos sócios aqui réus;
- a autora pretendia que no contrato de sociedade apenas figurassem como sócios os réus, pelo que, e na verdade, no contrato de sociedade, a divisão do capital social seria a seguinte: 85% do capital social pertenceria à ré S… e 15% pertenceria ao Réu A…;
- no momento que entendesse adequado a autora solicitaria a formalização da titularidade da quota de 70% do capital social, cuja transmissão se faria através da divisão da quota pertencente à ré S… em duas: uma de 70% que seria cedida à autora, e 15% permaneceriam na titularidade da S…, devendo a quota de 70% ser restituída à autora nas exactas condições em que foi recebida. (respostas restritivas aos quesitos 3.º e 4.°)
20. Ambos os réus aceitaram as referidas condições.
21. Após a constituição da "R…, Lda" a gerência passou a ser exercida, tal como acordado, por ambos os réus. (respostas aos quesitos 5.º e 6.º)
22. Os quais passaram, a partir de Março de 2003, a ter contacto directo e pessoal com os clientes. (resposta restritiva ao quesito 7.°)
23. Recebendo-os, negociando o preço das avenças e o seu modo de pagamento. (resposta ao quesito 8.°)
24. Alguns clientes do Gabinete de Contabilidade de S… passaram a ser clientes da R…. (resposta restritiva ao quesito 9.º)
25. Em meados de 2006, mas mais insistentemente no início do ano de 2007, a Autora demonstrou, junto dos Réus, interesse na formalização da titularidade da sua quota de 70% na sociedade.
26. Nessa ocasião o réu A… propôs que a autora lhe cedesse a sua quota de 70% pelo preço de € 50.000 (cinquenta mil euros).
27. O réu A… recusava-se a cumprir o acordado referido em 19. f) .. (resposta aos quesitos 10.º a 12.º)
28. Os réus mudaram a fechadura da porta de acesso às instalações da R…, sem facultar à autora cópia das novas chaves.
(resposta conjunta restritiva aos quesitos 13.º a 15.°)
29. As instalações da "R…" foram encerradas entre 13 e 23 de Março de 2007. (resposta restritiva ao quesito 19.°)
30. Os réus informaram clientes da "R…, Lda." de que iam sair para uma nova sociedade. (resposta restritiva ao quesito 20.°)
31. Sessenta e quatro clientes da "R…, Lda." rescindiram o contrato de prestação de serviços que possuíam com efeitos a partir do dia 28 de Fevereiro de 2007. (resposta restritiva ao quesito 22.°)
32. Até ao dia 28 de Fevereiro de 2007 a R… possuía 90 clientes. (resposta restritiva ao quesito 23.°)
33. O referido em 15. e de 28. a 31. criou na autora sentimentos de injustiça, impotência e humilhação. (resposta explicativa ao quesito 25.0)
34. Durante os primeiros meses que seguiram à transmissão da quota referida em 13., a autora não dormia, recusava-se a comer e a sair com os amigos. (resposta ao quesito 26.°)
35. Tendo em conta o referido em 16., numa projecção a 5 anos, a sociedade "R…, Lda." teria um lucro líquido de € 24.806,00. (resposta restritiva e explicativa ao quesito 27.º)
36. Pelo que o valor de venda da quota de 70% do capital social poderia atingir o valor de € 28.000,00. (resposta restritiva e explicativa ao quesito 29.°)
*
O tribunal a quo considerou não provada a seguinte factualidade:
1. "Todos ... " (parte quesito 17.º)
2. Face ao referido em H) os réus manifestaram, de imediato, a sua intenção de se desvincularem da entidade patronal. (quesito 18.º)
3. O que levou a autora ... que garantisse a organização contabilística dos clientes que, naquela data, possuía. (parte do quesito 3.º)
4. ... devido questões pessoais ...
- a autora entregaria à nova empresa a sua carteira de clientes;
- todo o material que compunha e compôs o imobilizado da sociedade seria adquirido pela autora. (parte do quesito 4.°)
5 .... da autora. (parte do quesito 7.°)
6. A autora, atento o acordo estabelecido, entregou à sociedade comercial detida pelos réus a sua carteira de clientes. (quesito 9.º)
7. Em início de Março de 2007, a autora Maria… dirigiu-se, como era habitual, às instalações da "R…, Lda.".
8. Contudo, foi impossível entrar ...
9. A fechadura foi mudada por ordem do réu A…. (quesitos ou parte dos quesitos 13.º a 15.º)
10. Em inícios de Março de 2007 e fora do horário de expediente, o réu A… transferiu das instalações da sociedade autora para o seu carro pastas do escritório.
11. Essas pastas eram utilizadas pela "R…, Lda." para arquivar os documentos contabilísticos dos seus clientes.
12. Após o referido em 12. a autora instou a sobrinha, tendo-lhe perguntado o que estava suceder, ao que esta respondeu: "que estivesse sossegada que o que era dela ia-lhe ser entregue no dia 20 de Março".
13. Os réus mantiveram as instalações fechadas, abrindo-as só a quem queriam e mantendo-se no seu interior desde esse dia 13 até ao dia 23 de Março de 2007. (resposta aos quesitos 16.º a 19.º)
14 .... e ofereceram os seus serviços. (parte do quesito 20.º)
15. O que levou a sociedade "R…, Lda." a ficar sem clientela. (resposta ao quesito 21.°)
16. Os réus aproveitaram-se da proximidade e confiança que já tinham com os clientes da "R…, Lda.", para constituir outra empresa e iniciar a mesma actividade, levando consigo a clientela daquela. (quesito 24.°)
17. Mesmo aplicando uma margem de segurança de 30% de avaliação da empresa, sempre a empresa teria um lucro de, pelo menos, € 117.656,36. (quesito 28.°)
18. Face à descrita conduta dos réus, a quota da autora sofreu uma desvalorização equivalente a 100%, ou seja, de € 82.359,45. (quesito 30.°)
IV.
