Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
134/09.6TBVLN-A.G1
Relator: FERNANDO FERNANDES FREITAS
Descritores: SIGILO BANCÁRIO
INVENTÁRIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/15/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: QUEBRA DE SIGILO
Decisão: DISPENSADO O SIGILO
Sumário: I.- Deve ser dispensado o segredo bancário quando, em sede de inventário judicial, se pretendem elementos capazes de contribuir para a prova de que o saldo das contas bancárias pertence ao casal da de cujus e do cabeça-de-casal, sendo o regime de bens o da comunhão geral.
II.- Não obsta à referida dispensa do segredo bancário o facto de serem titulares das contas em causa o cônjuge sobrevivo e uma filha do casal, atenta a presunção de os dinheiros depositados pertencerem em partes iguais a cada um deles, e de tal presunção poder ser ilidida por quem tem interesse na ilisão – os herdeiros.
Decisão Texto Integral: - Acordam em Conferência do Tribunal da Relação de Guimarães –
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A) RELATÓRIO
I.- Pelo Tribunal Judicial da comarca de Valença correm termos uns autos de Inventário para partilha da herança de R., que foi casada com o cabeça-de-casal A..
O regime de bens matrimonial era o da comunhão geral de bens.
Apresentada a relação de bens, a herdeira I.apresentou a reclamação que consta de fls. 43, destes autos de apelação, acusando a falta de relacionação de “depósitos bancários” por presumir que a sua mãe fosse, à data em que faleceu, “titular de diversas contas de depósitos bancários, à ordem e a prazo, bem como de fundos de investimento e acções e obrigações”, fundamentando a sua presunção em frases que ela terá, alegadamente, proferido, do género «vou a Valença levantar dinheiro» e «tenho que ver quanto dinheiro tenho disponível nas contas».
Para comprovar a existência daquelas contas e valores, requereu que se oficiasse a várias agências bancárias para que informassem se à data do óbito da Inventariada – 28/03/2007 – existiam contas, à ordem ou a prazo, “fundos de investimento acções ou obrigações”, em nome daquela e/ou do cabeça-de-casal. A existirem tais contas “qual o montante que nessa data se encontrava e/ou se encontra depositado … especificando e juntando a respectiva documentação de suporte».
Deferido o que fora requerido, a “Caixa Geral de Depósitos, S.A.”, tendo obtido autorização prévia dos respectivos titulares, informou que na sua agência de Valênça existiam duas contas em nome do cabeça-de-casal A. e da filha deste e da Inventariada, (por isso que também herdeira) M., as quais, à data do decesso da Inventariada tinham o saldo de € 5.510,08 e € 22.691,35, tudo como consta de fls. 33 destes autos de apelação.
A reclamante I. requereu que fossem aditados à relação de bens os valores dos saldos das mencionadas contas bancárias, “sem prejuízo de, oportunamente, ser apreciada a existência de sonegação, pelo cabeça-de-casal, desses bens”.
E para a hipótese de o cabeça-de-casal persistir na exclusão da relacionação daqueles valores, pediu, além de duas outras diligências, fosse notificada a Caixa Geral de Depósitos, agência em Valença, para juntar “todos os documentos de suporte e/ou de controlo relativos a depósitos/transferências/levantamentos – crédito/débito … bem como os respectivos extractos, nos cinco anos imediatamente anteriores ao decesso da inventariada” (itálico nosso).
O cabeça-de-casal informou no processo que as contas bancárias em causa “não pertencem nem nunca pertenceram ao acervo hereditário”, “nem o dinheiro nelas expresso” pertenceu a si ou à Inventariada, alegando pertencer à interessada MF., a pedido da qual “aparece associado, como titular a tais contas”, tendo sido “por ordem e no interesse” desta que movimentou a débito e a crédito tais contas (cfr. fls. 60).
Notificada, aquela Agência Bancária, invocou o segredo bancário e não forneceu os elementos pretendidos.
O Meritíssimo Juiz proferiu então o douto despacho de fls. 36 e 37 decidindo que não era aplicável à situação descrita o segredo bancário, julgando ilegítima a recusa da Caixa Geral de Depósitos em prestar os elementos pretendidos, e renovando a notificação para que fossem prestados.
É desta decisão que “Caixa Geral de Depósitos, S.A.” traz o presente recurso, pretendendo que ela seja declarada nula e seja substituída por outra que decida quanto à eventual prestação, por si, das informações pretendidas, com quebra do dever de segredo, nos termos do artº. 135º., nº. 3, do C.P.Penal, caso se venha a considerar justificada essa quebra do segredo bancário.
Não foram apresentadas contra-alegações.
