Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1596/03-2
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: EXECUÇÃO
CÁLCULO
FIANÇA
LIMITES DA RESPONSABILIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/11/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – Se a liquidação da prestação remete para o saldo de uma conta corrente, tal liquidação depende de mero cálculo aritmético e o título que a consubstancia, conferidos os demais condicionalismos da lei, tem a virtualidade de título executivo – artº 46º al.c) C.P.Civ.
II – Se o negócio jurídico, no caso a fiança, é, à partida, tendo em conta a formulação dos termos contratuais, determinável em género, mas indeterminável em quantidade, então haverá lugar à intervenção do tribunal para efeitos de tal determinação, fazendo uso de juízos de equidade e com o auxílio do disposto pelas regras relativas á interpretação e integração dos negócios jurídicos (artºs 400º nº2 e 236º a 238º C.Civ.).
III – A intervenção do Tribunal visará primordialmente achar uma equivalência satisfatória de interesses, permitindo que a justiça contratual, se sobreponha, se for o caso, à liberdade contratual, a fim de evitar que o fiador, pelo facto de a respectiva prestação não possuir montante máximo, se exponha à ruína, colocando-se à mercê da multiplicação dos débitos consentidos entre o credor e o devedor afiançado.
Decisão Texto Integral: Acordão no Tribunal da Relação de Guimarães

Os Factos
Recurso de apelação interposto na acção com processo especial de Embargos de Executado nº ..., da 1ª Vara Mista da Comarca de Guimarães.
Embargantes – A.
Embargada – B.

Tese dos Embargantes
O documento junto aos autos como título executivo é um escrito particular que não determina o exacto montante das obrigações pecuniárias em dívida.
Assim, a acção executiva é inadmissível por falta de título, já que a liquidação da obrigação exige o incidente previsto nos artºs 806º e 807º C.P.Civ., para além de que o título executivo invocado teve de ser complementado por mais 64 documentos, que nenhum deles é assinado pelos Embargantes.
Por outro lado, a fiança invocada contra os Embargantes é nula por violação do princípio da tipicidade dos negócios unilaterais, já que inexistiu qualquer contrato de fiança entre os fiadores e os credores de tais prestações, antes tendo os ora Embargantes declarado tão só unilateralmente assumir a responsabilidade por pagamentos superiores a certa quantia.
Finalmente, a obrigação afiançada não é determinável, o que a torna nula, já que os Embargantes se obrigaram ao pagamento do valor do saldo da conta corrente relativa às compras a efectuar pela firma Carlos ..., S.A., à firma "B".
Tese da Embargada
A fiança não está sujeita à forma de um contrato, podendo ser um negócio unilateral.
Mesmo que assim não se entenda, a aceitação do credor pode ser tácita, não necessitando de se encontrar expressa no documento assinado pelos Executados.
A obrigação é determinável porque existe um critério para a fixar, isto é, os Executados responsabilizaram-se pelo valor da dívida derivada das relações comerciais da empresa citada, de quem são accionistas e administradores, que excedesse o valor de Esc.25.000.000$00 da conta corrente desses fornecimentos.
Tanto mais determinável quanto a Embargada juntou aos autos principais todas as facturas referentes a esses fornecimentos, pelo que um simples cálculo poderia determinar o valor da obrigação, o que a Embargada efectuou no requerimento inicial da execução.

Sentença
No saneador-sentença proferido, os embargos foram julgados procedentes, por via de o título executivo não certificar a existência de uma obrigação e ainda por via de a determinação da obrigação exequenda não depender de um simples cálculo aritmético.