1. Erro de julgamento em matéria de facto
(…)
A Relação deve evitar a anulação do julgamento quando dispõe de elementos suficientes para decidir a questão.
Pese embora, o processo contenha base instrutória, pela qual foi delimitado o conjunto de factos a submeter à produção de prova, e a audiência final tenha decorrido já no âmbito de aplicação do novo Código de Processo Civil, sem qualquer ampliação da matéria de facto, a verdade é que esta Relação está na posse de todas as provas produzidas no processo e que os próprios RR. não só não invocam a necessidade de produzir mais provas sobre o assunto, como até aceitam, nas contra-alegações, que alguns dos clientes que saíram da R…, Lda. tornaram-se depois cliente da O…, Lda. Toda a prova produzida --- e foi muita e forte a prova testemunhal sobre esta questão --- aponta no sentido de que esses clientes formaram uma grande parte dos que saíram da R…, Lda.
Há de então considerar-se provada, esclarecida e restritivamente, a matéria do artigo 70º da petição inicial, nos seguintes termos:
31º-A. “Grande parte daqueles clientes contrataram depois a prestação de serviços de contabilidade com a O…, L.da.”
Por conseguinte, altera-se a decisão proferida em matéria de facto, aditando-lhe os seguintes factos, a atender no lugar próprio:

31º-A. “Grande parte daqueles clientes contrataram depois a prestação de serviços de contabilidade com a O…, L.da.”
32º-A. “Os RR. informaram os clientes da R…, Lda. da sua saída dessa sociedade para constituírem outra empresa, sabendo que, assim, pela proximidade e confiança que tinham com eles, parte dos mesmos decidiria prescindir dos serviços da R…, Lda. e continuaria a trabalhar com eles.”
2. Responsabilidade civil dos RR. recorridos por danos causados à A. recorrente
A A. assenta o seu pedido no dever dos RR. de a indemnizarem, primordialmente, pela desvalorização que a sua quota social na R.., Lda. sofreu com o desvio de clientela por eles operado daquela sociedade para a sociedade O.., Lda., entretanto constituída.
Na sua perspetiva, aquele desvio de clientela foi causa de redução dos lucros da R.., Lda. e, por essa via, reduziu a zero o valor da sua quota social de 70%, face à declaração de insolvência, cujo valor, segundo a avaliação pericial, foi de, pelo menos, € 28.000,00. Conforme contratado, os RR. deveriam ter transmitido aquela quota social à A. tal como a tinham recebido, com o referido valor.
A recorrente apela à aplicação do instituto da responsabilidade civil, como fonte do dever de indemnizar que invoca. Não a responsabilidade civil por atos ilícitos, entendendo, nomeadamente, que não está em causa a ação dos RR. enquanto gerentes da R.., L.da, mas o incumprimento de deveres acessórios de conduta a que estavam adstritos no âmbito do contrato celebrado com a recorrente relativamente à transmissão da sua quota na R.., Lda.; incumprimento esse que implicou uma desvalorização da quota que lhe transmitiram na proporção dos clientes que rescindiram contrato com aquela sociedade e levou à sua insolvência declarada, sendo irrelevante a circunstância dos RR. serem sócios e gerentes desta sociedade.
Sem prejuízo da nossa liberdade na aplicação das regras de direito aos factos (art.º 5º, nº 3), a recorrente defende, assim, que está em causa responsabilidade contratual, não atacando o afastamento da responsabilidade civil por atos ilícitos decidido na sentença recorrida por inaplicabilidade ao caso do regime do art.º 79º do Código das Sociedades Comerciais.
A responsabilização civil por atos ilícitos depende da verificação dos seguintes pressupostos:
a) A existência de um facto voluntário do agente;
b) Que o facto seja ilícito, contrário à lei;
c) A existência de um nexo de imputação do facto ao lesante;
d) Que à violação do direito subjetivo ou da lei sobrevenha um dano; e, por último,
e) Que exista um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pelo lesado, de modo a poder afirmar-se, à luz do Direito, que o dano é resultante da violação.
Só a verificação simultânea de todos estes elementos poderá constituir o lesante na obrigação de indemnizar o lesado, apenas desta forma surgindo o correspondente direito de crédito deste último, ou seja, o direito a ser indemnizado.
Compete ao lesado provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa (art.º 487º, nº 1, do Código Civil).
Assim, o primeiro pressuposto, e elemento básico, de que depende a responsabilidade civil é constituído pela existência de um facto voluntário do lesante, seja uma ação ou uma omissão, que tendo a possibilidade de agir de outra forma acabou por optar pela via que implicou uma lesão de um direito alheio. Com efeito, a responsabilização de alguém pressupõe sempre uma manifestação de vontade humana, incluindo-se no conceito de facto voluntário as condutas que sejam domináveis ou passíveis de controlo pela vontade humana.
O facto danoso deverá, ainda, caracterizar-se como ilícito, ou seja, como contrário ao direito, algo que este não deseja e, por isso, reprova. A ilicitude, ao nível da responsabilidade civil, pode revestir uma de duas modalidades: ou se traduz na violação de direitos ou interesses de outrem; ou se manifesta na violação de uma norma destinada a proteger interesses alheios.
