Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
272/10.2GBMR.G1
Relator: MARIA LUÍSA ARANTES
Descritores: ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
NULIDADE DE SENTENÇA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/30/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO PROCEDENTE
Sumário: I) Em sede de audiência de julgamento foi considerado provado, para além do mais, que o arguido ao proferir a expressão “Se não me entregares isso até amanhã, quando te encontrar parto-te toda”, agiu com a intenção de cercear a liberdade de decisão da ofendida”.
II) Analisada a acusação, verifica-se que não constava da mesma este facto, o qual, enquanto elemento subjectivo do ilícito – a intenção de constranger a ofendida a uma decisão – permite enquadrar a conduta do arguido no crime de coacção, sendo certo que o ilícito que vinha imputado era o de ameaça.
III) Verifica-se, assim, uma alteração substancial dos factos a impor o cumprimento do disposto no art.359.º do C. Penal, o que não ocorreu. Nestes termos, padece a sentença recorrida da nulidade prevista na al. b) do n.º 1 do art. 379.º, do C.P.Penal
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – RELATÓRIO
No processo comum n.º272/10.2GBGMR do 3ºJuizo Criminal do Tribunal Judicial de Guimarães, por sentença proferida em 4/7/2011 e nessa data depositada, o arguido Joaquim A... foi condenado pela prática de um crime de coacção, na forma tentada, p. e p. pelos arts.154.º n.º1 e 2, 22.º, 23.º e 73.º, todos do C.Penal, na pena de 140 dias de multa, à taxa diária de €5,00.
Inconformado com esta decisão condenatória, o arguido interpôs recurso, extraindo da respectiva motivação, as seguintes conclusões (transcritas):
1- De acordo com o artigo 1.º, alínea f) do CPP considera-se alteração substancial quando houver imputação ao arguido de um crime diverso ou houver agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
3- O recorrente vinha acusado de um crime de ameaça, punível com pena de prisão até um ano ou multa até 120 dias, vindo a ser condenado pelo crime de coacção na forma tentada, punível com pena de prisão até dois anos ou multa até 240 dias.
4- Claramente que o crime pelo qual o recorrente foi condenado se trata de um crime diverso e que prevê sanções aplicáveis mais graves do que o crime pelo qual foi acusado.
5- No caso em concreto, apenas houve lugar a esta alteração da qualificação jurídica devido ao acrescentamento da expressão “e cercear a sua liberdade de decisão” no facto dado como provado sob o nº 5, pois foi isto que possibilitou a condenação do recorrente pelo crime de coacção na forma tentada.
6- Quando a alteração da qualificação jurídica resulta de um acrescentamento de um facto, ocorre alteração substancial dos factos, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 359.º do CPP, devendo, assim, ser dado cumprimento ao preceituado nesse artigo, o que não ocorreu, pelo que se verifica uma nulidade processual, que aqui se invoca (artigo 379.º, nº 1, alínea b) do CPP), devendo o aludido despacho e a sentença recorridos serem declarados nulos.
Sem prescindir
7- O recorrente não pode concordar com alguns dos pontos da matéria de facto que o tribunal deu como provado.
8- Quanto aos pontos constantes do número 4) dos factos provados, o tribunal julgou-o incorrectamente, pois baseou-se nas declarações da ofendida e da testemunha Maria P..., irmã da ofendida.
9- No entanto, ambos os depoimentos não podem ser valorados para a condenação do recorrente, pois as mesmas encontram-se de relações cortadas com o recorrente, estão zangadas com ele, como se pode verificar, quer da própria sentença (fls. 3, parágrafo 4), quer do teor dos seus depoimentos (cd da audiência do dia 8 de Junho de 2011, do minuto 00:00:44 ao minuto 00:00:50 e do minuto 00:08:05 ao minuto 00:08:19, quanto ao depoimento da ofendida, e quanto ao depoimento da sua irmã, do minuto 00:00:50 ao minuto 00:01:35).