Conclusões do Recurso de Apelação apresentado pela Embargada
1 - As facturas juntas aos autos, acompanhando o título executivo declaração de dívida assinada pelos Executados/Embargantes, comprovam a constituição da obrigação à qual estes se vincularam a prestar.
2 - Provam as referidas facturas a efectiva realização dos fornecimentos à empresa Carlos ..., condição imposta para a formação ou constituição da obrigação dos Executados claramente expressa e assumida por estes no documento em causa, nos termos dos art° 804° n°1 do C. P. C.
3 - Não foram as facturas alvo de qualquer impugnação por parte dos Executados, tendo estes aceite a sua existência e autenticidade, aceitaram a constituição da obrigação a que se haviam vinculado, nos termos do art° 813º al.e), tendo como consequencia o previsto no artº 490° n°s 1 e 2 do C. P. C..
4 - Pelo simples cálculo aritmético dos valores constantes das mesmas, se obtém o valor da dívida dos Embargantes/Recorridos para com a Embargada/Recorrente - cumprindo o estipulado no artº 805° do C. P. C..
5 - E mesmo que assim não se entenda, os Executados/Embargantes não deduziram qualquer Oposição à Liquidação efectuada pela Exequente/ Embargada no requerimento inicial da Execução, nos termos do art° 806º n°2 e 807º n°1 do C.P.C..
6 - Devendo, por isso, ser considerada fixada a obrigação, nos termos requeridos pela Exequente, conforme o previsto no art° 807° n° 1 do C.P.C.
7 - Concluindo deste modo a Recorrente
a) que a declaração (doc. 65) que acompanha a Execução tem valor como um documento (art° 362º do C.C.);
b) assinado pelos devedores (n°1 do art° 373° do C.C.);
c) que incorpora o reconhecimento de uma divida;
d) cujo valor se encontra perfeitamente determinado:
1 - tanto pelo valor das facturas apresentadas a constantes nos autos (art° 805° do C.P.C.),
2 - como pelo mecanismo juridico previsto nos artºs 806° n°2 e 807° nº1 do C. P. C..
e) preenchendo, por tudo isto, os requisitos da al. c) do art.° 46° do C. P. C.: sendo titulo executivo.

Os Embargantes não apresentaram contra-alegações.

Factos Apurados em 1ª Instância
A exequente apresentou como título que serve de base á sua pretensão exequenda uma declaração subscrita, em 23/1/2001, pelos Executados "A", através da qual os mesmos declararam assumir pessoal, solidariamente e com renúncia ao privilégio da excussão prévia, a responsabilidade pelo pagamento do valor que excede o montante de 25.000.000$00, no saldo da conta corrente relativa às compras efectuadas e a efectuar pela firma Carlos ..., à firma "B".
A exequente juntou à execução facturas, todas elas com datas posteriores a 23/1/01, de fornecimentos por ela alegadamente efectuados à Carlos ..., no valor total de € 454 368.

Fundamentos
As questões colocadas pelo presente recurso podem ser resumidas em duas questões, por interpretação do teor das conclusões formuladas pela apelante, em conjugação com a matéria apreciada no saneador sentença dos autos:
- a liquidação da obrigação dos autos exige o incidente previsto nos artºs 806º e 807º C.P.Civ. e, como tal, a acção executiva não é admissível por falta de título?
- a fiança prestada pelos Embargantes é nula, por indeterminabilidade do seu objecto?
Finalmente, apenas para o caso de os argumentos da Apelante procederem quanto a estas matérias, haveremos de nos debruçar sobre a questão de saber se a constituição de fiança implica acordo entre credor e devedor, isto é, a verdadeira existência de um contrato.
Vejamos então.