A responsabilidade contratual (art.ºs 798º e seg.s do Código Civil) pressupõe, essencialmente, os mesmos requisitos, pese embora existam algumas diferenças assinaláveis de que destacamos as seguintes, pela relevância que aqui podem ter:
- A ilicitude refere-se à infração de uma relação obrigacional ou direito de crédito, que existia entre o lesante e o lesado, tendo, na maior parte das vezes, por base um contrato;
- A culpa presume-se (na responsabilidade contratual - art.ºs 799º, nº 1, do Código Civil);
- Quanto ao nexo causal de imputação do facto ao devedor, este só responde pelos danos que sejam consequência provável (adequada) do não cumprimento ou do cumprimento defeituoso da obrigação (art.º 563º do Código Civil).
Este tratamento diferenciado corresponde ao facto de a responsabilidade contratual atender à violação de direitos relativos, de direitos contratuais (cf. o nº 2 do art.º 406º do Código Civil), enquanto a responsabilidade extracontratual diz respeito à violação de interesses legalmente protegidos ou de direitos absolutos (nº l do art.º 483º; as violações de património, como tais, não são abrangidas pelo art.º 483º). Todos os tipos da responsabilidade civil extracontratual têm a sua fonte unicamente na lei, constituindo assim uma obrigação por força da lei. [10]
Como ensina Menezes Cordeiro[11] , o incumprimento é a não realização, pelo devedor, da prestação devida, enquanto essa não realização corresponda à violação da norma que lhe era especificamente dirigida e lhe cominava o dever de prestar. Isto é, o incumprimento é a não realização da prestação devida, enquanto devida.
Na responsabilidade contratual há uma violação do dever de prestar.
A recorrente imputa aos RR. uma situação que incumprimento de deveres acessórios de conduta, como fonte da sua responsabilidade. Os RR. terão cumprido a sua obrigação em termos que não correspondem à conduta devida.
No cumprimento da obrigação, bem como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé.
À ideia de boa fé estão ligados os deveres de fidelidade, lealdade e honestidade e o direito de confiança na realização e fiel cumprimento dos negócios jurídicos. [12]
A boa-fé refere-se tanto aos deveres principais ou típicos de prestação e aos deveres secundários ou acidentais, como aos deveres acessórios de conduta [13], quer pelo lado do devedor, quer pelo lado do credor (v.g., evitar a maior e desnecessária oneração da prestação). A má fé do devedor, pode dar lugar, conforme os casos, a uma indemnização pelos danos causados ao credor, nos termos gerais do art.º 483º ou à falta culposa do cumprimento, com as consequências, prescritas nos artigos 798º e seg.s, todos do Código Civil.
Proceder de boa-fé, seja no cumprimento da obrigação, seja no próprio exercício do direito, significa, no sentido amplo em que a expressão (boa-fé) é manifestamente usada, agir lealmente, corretamente, honestamente, quer no cumprimento do dever que a lei impõe ou sufraga, quer no desfrute dos poderes que o Direito confere [14]. Tal princípio deve considerar-se extensivo a todos os outros domínios onde exista uma relação especial de vinculação entre duas ou mais pessoas.[15]
Em sentido objetivo, a boa fé acompanha a relação contratual desde o seu início, permanece durante toda a sua vida e subsiste mesmo após se ter extinguido. Está presente, além do mais, na formação do contrato e na sua execução e cumprimento. Segundo Mota Pinto [16], “do contrato fazem parte não só as obrigações que expressa ou tacitamente decorrem do acordo das partes, mas também, designadamente, todos os deveres que se fundam no princípio da boa fé …Nesta linha, importa sublinhar o papel decisivo da boa fé no enriquecimento do conteúdo do contrato, mormente por constituir a matriz dos denominados deveres laterais, como os deveres de cuidado para com a pessoa e o património da contraparte, os deveres de informação e esclarecimento, etc.”. Acrescenta o mesmo insigne professor [17] que em certos casos, deve relevar juridicamente a confiança justificada de alguém no comportamento de outrem, quando este tiver contribuído para fundar essa confiança e ela se justifique igualmente em face das circunstâncias do caso concreto. Deve ainda ser dada satisfação ao interesse do credor com o menor sacrifício possível do devedor.
As partes, sabendo do interesse económico do contrato refletido na natureza das prestações que lhes incumbem, não podem limitar-se, diríamos, a uma atuação formal, automatizada, que desconsidere os interesses da parte contrária.
Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de fevereiro de 2010 [18], a boa-fé no cumprimento dos contratos traduz-se no dever de agir segundo um comportamento de lealdade e correção, que visa contribuir para a realização dos interesses legítimos que as partes pretendem obter com a celebração do contrato. “A boa-fé não contemporiza com cumprimentos formais; exige uma atitude metodológica particular perante a realidade jurídica, a concretização material dos escopos visados. Este aspecto releva no domínio dos deveres acessórios, em boa parte destinados a promover a realização material das condutas devidas, sem frustrar o fim do credor e sem agravar a vinculação do devedor”.
Sabemos que, no dia 25 de março de 2003, foi constituída a R.., Lda., que tinha por objeto a exploração de gabinete de contabilidade, sendo que, formalmente, o seu capital social ficou dividido em duas quotas, sendo uma de 85%, atribuída à R. S.., e a outra de 15% como pertencente ao R. A.., conforme escritura pública de constituição.