10- Ambos os depoimentos são incoerentes e, por vezes, contraditórios, pois, a título de exemplo, a irmã da ofendida disse que a sua irmã ficou preocupada em saber a que é que se referia o recorrente quando ele falava do fio (cd da audiência do dia 8/6/11, do minuto 00:14:23 ao minuto 00:14:53), enquanto a própria ofendida disse que não pensou mais no assunto até ser procurada, para o efeito, pelo irmão do recorrente (cd da audiência do dia 8/6/11, do minuto 00:05:45 ao minuto 00:06:49).
11- O depoimento da irmã da ofendida não pode ser tido em conta para a condenação do recorrente pois ela confunde aquilo que viu, daquilo que lhe contaram, pois há coisas que ela relatou como tendo presenciado que é humanamente impossível ela, de facto, ter assistido, afigurando-se que ela entende como sendo verdadeiro tudo aquilo que a sua irmã lhe contou, mesmo que ela não tivesse visto e ouvido (veja-se o seu depoimento - cd da audiência do dia 8/6/11, do minuto 00:02:52 ao minuto 00:03:05, do minuto 00:03:37 ao minuto 00:03:43, do minuto 00:06:33 ao minuto 00:07:06, do minuto 00:07:26 ao minuto 00:07:42, do minuto 00:07:50 ao minuto 00:08:03).
12- Esta testemunha terá, de facto, presenciado uma discussão, mas no local onde se encontrava não ouviu o que o recorrente disse, pelo que, por não ter conhecimento directo dos factos, o seu depoimento não poderá ser valorado.
13- O recorrente nega que tenha dito aquela expressão, mas apenas que lhe disse, pelo facto de ela lhe ter batido com a porta na cara, que se ela tornasse a fazer aquilo, fosse homem ou mulher, iam resolver as coisas de outra maneira (cd da audiência do dia 8/6/11, do depoimento do recorrente, do minuto 00:07:25 ao minuto 00:07:58 e do minuto 00:09:04 ao minuto 00:09:18),
14- declarações estas que foram corroboradas pelo seu irmão, José A..., testemunha nos presentes autos (cd da audiência do dia 8/6/11, do seu depoimento, do minuto 00:08:42 ao minuto 00:10:27).
15- O recorrente sabe que vigora em processo penal quanto à prova testemunhal o princípio da livre apreciação da prova, mas isso “não se confunde com apreciação arbitrária da prova, nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova” (Manuel Lopes Maia Gonçalves in Código de Processo Penal Anotado, 16.ª Edição, 2007, pág. 327).
16- Como não é possível atribuir credibilidade e valor ao depoimento da testemunha Maria P..., temos apenas a versão da ofendida contra a versão do recorrente, pelo que, necessariamente tem de valer aqui o princípio in dubio pro reo, não se podendo julgar como provado que o arguido tivesse dito aquela expressão, pelo que este ponto da matéria de facto foi julgado incorrectamente, pois, pelos depoimentos referidos, não deveria ter sido dado como provado, mas sim como não provado.
17- Quanto ao ponto constante do número 5) dos factos provados também o mesmo não deveria ter sido dado como provado, mas sim como não provado, pois não resulta de nenhum meio de prova, nomeadamente testemunhal, que o recorrente tivesse tido intenção, quer de intimidar a ofendida, quer de cercear a sua liberdade de decisão e, por outro lado, que a ofendida tivesse receado pela sua integridade física.
18- Desde logo, porque o alegado pela ofendida, de que não saiu de casa durante dois dias, foi contrariado, quer pelo depoimento da sua irmã (cd da audiência do dia 8/6/11, do minuto 00:05:06 ao minuto 00:05:22), quer pelas declarações do recorrente (cd da audiência do dia 8/6/11, do minuto 00:09:54 ao minuto 00:10:16).