I
Nos termos do disposto no artº 46º al.c) C.P.Civ., para que um documento particular possa constituir título executivo, deverá tal documento formalizar a constituição de uma obrigação ou nele ser reconhecida a existência de uma obrigação já anteriormente constituída.
Tratando-se, todavia, de um documento que importe o reconhecimento ou a constituição de uma obrigação pecuniária, é essencial à executoriedade do título que tal obrigação seja já líquida, ou então que possa ser liquidável por simples cálculo aritmético, a partir dos seus elementos constituintes, aqui por força do princípio de que é pelo título que se determinam os fins e os limites da acção executiva (artº 45º nº1 C.P.Civ.).
No caso dos autos, os Embargantes responsabilizaram-se pelo pagamento de um valor que excedesse o montante de 25.000.000$00, no saldo da conta corrente relativa às compras efectuadas e a efectuar por uma firma, relativamente a outra firma.
Remetendo para o saldo de uma conta corrente, os Embargantes não se reportaram a uma obrigação de montante já líquido, isto é, já certo, mas sim para uma obrigação de montante ilíquido, incerto; ponto será então, para que nos encontremos diante de um título executivo, que a obrigação constituída possa ser fixada por meio de simples cálculo aritmético (artº 805º nº1 C.P.Civ.).
Ora, um saldo, por definição, consubstancia uma operação aritmética, e era, como foi de resto nos autos, liquidável por meio de operações aritméticas.
Questão diversa seria a de averiguar a fidedignidade do saldo, por comportar operações que não consubstanciariam compra e vendas efectivamente realizadas, ou não realizadas pelas quantidades ou preços constantes da conta corrente.
Nesse caso, incumbiria aos Embargantes defender-se invocando os meios que poderiam deduzir como defesa no processo de declaração (artº 815º C.P.Civ.), mas sem prejuízo da exequibilidade do título.
Concluímos que, neste particular, procede a impugnação da sentença.
II
No caso dos autos, se os Embargantes se responsabilizaram pelo pagamento de um valor que excedesse o montante de 25.000.000$00, no saldo da conta corrente relativa às compras efectuadas e a efectuar por uma firma, relativamente a outra firma, existirá indeterminabilidade de objecto da obrigação?
Que se trata de uma verdadeira “fiança” é o que decorre da definição legal desta – a garantia da satisfação de um direito de crédito, ficando o garante pessoalmente obrigado perante o credor (artº 627º nº1 C.Civ.).
Consoante o disposto no artº 280º nº1 C.Civ., aplicável às relações jurídicas em geral, é nulo o negócio cujo objecto seja indeterminável.
Ora, a doutrina é muito clara quanto ao requisito da determinabilidade do objecto da obrigação: consoante Meneses Cordeiro, ROA, 51º-562, o objecto do negócio pode ser indeterminado, não pode é ser indeterminável. Por outro lado, a lei admite a fiança por débitos futuros (artº 628º nº2 C.Civ.).
E assim, a prestação é indeterminada mas determinável quando não se saiba, num momento anterior, qual o seu teor mas, não obstante, exista um critério para proceder à sua determinação (caso das obrigações alternativas ou das obrigações genéricas); a prestação é indeterminada e indeterminável quando não exista qualquer critério para proceder à sua determinação (esta prestação é cominada de nulidade).
Ou seja, o que a lei não admite é que alguém possa declarar-se fiador de todas as dívidas, incluindo as futuras, sem critério nem limite.
Neste aspecto, teorizou Vaz Serra, Revista Decana, 107º/252ss., que “quando a prestação não for determinada no início da relação, as partes devem, ao menos, estabelecer com clareza o critério ou os critérios de determinação”. “Se assim não fosse, o fiador ficaria à mercê do credor ou, pior, do credor e de um terceiro (devedor principal)”.
Acrescenta: “Pode, assim, concluir-se que desde o início da relação deve ser determinável por obra das partes (e especialmente do obrigado) o objecto da obrigação de fiança, com base em critério ou critérios objectivos, pois o fiador não pode e não deve correr o risco de se expor à ruína por efeito da impudência ou da imprudência com que o credor consentiu na dívida principal e o devedor na multiplicação dos seus débitos, só porque lhes tinha sido garantido o pagamento”.
No caso dos autos, verifica-se que o objecto da prestação é suficientemente concretizado, logo determinável, quanto à respectiva qualidade: o saldo das compras e vendas a efectuar entre a Embargante ("B") e a sociedade Carlos ..., traduzido em conta corrente.
Não se trata de uma obrigação de objecto correntemente caracterizado como “omnibus”.
Mas é indeterminado quanto à quantidade: possui um limite mínimo (Esc. 25.000.000$00), mas não possui limite máximo.
E o pedido executivo, formulado pela Exequente/Embargada veio agora ascender ao valor total de € 454 368.
É também indeterminado quanto ao tempo de vinculação dos fiadores.
Mas aqui, vem a lei conceder ao fiador a faculdade de, em certos casos, pôr termo à fiança – desde que tenham decorrido cinco anos sobre a prestação de fiança, quando outro prazo não resulte da convenção – artº 654º C.Civ.
Por outro lado, é certo que toda a vinculação perpétua é inválida (cf. Ac.R.L. 1/10/92 Col.IV/163, e os abundantes elementos doutrinários aí mencionados).
A questão coloca-se, de facto, quanto ao limite quantitativo máximo da obrigação.
O aresto citado, da Relação de Lisboa, considerou que o montante máximo da fiança se enquadra dentro do princípio da liberdade contratual (artº 405º nº1 C.Civ.) e a lei admite que o fiador se possa libertar se houver agravamento da situação patrimonial do devedor mas só enquanto a obrigação se não constituir (artº 654º C.Civ.).
A questão, tal como colocada por Vaz Serra, incide sobre o equilíbrio comutativo da prestação, sobre a justiça contratual em geral.
Como elucidativamente escreveu, e aqui se repete, “o fiador não pode e não deve correr o risco de se expor à ruína por efeito da impudência ou da imprudência com que o credor consentiu na dívida principal e o devedor na multiplicação dos seus débitos”; o fiador não pode ficar à mercê do credor ou, pior, do credor e de um terceiro (devedor principal).
A questão é também particularmente elucidativa, no caso concreto, onde, no espaço de menos de dois anos, a obrigação afiançada atingiu o montante de € 454 368, montante que, abstractamente considerado, é, a todos os títulos, muito avultado.
O preceito do artº 400º C.Civ. prevê que a determinação da prestação possa ser confiada a uma ou outra das partes ou a terceiro, devendo ser feita segundo juízos de equidade, se outros critérios não tiverem sido estipulados. E se a determinação não puder ser feita, então sê-lo-à pelo Tribunal (cf. nº2 do preceito).
Meneses Cordeiro, loc. cit. pg. 563, comentou a propósito que só se põe o problema da determinação da prestação, nos termos do artº 400º C.Civ., se a obrigação não for nula, por força do artº 280º C.Civ. É que, explica, a determinação da prestação por alguma das partes ou por terceiro só pode ser pactuada “se houver um critério a que essas entidades devem obedecer”; todavia, admite critérios “mais ou menos vagos” para a determinação da prestação (exemplo claro: a prestação de serviços de advogado, quando ab initio conhecendo-se o objecto futuro, se desconhece a respectiva extensão).
A obrigação fiduciária dos autos não demonstra a existência de qualquer critério para a determinação do seu montante quantitativo máximo.
Mas tal não implica que as partes não se tenham querido vincular e não se possa, posteriormente, achar um equilíbrio aproximativo de prestações e uma equivalência satisfatória de interesses, permitindo que a justiça contratual, visada na determinabilidade da prestação concebida nas palavras de Vaz Serra (evitar que o fiador se coloque à mercê de um credor ou de um credor e de um terceiro), se sobreponha à liberdade contratual “tout court”.
Conforme Enneccerus-Lehmann, cit. por Rodrigues Bastos, op. cit., 21, mesmo a indeterminação temporária pode oferecer um motivo importante para a conclusão do contrato – como nos contratos de seguro e nos contratos aleatórios em geral.
De resto, os autos não demonstram que as partes se não queriam obrigar de todo, caso a obrigação fosse inteiramente determinável em quantidade, facto que dará, desde logo, lugar à redução do negócio (artº 292º C.Civ.), não podendo a parte afectada pela nulidade afectar o negócio por inteiro.
Pensamos assim que ao caso não obsta a aplicação do disposto no artº 400º nº2 C.Civ.: a determinação do montante máximo da prestação, que de todo não foi feita, ou não foi feita no tempo devido, deverá sê-lo pelo Tribunal, por recurso a juízos de equidade.
E se o contrato não fornece pistas para a concretização de tais juízos de equidade, então deverá o Tribunal indagar a vontade hipotética das partes, tendo em conta todo o circunstancialismo do negócio e os critérios interpretativos dos artºs 236º a 238º C.Civ.
Todavia, tal transforma a obrigação dos autos numa obrigação não liquidável por simples cálculo aritmético, retirando ao título dos autos a virtualidade de ser exequível (artºs 46º al.c) e 805º nº1 C.P.Civ.).