Foi a A. Maria.. que propôs aos RR. a constituição daquela sociedade mediante as seguintes condições que os RR. aceitaram:
- Seria constituída uma sociedade por quotas denominada “R.., Lda.”, com capital social de € 5.000 (cinco mil euros);
- Tal capital social seria depositado na conta bancária da sociedade pela autora;
- E seria dividido em três quotas: 70% do capital social seria detido pela autora Maria.., sendo que os réus deteriam, cada um, uma quota equivalente a 15% do capital social;
- A gerência seria exercida pelos sócios aqui réus;
- A autora pretendia que no contrato de sociedade apenas figurassem como sócios os réus, pelo que, e na verdade, no contrato de sociedade, a divisão do capital social seria a seguinte: 85% do capital social pertenceria à ré S.. e 15% pertenceria ao Réu A..;
- No momento que entendesse adequado a autora solicitaria a formalização da titularidade da quota de 70% do capital social, cuja transmissão se faria através da divisão da quota pertencente à ré Susana Alexandra em duas: uma de 70% que seria cedida à autora, e 15% permaneceriam na titularidade da S.., devendo a quota de 70% ser restituída à autora nas exatas condições em que foi recebida. [19]
Estabelecidas estas condições, a gerência passou a ser exercida, tal como acordado, por ambos os RR.
Em meados de 2006, mas mais insistentemente no início do ano de 2007, a A. demonstrou, junto dos RR., interesse na formalização da titularidade da sua quota de 70% na sociedade, mas, nessa ocasião, o R. A.. recusava-se a cumprir o acordado referido em 19. f). Os RR. mudaram a fechadura da porta de acesso às instalações daa R.., Lda., sem facultar à autora cópia das novas chaves. O R. informou a A. Maria .. que não lhe entregaria a chave “até a situação estar resolvida” e que a sua presença nas instalações da “R.., Lda. ficaria limitada ao horário de expediente.
No entanto, a 23 de março de 2007, depois dos RR. terem encerrado as instalações no dia 13 de março, com indicação de que era para balanço, a A. foi informada por um Cartório Notarial de uma proposta de doação, documentada a fl.s 20 a 22, pela qual os RR. propunham transmitir-lhe uma quota de valor nominal de € 3.500,00 (o que corresponde a 70% do capital social) titulada em nome de S.., no capital social da “R.., Lda.”, doação que a A. aceitou a 25 de março de 2007 através de documento exarado no mesmo cartório, nomeando-se, em simultâneo, gerente da aludida sociedade.
Antes, porém, os réus informaram clientes da “R.., Lda.” de que iam sair para uma nova sociedade, sabendo que alguns desses clientes poderiam vir a optar por transferir a sua contabilidade para essa nova empresa.
Sessenta e quatro clientes da “R.., Lda. rescindiram o contrato de prestação de serviços que possuíam com efeitos a partir do dia 28 de fevereiro de 2007. Até então a R.., Lda. tinha 90 clientes.
Grande parte daqueles clientes contrataram depois a prestação de serviços de contabilidade com a O.., L.da. que os RR. constituíram no dia 13 de março de 2007, data em que encerraram as instalações da R.., Lda.
Alguns clientes da A. haviam passado a fazer parte da clientela da sociedade Gabinete de Contabilidade de S.., Lda. Depois, alguns clientes do Gabinete de Contabilidade de S.. passaram a ser clientes da R.., Lda.
Citando Almeida Costa [20], refere-se no douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8.9.2009[21] que, “numa compreensão globalizante da situação jurídica creditícia, apontam-se, ao lado dos deveres de prestação --- tanto deveres principais de prestação, como deveres secundários ---, os deveres laterais (…), além de direitos potestativos, sujeições, ónus jurídicos, expectativas, etc. Todos os referidos elementos se coligam em atenção a uma identidade de fim e constituem o conteúdo de uma relação de carácter unitário e funcional: a relação complexa em sentido amplo ou, nos contratos, relação contratual”.
Continuando a parafrasear aquele acórdão, também Mota Pinto [22] refere que “além dos deveres principais de prestação e dos direitos correspetivos, que definem o tipo da relação contratual, existem ou podem existir, também, deveres secundários de prestação”, cujas características se diversificam de modo a distinguir entre deveres secundários de prestação autónoma (trata-se de obrigações sucedâneas do dever primário de prestação) e os deveres secundários, acessórios da prestação principal, apelidados por Thiele de “deveres de prestação lateral ou auxiliar (que não têm autonomia em relação a esta última)”.
Cita-se ali ainda Carneiro da Frada [23] por alertar para o facto de o contrato convocar “uma ordem normativa”, que o envolve, sujeitando os contraentes aos ditames da regra da boa fé por todo o seu período de vida e daí que, “ao lado dos deveres de prestar – sejam eles principais de prestação ou acessórios da prestação principal -, floresce na relação obrigacional complexa, um leque mais ou menos amplo de deveres que disciplinam o desenrolar da relação contratual, que podem designar-se deveres laterais ou simples deveres de conduta”.
E escreveu-se também naquele aresto que “estes deveres laterais, para usar a terminologia de Esser, ou acessórios, como prefere chamar-lhes Pedro Pais de Vasconcelos[24] (“o mais característico destes deveres não é a lateralidade em relação ao contrato, mas a acessoriedade em relação aos deveres principais dele emergentes”), não estão orientados para o interesse no cumprimento do dever principal da prestação, antes se caracterizam “por uma função auxiliar da realização positiva do fim contratual e de protecção à pessoa e aos bens da outra parte contra os riscos de danos concomitantes”.