19- Por não ter sido feita qualquer prova neste sentido, este ponto foi julgado incorrectamente provado, devendo ser dado como não provado.
20- Tendo presente tudo o que acima se alegou, estão reunidas todas as condições para que seja modificada, nos termos acima enunciados, a decisão do tribunal a quo sobre a matéria de facto, nos exactos termos acima referidos (artigo 431.º do CPP), o que se requer.
21- Mesmo a dar-se como provado que o arguido disse a expressão constante do facto dado como provado no nº 4, o uso de tal expressão não configura nenhum ilícito criminal.
22- Os meios de coacção, previstos e punidos, são a violência ou a ameaça com mal importante.
23- Afastada que está o uso da violência, resta a ameaça com mal importante, que é considerada como “o prenúncio, a promessa de um mal futuro, mal este que tem de ser acentuadamente relevante em termos objectivos” (Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I).
24- Para serem preenchidos os elementos objectivo e subjectivo do crime de coacção, necessariamente primeiro, têm de estar preenchidos os elementos objectivo e subjectivo do crime de ameaça, pois aquele consome este. Assim, neste caso, primeiro temos de ver e analisar se esses elementos do crime de ameaça estão preenchidos.
25- São três as características essenciais do conceito de ameaça: mal, futuro, cuja ocorrência dependa da vontade do agente.
26- A inevitabilidade do mal ameaçado tem de aparecer como dependente da vontade do agente, sendo esta que distingue a ameaça do simples aviso ou advertência.
27- Com efeito, se alguém anuncia a outrem perigos que não dependem do seu querer tal não passa de um aviso ou advertência, não sendo esta em si mesma susceptível de perturbar a liberdade de decisão e de acção com ela propondo-se, apenas, consciencializar a pessoa visada de eventuais consequências do seu estado, comportamentos ou atitudes que não dependem daquele que adverte (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto nº 0846214, de 19/11/2008, www.dgsi.pt).
28- Ora, no caso em concreto, o recorrente mesmo a entender-se que disse à ofendida “Se não me entregares isso até amanhã, quando te encontrar parto-te toda”, mesmo assim tal expressão apenas configura um aviso, ou seja, o anunciar desse mal futuro não é dependente da vontade do recorrente, pois a ocorrência desse mal ficaria dependente de se vir a mostrar necessário.
29- Aquela expressão configura apenas um aviso à ofendida de uma consequência, caso ela não entregasse o fio ao recorrente, não configurando tal expressão um crime de ameaça, mas apenas um aviso, uma subordinação do mal ameaçado a um comportamento dela.
30- Ora, não se podendo considerar que esta expressão constitui uma ameaça, também não está, assim, preenchido o tipo objectivo do crime de coacção, pois para se poder falar neste, primeiro tem de se considerar que houve ameaça, mais, que houve ameaça com mal importante, que, também, diga-se não se pode considerar aqui.
31- A expressão “parto-te toda” não configura, de todo, esse mal importante, além de que não se percebe exactamente o que o recorrente, ao proferi-la quis dizer, nem em lado algum dos factos dados como provados, ou na fundamentação se concretiza exactamente em que é que essa suposta ameaça com mal importante se concretiza.
32- Era necessário que, ou nos factos dados como provados, ou na fundamentação se explicasse porque é que se considerou “ameaça com mal importante” a referência a “parto-te toda”.
33- Mas, na sentença recorrida, quanto a esta matéria, apenas se refere que “o arguido, através da sua conduta, dirigindo-se à ofendida nos termos em que o fez, querendo obrigá-la a praticar um facto com a ameaça de um mal futuro à sua integridade física, sabia que tal conduta era adequada a causar-lhe medo, receio e inquietação, limitando-a na sua liberdade de decisão”. Nada mais é dito.
34- Como tal, o recorrente não pode defender-se convenientemente, pois não sabe como e porquê é que o Senhor Juiz assim o entendeu.