A fundamentação poderá resumir-se por esta forma:
I – Se a liquidação da prestação remete para o saldo de uma conta corrente, tal liquidação depende de mero cálculo aritmético e o título que a consubstancia, conferidos os demais condicionalismos da lei, tem a virtualidade de título executivo – artº 46º al.c) C.P.Civ.
II – Se o negócio jurídico, no caso a fiança, é, à partida, tendo em conta a formulação dos termos contratuais, determinável em género, mas indeterminável em quantidade, então haverá lugar à intervenção do tribunal para efeitos de tal determinação, fazendo uso de juízos de equidade e com o auxílio do disposto pelas regras relativas á interpretação e integração dos negócios jurídicos (artºs 400º nº2 e 236º a 238º C.Civ.).
III – A intervenção do Tribunal visará primordialmente achar uma equivalência satisfatória de interesses, permitindo que a justiça contratual, se sobreponha, se for o caso, à liberdade contratual, a fim de evitar que o fiador, pelo facto de a respectiva prestação não possuir montante máximo, se exponha à ruína, colocando-se à mercê da multiplicação dos débitos consentidos entre o credor e o devedor afiançado.

Com os poderes que lhe são conferidos pelo disposto no artº 202º nº1 da Constituição da República Portuguesa, decide-se neste Tribunal da Relação:
Julgar improcedente por não provado o recurso e, em consequência, confirmar a sentença impugnada.
Custas pela apelante.