Ainda segundo Carneiro da Frada, estes deveres laterais “não estão virados, pura e simplesmente, para o cumprimento do dever de prestar, antes visam a salvaguarda de outros interesses que devam, razoavelmente, ser tidos em conta pelas partes no decurso da sua relação” e “exprimem, na formulação de Larenz, a necessidade de tomar em consideração os interesses justificados da contraparte e de adoptar o comportamento que se espera de um parceiro negocial honesto e leal, e costumam fundamentar-se no princípio da boa fé”.[25]
Estas obrigações ditas laterais, como nota Menezes Cordeiro [26], surgem-nos como o resultado do comprometimento das partes e ligadas ao cumprimento das obrigações principais, com estas coenvolvidas, e, portanto, merecedoras da tutela do Direito, podendo surgir, assim, como tendo estado na base de todo o desenvolvimento negocial, quiçá determinando-o.
Diz-se ainda o referido acórdão de 8.9.2009 que Pedro Pais de Vasconcelos classifica estes deveres (acessórios, como prefere chamar-lhes) em deveres de proteção, de esclarecimento e de lealdade.
Em relação aos primeiros, diz-nos que eles “vinculam as partes a evitar a ocorrência de danos, pessoais ou patrimoniais, para qualquer uma delas, no quadro da execução do contrato”, certo que “em caso de desrespeito dão lugar a responsabilidade civil por violação positiva do contrato”.
Estes deveres “caracterizam-se por uma função auxiliar da realização positiva do fim contratual e de protecção à pessoa e aos bens da outra parte contra os riscos dos danos concomitantes” e, citando Larenz, “identificam-se com os deveres de adoptar o comportamento que se pode esperar entre contraentes honrados e leais” [27].
Escreve Pinto Monteiro [28] que “estes deveres acessórios, distintos dos deveres principais de prestação, são, no entanto, “essenciais ao correcto processamento da relação obrigacional em que a prestação se integra”; e Antunes Varela [29] adverte para o facto de a violação destes deveres poder dar azo não só à resolução do contrato, mas também obrigar à indemnização dos danos causados à outra parte.
Mota Pinto [30] cita Canaris e Carneira da Frada para apontar a existência da chamada “terceira via” na classificação a responsabilidade que, assim, não se cingiria à distinção tradicional de responsabilidade extracontratual e responsabilidade contratual, indicando como que um nova forma para um conjunto de responsabilidades em que se inclui a violação de deveres laterais ao contrato, a responsabilidade pela confiança e até a culpa in contrahendo.
Colhidos estes ensinamentos, votemos ao caso sub judice.
Embora formalizada apenas pelos RR., a sociedade R.., Lda. funcionou, na realidade, desde a sua constituição, como se tivesse ainda um terceiro sócio, a A., como que um sócio irregular. Tudo se passava como se esta detivesse uma quota de 70% do capital social, sendo os restantes 30% pertencentes aos RR., na medida de 15% para um e 15% para o outro. Assim aconteceu no interesse da A. ao pretender que no contrato de sociedade apenas figurassem como sócios os RR., com uma quota de 85% para a R. S.. e 15% para o R. A.., mas salvaguardado a possibilidade de, por sua iniciativa exclusiva (da A.) e quando achasse oportuno, formalizarem a titularidade da sua quota de 70%, retirando-a (formalmente) da quota da R. S.., nas exatas condições em que foi recebida. Far-se-ia então corresponder a realidade formal à realidade material da sociedade.
Note-se que até foi a A. que depositou a totalidade do capital social na conta bancária da sociedade.
A A. começou a manifestar a intenção de formalizar a titularidade da sua quota em meados do ano de 2006, mas teve necessidade de insistir, com mais afinco, nesse objetivo no início de 2007, não vendo satisfeitas a sua vontade.
Em contrapartida (não prevista no acordo entre eles estabelecido), o R. A.. vinha propondo à A. que lhe cedesse a sua quota de 70% por € 50.000,00, recusando a formalização pretendida e em que anteriormente acordara. Reconhecia aquela titularidade substantiva, mas recusou sempre a sua formalização, propondo-se comprar e pagar a participação da A. na empresa pela quantia de € 50.000,00.
Os RR. mudaram a fechadura da porta de acesso às instalações da R.., Lda., impedindo a A. de lá entrar fora do horário de expediente. O R. anunciou à A. que só lhe entregaria a chave quando a situação estivesse resolvida, como que pressionando-a no sentido da venda da sua participação pelo referido preço; porém, sem êxito algum.
Não era a A. que estava obrigada a vender a sua participação social aos RR.; eram estes que estavam adstritos à formalização daquela participação da A. na R.., Lda., e sem qualquer contrapartida, logo que ela o desejasse.
Face ao impasse em que se encontravam, os RR. decidiram dar cumprimento à promessa contratada e, no dia 23 de março de 2007 formalizaram uma doação da quota de 70% a que a A. tinha direito na R.., Lda., equivalente a € 3.500,00 do seu capital social. Três dias depois a A. formalizou a aceitação da proposta.
Cumpria-se assim a promessa estabelecida entre as partes. Os RR. abdicavam da sua intenção de adquirir por € 50.000,00 a participação não formalizada da A. na sociedade e entregavam formalmente à A. a quota a que tinha direito.
Será que o fizeram nas condições em que a receberam, como estavam obrigados?
Como muito bem refere a sentença recorrida, o valor de uma quota social não é apenas o seu valor nominal. Sendo um direito transacionável, tem valor de mercado, que varia em função de muitos fatores, designadamente a aptidão e capacidade da sociedade para produzir lucros na sua atividade e os poder distribuir, o património acumulado, a sua posição no mercado, existência e medida do seu passivo, etc.
Entregar a quota nas condições em que a receberam não é simplesmente formalizar uma cedência nominal da quota, mas entregá-la com a correspondência de valor que a sociedade tem ao tempo da sua formalização, pois que, em substância, a A. sempre a deteve, como sua real titular.