35- Ora, salvo o devido respeito, não nos parece que, quanto a estes pontos de se saber se houve ameaça com mal importante e de se saber se com aquela conduta o recorrente limitou a ofendida na sua liberdade de decisão, haja fundamentação suficiente.
36- Nada disto tendo sido feito, há deficiente fundamentação, o que leva, necessariamente, à nulidade da sentença, nos termos dos artigos 379.º, nº 1, alínea a) e 374.º, nº 2 do CPP.
37- Nestes termos, por ocorrerem as nulidades invocadas e, mesmo que se entenda que não ocorrem, por não estar preenchido o tipo legal do crime de coacção, o recorrente não podia ter sido condenado como o foi.
38 - O despacho e a sentença recorridos violaram, ou fizeram errada aplicação do disposto, entre outros, nos artigos 127.º, 128.º, 358.º, 359.º e 374.º, nº 2, do Código de Processo Penal, artigos 153.º e 154.º do Código Penal e artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, não podendo, pois, manterem-se.
O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência [fls.159 a 171].
Admitido o recurso, subiram os autos à Relação.
Nesta instância, a Exma.Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer em que se pronunciou pela nulidade da sentença nos termos do art.379.º n.º1 al.b) do C.P.Penal, dado que não foi dado cumprimento ao disposto no art.359.º do C.P.Penal [fls.182 a 185].
Cumprido o disposto no art.417.º n.º2 do C.P.Penal, o recorrente remeteu para as alegações de recurso que apresentou.
Cumpridos os vistos legais, foram os autos à conferência.
*
II – FUNDAMENTAÇÃO
Decisão recorrida
A sentença recorrida deu como provados e não provados os seguintes factos, seguidos da respectiva motivação:
2.1. Os factos provados
Discutida a causa, resultaram provados, com interesse para a decisão, os seguintes factos:
1. A ofendida Maria C... e o arguido Joaquim A... foram casados entre si, encontrando-se actualmente divorciados por sentença transitada em julgado em 10 de Novembro de 2009;
2. No dia 6 de Março de 2010, cerca das 15H30, a ofendida encontrava-se no jardim da residência de sua irmã Maria P... sita na Rua J..., n.º 5, B..., Guimarães;
3. Na ocasião supra referida, o arguido abeirou-se da ofendida e disse-lhe: "Ouve lá, quero um fio que está na casa da tua irmã", querendo com isto o arguido referir-se a um fio de plástico que se coloca nas máquinas de aparar relva;
4. A ofendida Maria C... não respondeu ao arguido e retirou-se para o interior da residência referida em 2), altura em que este, em voz alta e dirigindo-se à ofendida disse: "Se não me entregares isso até amanha, quando te encontrar parto-te toda";
5. O arguido Joaquim A..., ao proferir a expressão referida em, 4), agiu de forma livre, voluntária e consciente, com a intenção firme e determinada de intimidar a ofendida e cercear a sua liberdade de decisão fazendo com que esta receasse pela sua integridade física;
6. Mais sabia o arguido, ao agir da forma descrita, que a sua conduta era proibida e penalmente punida;
7. O arguido vive sozinho, em casa arrendada, pagando € 57,00 de renda;
8. Está reformado, recebendo uma pensão de reforma no montante de € 276,00 e faz uns biscates de jardinagem, ganhando entre € 20,00 a € 30,00 por mês, vivendo com ajuda de um irmão em géneros alimentares;
9. Tem a 4ª classe e não tem antecedentes criminais.
*
2.2. Os factos não provados
Não resultaram provados quaisquer outros factos, invocados nas peças processuais ou alegados em audiência, que não estejam em oposição ou não tenham ficado prejudicados pelos que foram dados como provados.
*
2.3. Motivação:
A convicção do tribunal fundou-se na análise crítica e conjugada da prova produzida em audiência.