Mas ainda que as partes não tivessem acordado a transferência da quota nas referidas condições, sempre essa transferência deveria ser acompanhada do seu valor real ao tempo desse ato, com respeito pelo interesse da beneficiária.
Como observámos já, quando os RR., a 23 de março de 2007, doaram a quota à A., já haviam encerrado as instalações da empresa há dez dias. E antes de tudo isso, em janeiro ou mesmo anteriormente, vinham informando os clientes da R.., Lda. de que iam sair para uma nova sociedade, sabendo que alguns desses clientes poderiam vir a optar por transferir a sua contabilidade para essa nova empresa, deixando de trabalhar com a R.., Lda.. Nessa sequência, 64 dos 90 clientes desta sociedade rescindiram mesmo o contrato de prestação de serviços com efeitos a partir de 28 de fevereiro de 2007 e grande parte deles contrataram depois os serviços da sociedade O.., Lda. que os RR. constituíram no mesmo dia 13 de março em que encerraram as portas da R.., Lda. Ou seja, quando doaram a quota à A. já tinham anunciado há muito tempo que iam sair da referida sociedade, já a maioria dos seus clientes haviam rescindido os seus contratos de prestação de serviços (no exercício da gerência dos RR. que com ela se conformou), já tinham encerrado a empresa e até já tinham constituído a O.., Lda. onde receberam grande parte dos clientes que, na sequência da sua informação, abandonaram a R.., Lda.
Ora, mesmo que os RR. não admitissem que muitos dos clientes da R.. passariam a ser clientes da O.., Lda. --- o que é altamente improvável face à confiança que os mesmos tinham nos RR. e vontade de por eles serem servidos (que não pela A.) --- a saída de cerca de 2/3 da clientela da R.., Lda. ficou a dever-se às informações que lhe foram dando, nada justificando o facto que não fosse provocar essa mesma saída.
A divulgação daqueles factos era, sobretudo, contrária ao interesse da sociedade de que os RR. eram então gerentes, mas também ao interesse da A., que, por via da perda social de clientela, que se desenvolvia já desde fevereiro de 2007, reduziria o seu volume de negócio e depreciaria o valor das participações sociais dos sócios.
Sem clientela, a sociedade não teria atividade e perdia todo o interesse, e as quotas sociais perdiam também o seu valor; com redução significativa de clientela não haveria uma desvalorização total, mas sempre haveria uma perda relevante daqueles valores.
Toda a conduta acessória ou lateral dos RR. foi preparada e orientada no sentido de prejudicar a A. em benefício direto ou indireto deles próprios. Deveria ter-se orientado pela função auxiliar da realização positiva do fim contratual e de proteção à pessoa e aos bens da A., contra os riscos de danos concomitantes ao cumprimento da obrigação principal; mas, com adversidade, pautou-se por uma ação contrária, desonesta e desleal, com evidente prejuízo da A. e com benefício pessoal dos próprios RR.
Note-se que o R. A.. chegou a oferecer à A. € 50.000,00 pela sua participação social, o que indicia uma boa situação económica da sociedade entre meados de 2006 e o início de 2007.
Põe-se então a questão de saber se houve cumprimento defeituoso da obrigação dos RR. na sua relação com a A. de formalização da sua quota social ou se, ao agirem da forma que agiram, os RR. cumpriram a obrigação principal assumida no contrato celebrado com aquela, mas, com má fé, violaram intencionalmente importantes deveres acessórios, laterais e auxiliares de conduta e que eram importantes na economia do contrato, na realização positiva do seu fim.
Deve salientar-se que não está em causa a responsabilidade dos RR. enquanto gerentes da R.., Lda. e o disposto no art.º 79º do Código das Sociedades Comerciais, mas deveres de conduta acessórios ao cumprimento de um contrato havido entre a A. e os RR. relativamente à formalização da titularidade da quota social.
Provada aquela violação de deveres, a conduta dos RR. deve ter-se como ilícita. É também culposa, pela censurabilidade que merece. Por causa daquela ação dos RR., a A. veio a sofrer danos patrimoniais consistentes na desvalorização da sua quota de 70% do capital da sociedade, pelo que está também demonstrado o nexo casual e o dano, enquanto pressupostos da responsabilidade.
O dano corresponde à desvalorização no mercado da quota da A. em função da redução do volume de negócio que resultou para sociedade da acentuada saída de clientes.
Inclinando-nos, no caso, para uma situação de violação de deveres contratuais [31], se não por cumprimento defeituoso do contrato, ao menos por violação de veres acessórios ou laterais de conduta. Estão demonstrados os pressupostos da responsabilidade contratual dos RR., mesmo a sua culpa efetiva, sem necessidade de recorrer à presunção que emerge do art.º 799º, nº 1, do Código Civil, devendo responder pelos prejuízos causados à A., sob a pretendida forma de indemnização.
Importa saber qual foi o valor do dano causado pelos RR. à A. É de realçar aqui que, segundo o relatório pericial constante dos autos (fl.s 616 e seg.s), a diferença apurada dos serviços prestados faturados entre o primeiro e o segundo trimestre de 2007 é de € 3.260,83, o que, em termos percentuais, corresponde a um decréscimo de 20%. Emerge do mesmo relatório que a sociedade sofreu uma quebra abrupta no volume de negócios em maio de 2007.
Está provado que o valor de venal da quota social de 70% poderia atingir € 28.000,00. Todavia, a A. prosseguiu na gerência da R.., Lda. até que, só em 27 de março de 2008 viria a ser declarada insolvente.
Não é possível estabelecer um nexo causal entre a situação criada pelos RR. e a insolvência da R.., Lda. Poderá esta ter ficado a dever-se a muitos outros fatores, mesmo ocorrências posteriores a março de 2007, como seja o tipo de gestão implementada pela A. gerente, a qualidade do seu trabalho, etc.
O que não está quantificado e importa conhecer é a diferença entre o valor que a quota social de 70% teria em março de 2007 se nela tivessem permanecido os cerca de 90 clientes que teve até fevereiro de 2007 e o valor que passou a ter a partir daquele mês de março em função da redução do número de clientes para cerca de 26 e da perda de negócio que essa redução significou.
Ou seja, em março de 2007 aquela quota seria vendida no mercado pelo valor de x se tivesse os cerca de 90 clientes que justificavam um determinado lucro, mas tendo em conta a redução da clientela da R.., Lda. para cerca de 26 clientes, aquela quota passou a valer no mercado cerda y. Não sendo possível atingir valores exatos, hão de encontrar-se valores mínimos.
Assim se cumpre a teoria da diferença que preside à obrigação de indemnizar, com expressão dos art.ºs 562º e 563º do Código Civil.
Faltando elementos para a fixação daquele valor, que corresponderá ao quantum indemnizatório a que a A. tem direito pelo dano patrimonial sofrido, os RR. serão desde já condenados na quantia que oportunamente vier a ser liquidada, nos termos do art.º 609º, nº 1.
*
A indemnização pelos danos não patrimoniais
Estão verificados os pressupostos da responsabilidade civil dos RR. por atos ilícitos.
Ultrapassada que está a tese, por alguns já defendida, de que os danos morais, de grandezas heterogéneas e dimensão psicológica e espiritual [32], são por natureza irreparáveis, o próprio legislador consignou o dever da sua reparação sempre que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (art.º 496º, nº 1, do Código Civil). Hoje, o dano moral é um dano proprio sensu.
Tem-se então perspetivado que a prestação pecuniária a cargo do lesante, além de constituir para este uma sanção adequada, em benefício da vítima, pode contribuir para atenuar, minorar e de algum modo compensar os danos por ela sofridos. Não há a intenção de pagar ou indemnizar o dano, muito menos o intuito de facultar o comércio com valores de ordem moral, mas apenas o propósito de atenuar um mal consumado, sabendo-se que a composição pecuniária pode servir para satisfação das mais variadas necessidades, desde as mais grosseiras e elementares às de mais elevada espiritualidade, tudo dependendo, nesse aspeto, da utilização que dela se faça[33]. Com a compensação, o lesado mais facilmente procura alegrias e satisfações, porventura de ordem puramente espiritual, que consubstanciam um lenitivo com a virtualidade de o fazer esquecer ou, pelo menos, mitigar o havido sofrimento moral.
Como também se tem dito, trata-se de prejuízos de natureza infungível, em que, por isso, não é possível uma reintegração por equivalente, como acontece com a indemnização, mas tão-só um almejo de compensação que proporcione ao beneficiário certas satisfações decorrentes da utilização do dinheiro. A indemnização tem aqui um papel mais compensatório, mais do que reconstitutivo.
Com ensina Antunes Varela [34], “a indemnização reveste, no caso dos danos não patrimoniais, uma natureza acentuadamente mista: por um lado, visa reparar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente”.
O dano deve ser de tal modo grave que justifique a tutela do Direito, pela concessão da satisfação de ordem pecuniária.
O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal (nº 3 do referido art.º 496º do Código Civil), através de adequado e equilibrado critério de justiça material e concreta. Devem ser ponderadas as circunstâncias concretas de cada caso, considerando especialmente, em situações de mera culpa, a possibilidade da indemnização ser inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que a culpabilidade do agente e a situação económica deste e do lesado o justifiquem (art.ºs 494º e 496º, nº 3, do Código Civil), o que confere ainda mais a natureza de compensação, de satisfação, do que de indemnização à quantia a atribuir.
A jurisprudência dos tribunais superiores, de há anos a esta parte, defende que, para responder de modo atualizado ao comando do art.º 496º, a indemnização por danos não patrimoniais tem que constituir uma efetiva possibilidade compensatória, tem que ser significativa [35]; mas também tem que ser justificada e equilibrada, não podendo constituir um enriquecimento abusivo e imoral.
Assim, a apreciação da gravidade do dano, embora tenha de assentar no circunstancialismo concreto envolvente, deve operar sob um critério objetivo, num quadro de exclusão, tanto quanto possível, da subjetividade inerente a alguma particular sensibilidade humana, e a fixação da indemnização deve orientar-se em harmonia com os padrões de cálculo adotados pela jurisprudência mais recente, de modo a salvaguardar as exigências da igualdade no tratamento do caso análogo, uniformizando critérios [36].
Numa síntese feliz, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.6.2007[37] refere que “a justa indemnização por danos não patrimoniais deve ser achada tendo o julgador presente todas as regras da boa prudência, do bom senso prático da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida, não obliterando, para além dos padrões de indemnização geralmente adoptados na jurisprudência, as flutuações do valor da moeda, bem como que a reparação tem uma natureza mista, dado que por um lado visa reparar e, por outro, punir a conduta”.