O arguido confirmou ter sido casado com a ofendida durante 32 anos, encontrando-se actualmente divorciados. Disse que não estava em causa nenhuma extensão, mas sim uma bobine de fio de nylon, própria para máquinas de aparar relva e que era sua e tinha deixado em casa da irmã da ofendida. Nega ter ameaçado a ofendida se não lhe entregasse a bobine, confirmando porém que de facto se dirigiu à arguida e lhe pediu que lhe entregasse a bobine.
Porém, dos depoimentos da ofendida e da sua irmã, que se encontrava em casa, resultou que de facto o arguido dirigiu a expressão em causa à ofendida, tendo-se-lhe, aliás, sempre dirigido em tom agressivo.
A ofendida disse que de facto o que estava em causa, veio depois a saber, era uma bobine de uma máquina de aparar relva, e não uma extensão, como na altura percebeu, nem sequer sabendo então ao que o arguido se referia. A ofendida encontrava-se no terreno anexo à casa da sua irmã quando o arguido lhe disse que queria que lhe desse o fio, indo na sua direcção e falando de forma agressiva. Como sentiu medo dirigiu-se para a casa da irmã, onde entrou, seguindo-a o arguido mesmo até à porta e tendo dito que se não lho entregasse até ao dia seguinte a partia toda, repetindo mesmo tal expressão.
A irmã do ofendido disse que se encontrava em casa, na casa de banho, tendo ouvido o arguido a berrar para a ofendida que entrou em casa e apercebendo-se, pela voz, que ele se aproximava também da casa, tendo-o ouvido dizer que se não lhe desse o fio até ao dia seguinte a partia toda, não sabendo a que objecto o arguido se referira, tendo até pensado que se tratava de um fio de ouro. Referiu que a irmã ficou com medo da atitude do arguido e receou que ele concretizasse a ameaça.
Ambos os depoimentos foram convincentes, apesar de ambas terem dito estar zangadas com o arguido, considerados verdadeiros.
Prestou também depoimento José A..., irmão do arguido, que disse não ter assistido aos factos, referindo que ofendida e arguido se dão mal, tendo-lhe o arguido referido ter ocorrido uma discussão e ter dito à ofendida que se lhe tornasse a fazer aquilo lhe dava dois estalos na cara, a ela ou a um homem qualquer, não resultando deste depoimento abalados os da ofendida e da irmã.
Também a testemunha Augusto C..., vizinho do arguido referiu não ter assistido aos factos, tendo ouvido comentar, e ainda que às vezes ocorrem discussões entre o arguido e a ofendida.
Fundou-se ainda o tribunal nas declarações do arguido quanto à sua condição pessoal e ao CRC junto aos autos.”

Apreciação do recurso
De harmonia com o disposto no n.º 1 do art. 412.º do C.P.Penal, o âmbito do recurso é delimitado pelo teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só podendo tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no art. 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R., I – A Série, de 28/12/1995).
Analisadas as conclusões do recurso, são as seguintes as questões suscitadas:
-nulidade da sentença, por alteração substancial dos factos sem cumprimento do disposto no art.359.º do C.P.Penal.
-nulidade da sentença, por insuficiência da fundamentação – art.379.º n.º1 al.a) do C.P.Penal
-impugnação da matéria de facto, concretamente os pontos 4 e 5 dos factos dados como provados.
-erro na qualificação jurídico-penal dos factos.

1ªquestão: não cumprimento do disposto no art.359.º do C.P.Penal
Sustenta o recorrente que a decisão recorrida enferma da nulidade prevista no art.379.º n.º1 al.b) do C.P.Penal, uma vez que houve uma alteração substancial dos factos sem que tenha sido dado cumprimento ao mecanismo processual previsto no art.359.º do C.P.Penal.
O arguido foi acusado pela prática de um crime de ameaça p. e p. pelo art.153.º n.º1 do C.Penal.