Pois bem…
A mudança de fechadura da porta de acesso às instalações da última, sem que fosse facultada à A. cópia da nova chave, o seu encerramento por determinação dos RR. entre 13 e 23 de março de 2007, as informações que os RR. deram aos clientes de que iam sair para uma nova sociedade, o facto de, nessa sequência, 64 clientes da R.., Lda. terem rescindido o contrato de prestação de serviços (de contabilidade) que possuíam, com efeitos a partir do dia 28 de fevereiro de 2007, quando até então tinha 90 clientes, mesmo que constituindo, no seu conjunto, apenas um complexo de atos violadores de deveres acessórios de conduta dos RR. para com a A., criaram nesta justificado sentimentos de injustiça, impotência e humilhação. Durante os primeiros meses que se seguiram à formalização da titularidade da quota de 23 de março de 2007, a A. não dormia e recusava-se a comer e a sair com os amigos.
Sendo estes os danos sofridos e recorrendo à equidade segundo o critério que deixámos exposto, tendo como referência a data da citação dos RR., consideramos justo e adequado fixar a indemnização por esta categoria de danos na quantia de € 1.800,00.
*
SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
1. Violam o princípio da boa fé e deveres acessórios ou laterais de conduta, incorrendo em responsabilidade civil e na obrigação de indemnizar a A. pela desvalorização da sua quota, os RR. que, antes de formalizarem a cedência dessa quota de 70% no capital social de uma sociedade, se aproveitam da confiança que a clientela deposita no trabalho pessoal deles e a informa de que vão deixar de trabalhar na sociedade, perspetivando a saída de grande parte desses clientes, como efetivamente aconteceu.
2. Em vez de prestarem essa informação, era dever dos RR. orientarem-se pela função auxiliar da realização positiva do fim contratual e de proteção à pessoa e aos bens da A., contra os riscos de danos concomitantes ao cumprimento da obrigação principal.
*
V.
Pelo exposto, de facto e de Direito, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência, julgando-se a ação também parcialmente procedente, revoga-se a sentença recorrida, cuja decisão absolutória se substitui nos seguintes termos:
- Condenam-se os RR., solidariamente, a indemnizar a A. pelo dano patrimonial sofrido e acima indicado, na quantia que se liquidar oportunamente, e nos respetivos juros de mora, à taxa legal atual (4%) e àquela que em cada momento vigorar, desde a citação[38] , até integral pagamento;
Condenam-se os RR., solidariamente, a indemnizar a A. pelos danos não patrimoniais sofridos na quantia de € 1.800,00 (mil e oitocentos euros) e nos respetivos juros de mora, à taxa legal em vigor e que em cada momento vigorar, desde a citação, até integral pagamento.
Custas, provisoriamente, na ação e na apelação, pela recorrente e pela recorrida, na proporção de 80% para a A. e 20% para os RR.
Guimarães, 19 de março de 2015
Filipe Caroço
António Santos
Figueiredo de Almeida
-----------------------------------------------------------------------------------------------------------
[1] Diploma a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem.
[2] Por transcrição.
[10] Heinrich Ewald Horster, A Parte Geral do Código Civil Português – Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, 5ª reimpressão de 1992, pág. 72 e 75.
[11] Direito das Obrigações, AAFDL, 1980, 2º Volume, pág. 436.
[12] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil, Anotado, vol. II, a pág. 2.
[13] Deveres acessórios de conduta que, na definição de José João Abrantes, in “A Excepção de Não Cumprimento do Contrato”, 1986, 42, nota 8, “são os que, não respeitando directamente, nem à perfeição, nem à perfeita (correcta) realização da prestação debitória (principal), interessam todavia ao regular desenvolvimento da relação obrigacional, nos termos em que ela deve processar-se entre os contraentes que agem honestamente e de boa-fé nas suas relações recíprocas”.
[14] A. Varela, RLJ, 122.°-148.
[15] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, 2ª edição, rev. e atualizada, vol. II, a pág.2.
[16] Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, Coimbra Editora, pág. 126.
[17] Idem, fl.s 127.
[18] Colectânea de Jurisprudência do Supremo I, p. 51, citando, além de outro autores, Menezes Cordeiro, A Boa Fé no Direito Civil, vol. l, pág. 649.
[19] O sublinhado é nosso.
[20] Direito das Obrigações, 9ª edição, pág. 63.
[21] Colectânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, T. III, pág. 38.
[22] Cessão da Posição Contratual, página 337, e nota 1.
[23] Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, pág. 443.
[24] Contratos Atípicos, 2ª edição, Coloecção Teses, pág.s 215 e seg.s.
[25] Contrato e Deveres de Protecção, pág. 36 e seg.s.
[26] Da Boa Fé, I, pág. 604.
[27] Mota Pinto, ob. cit., pág.s 339 e 340.
[28] Erro e Vinculação Negocial, pág.s 44 e 45, também citado no acórdão de 8.9.2009.
[29] Das Obrigações em Geral, 8ª edição, vol. I, pág. 129, também citado naquele mesmo aresto.
[30] Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra editora, 4ª edição, pág.s 137 e 138.
[31] Embora nos pareça que se poderia defender que a violação daqueles deveres laterais constitui uma situação de responsabilidade extracontratual ou a dita terceira via de responsabilidade.
[32] Sem natureza económica (cf. Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 2º Volume, AAFDL 1980, pág. 285.
[33] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Almedina, 5ª edição, pág.s 563 e 564.
[34] Ob. cit., pág. 568.
[35] Cf., entre outros, os acórdãos do S.T.J. de 11.10.94, BMJ 440/449, de 17.1.2008, proc. 07B4538 e de 29.1.2008, proc. 07A4492, in www.dgsi.pt e da Relação de Lisboa de 13.2.97, Colectânea de Jurisprudência, Tomo I, pág. 123,
[36] Não é não incompatível com o exame das circunstâncias de cada caso.
[37] Proc. 07B1543, in www.dgsi.pt.
[38] Conforme pedido.