Conforme se constata da acta de fls.119, na audiência de julgamento do dia 27/6/2011, o Sr.Juiz proferiu o seguinte despacho: “Após a produção de prova, resulta da da factualidade apurada que subsume não o imputado crime de ameaça ao arguido, mas sim o crime de coacção, p. e p. pelo art.º154.º n.º1 do Cód.Penal, crime esse na forma tentada, nos termos do disposto nos arts.º 22.º e 23.º do Cód.Penal.
Tal configura uma alteração da qualificação jurídica, nos termos do disposto no art.358.º do Cód.Penal, alteração que ora se comunica à defesa.”
A sentença recorrida condenou o arguido pela prática de um crime de coacção, na forma tentada, p. e p. pelos arts.154.º n.º1 e 2, 22.º, 23.º e 73.º, todos do C.Penal
Mais, a acusação reportando-se à conduta do arguido, refere no seu ponto 5: “O arguido Joaquim A..., ao proferir a expressão referida em 4 [“Se não me entregares isso até amanhã, quando te encontrar parto-te toda”, parênteses nosso], agiu de forma livre, voluntária e consciente, com a intenção firme e determinada de intimidar a ofendia – o que conseguiu – fazendo com que esta receasse pela sua integridade física” – cfr.fls.50.
Na sentença, foi dado como provado “O arguido Joaquim A..., ao proferir a expressão referida em, 4), agiu de forma livre, voluntária e consciente, com a intenção firme e determinada de intimidar a ofendida e cercear a sua liberdade de decisão fazendo com que esta receasse pela sua integridade física.”- cfr. ponto 5.
Houve, assim, o aditamento de um novo facto. A questão que se coloca é saber se estamos perante uma alteração substancial dos factos, o que, a verificar-se, face ao não cumprimento do art.359.º do C.P.Penal, implica a nulidade da sentença – art.379.º n.º1 al.b) do mesmo diploma legal.
O nosso processo penal tem uma estrutura basicamente acusatória, consagrada constitucionalmente [art.32.º n.º5 da C.R.P.], embora temperada pelo princípio da investigação. Isso implica que a acusação define e fixa o objecto do processo.
É de realçar que são apenas os “factos” e não a qualificação jurídica que fixam a identidade e o objecto do processo penal. “O objecto da qualificação jurídica são os factos trazidos pela acusação e que consubstanciam o pedaço de vida ou acontecimento que se submete a julgamento (...).Se o objecto do processo se mantém, embora mude a qualificação jurídica que dele se fez, isso não pode ter, nem tem, como consequência a alteração da base factual. Como escreveu CARNELUTI “se o juiz entende que a qualificação dos factos feita pela acusação é errada, ao corrigi-la não modifica os factos mas apenas a sua valoração”. Entender o contrário seria confundir vinculação temática com qualificação jurídica” – Frederico Isascas em Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal, ed. 1999, pags. 106 e ss.
Não obstante o objecto do processo estar definido pela acusação, a lei, por razões de economia processual, e também no próprio interesse da paz do arguido, permite que o tribunal possa considerar factos novos desde que “daí não resulte insuportavelmente afectada a defesa, enquanto o núcleo essencial da acusação se mantém o mesmo” – cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, tomo III, pág. 267.
Por isso, o n.º 1 do art. 359.º do C.P.Penal prescreve que “uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância”, excepto se “…o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal” (nº 3 do mesmo preceito).
A definição de “alteração substancial dos factos” é dada pelo art. 1.º, n.º1, al. f) do C.P.Penal, como sendo “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”.
A alteração substancial dos factos ocorre, pois, quando os novos factos apurados venham a merecer qualificação jurídica diferente dos acusados, isto é, quando os crimes forem diversos ou quando da alteração factual resultar agravamento dos limites máximos das sanções aplicáveis. Nas palavras de Frederico Isasca, ob.cit., pág.144, “decisivo será, quer a valoração social, quer a imagem social do acontecimento ou comportamento trazido a juízo e consequentemente, a forma como o pedaço de vida é representado ou valorado do ponto de vista do homem médio – da experiência social, se se preferir –, quer a salvaguarda da posição da defesa do arguido. Sempre que ao pedaço individualizado da vida, trazido pela acusação, se juntem novos factos e dessa alteração resulte uma imagem ou valoração não idênticas àquela criada pelo acontecimento descrito na acusação, ou que ponha em causa a defesa, estaremos perante uma alteração substancial dos factos”
Revertendo ao caso em apreço, não podemos concordar com a posição assumida pelo tribunal a quo de que houve uma mera alteração da qualificação jurídica, pois foi aditado um novo facto, a saber, o arguido [ao proferir a expressão “Se não me entregares isso até amanhã, quando te encontrar parto-te toda”, parênteses nosso] agiu com a intenção de cercear a liberdade de decisão da ofendida”.
Analisada a acusação, não constava da mesma este facto, o qual, enquanto elemento subjectivo do ilícito – a intenção de constranger a ofendida a uma decisão – permite enquadrar a conduta do arguido no crime de coacção.
O bem jurídico protegido pelo crime de coacção e pelo crime de ameaça é a liberdade de decisão e acção. Porém, os elementos constitutivos destes tipos legais não são coincidentes, sendo que no crime de coacção “o núcleo essencial da acção típica consiste na conduta de constranger (coagir) outra pessoa, mediante os meios tipificados na lei, a realizar uma acção ou omissão ou a suportar uma actividade. (…) O conceito de “constrangimento” implica ofensa do bem jurídico liberdade, pressupondo uma pressão sobre o coagido, através dos meios típicos da violência ou de ameaça de mal importante.”- Ac.R.Porto de 7/1/2009, relatado pela Desembargadora Maria C... Silva Dias, in www.dgsi.pt.
O elemento subjectivo deste ilícito preenche-se com o dolo em qualquer das modalidades previstas no art.14.º do C.Penal, bastando-se com a consciência de que a violência exercida ou a ameaça feita é susceptível de constranger o visado e com tal se conformar.
Posto isto, verifica-se que na situação vertente o facto novo apurado integra o elemento subjectivo do crime de coacção, o qual não estava vertido na acusação, e que permitiu a imputação de um crime diverso, com agravação do limita máximo da sanção aplicável.
Há, pois, uma alteração substancial dos factos a impor o cumprimento do disposto no art.359.º do C.Penal, o que não ocorreu.
Nestes termos, padece a sentença recorrida da nulidade prevista na al. b) do n.º 1 do art. 379.º, do C.P.Penal [É nula a sentença que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º], por ter condenado o arguido/recorrente por crime relativamente ao qual foi produzida a referida alteração, consubstanciada no aditamento atrás mencionado, sem que tenha procedido à respectiva comunicação nos termos do art. 359.º, com referência ao artigo 1.º, al. f), ambos do C.P.Penal.
Consequentemente o processo tem de ser remetido à 1.ª instância, com vista à sanação de tal nulidade, através da reabertura da audiência de julgamento com a comunicação aos sujeitos processuais, contemplados no n.º 3 do art. 359.º do C.P.Penal, da alteração substancial dos factos, seguindo-se, em conformidade, os ulteriores termos processuais, culminando na prolação de nova sentença.
Face ao ora determinado, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.

III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães, na procedência do recurso, julgar verificada a nulidade da sentença nos termos do art.379.º n.º1 al.b) do C.P.Penal e, em consequência, determinar a remessa dos autos à 1.ª instância com vista à respectiva sanação, no caso através da reabertura da audiência de julgamento com a comunicação aos sujeitos processuais da alteração substancial dos factos, seguindo-se, em conformidade, os ulteriores termos do processo, culminando com a prolação de nova sentença.
Sem custas.

Guimarães, 30/1/2012