O presente recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata e com efeito suspensivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II.- A Apelante formula as seguintes conclusões:
a) - O Tribunal a quo no despacho recorrido julgou ilegítima a recusa da CGD e ordenou a disponibilização pela CGD de « ... todos os documentos de suporte e/ou de controlo relativos a transferências/levantamentos - crédito/débito nas contas melhor ids. a fls. 115 (as contas tituladas por A. - viúvo da de cujus e cabeça-de-casal nos presentes autos de inventário e MF.), bem como os respectivos extractos, nos cinco anos imediatamente anteriores ao decesso da inventariada».
b) - No âmbito do presente processo de inventário, e que corre termos na sequência do óbito de R., a pedido do Tribunal, a CGD:
- prestou informação sobre os saldos existentes nas contas de A. e MF, à data do óbito e actualmente, mediante expressa autorização destes,
- recusou a junção dos documentos de suporte relativos a todas as movimentações nas contas em causa, bem como os respectivos extractos, respeitantes aos cinco anos anteriores ao óbito, por se tratar de matéria abrangida pelo dever de sigilo e sobre a qual não foi prestada autorização por parte dos Clientes.
c) - No douto despacho ora em recurso, o Tribunal veio a insistir pela prestação de tais informações concluindo pela ilegitimidade da escusa da CGD alegando, para tal, e por um lado, que os herdeiros do depositante falecido não podem ser considerados como terceiros relativamente à conta do mesmo (razão pela qual não lhes pode ser oposto o segredo bancário) e, por outro lado, que tendo o cabeça-de-casal sido casado no regime da comunhão geral de bens com a falecida os saldos de tais contas sempre integrarão o património comum do casal (arts. 1732º e 1733º do Cód. Civil).
d) - Ora, ressalvado o devido respeito pelo Meritíssimo Juíz a quo não nos podemos conformar com tal entendimento.
e) - No que ao primeiro argumento concerne cumprirá, desde logo, esclarecer que tal factualidade - regime de bens do casamento - era desconhecida da CGD.
f) - De todo o modo, e independentemente de tal facto, ao abrigo da mesma disposição legal invocada no douto despacho ora em recurso - art. 1733º do Cód. Civil - poder-se-á concluir que, os saldos de tais contas poderão corresponder ao produto de quaisquer dos bens incomunicáveis aí enunciados e, como tal, podem nem sequer fazer parte do acervo da herança.
g) - Ainda que se venha a concluir que os saldos existentes em nome do marido da de cujus integra o património conjugal e que, como tal, deverão fazer parte da herança a partilhar sempre tal objectivo estará já alcançado pelo simples facto de já se ter informado nos autos o valor dos saldos de tais contas à data do óbito sendo, para este efeito, absolutamente inócua e desnecessária a informação solicitada.
h) - No que ao segundo argumento concerne, a Interveniente, ora Recorrente, obviamente nem sequer questiona o facto de que os herdeiros da depositante falecida não são considerados terceiros relativamente a essa(s) conta(s) para efeitos de sigilo bancário. i) - Contudo, tal princípio é inaplicável ao caso sub iudice porquanto não estamos perante contas (con)tituladas pela falecida (a qual não era sequer titular de qualquer conta nesta Instituição Bancária) mas antes perante contas contituladas pelo aqui cabeça-de-casal e MF.
j) - Assim, e não se tratando de contas tituladas pela inventariada todas as informações solicitadas, até à data, pelo Tribunal se encontravam abrangidas, à partida, pelo dever de sigilo.
k) - Só tendo a CGD prestado as informações acima enunciadas porquanto, quanto a elas, houve expressa autorização dos titulares de tais contas para tal.
l) - O que não sucedeu face às informações ora solicitadas - donde a legitimidade da recusa da CGD.
m) - Sendo que, as disposições do Cód. Civil invocadas pelo Meritíssimo Juíz a quo não constituem sequer uma derrogação do dever de segredo bancário (profissional) legalmente imposto e cuja violação é penalmente sancionada (art.º 195.º do Código Penal), pois, a ter-se outro entendimento, tal deixaria sem qualquer sentido a legítima recusa de prestação de informação, prevista no art.º 135.º, nº 1 do Código de Processo Penal e o respectivo regime de verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado, previstos nos nº.s 2 a 5 do mesmo art.º 135º.
n) - Do que decorre que o pedido de informação em causa, tem isso sim, de ser analisado à luz do disposto no art.º 135.º, n.º 1 do C.P.P..
o) - Prevendo igualmente o art.º 79.º, nº. 2, al. d) do RGICSF que os elementos sujeitos a segredo podem ser revelados nos termos da lei penal e de processo penal, e dispondo esta lei de uma previsão normativa especialmente aplicável a estes casos, constante dos arts. 182º. e 135º. do Código de Processo Penal, crê-se que deverão ser primacialmente estas as normas a aplicar.
p) - Ora a ponderação de interesses que poderá conduzir à prevalência do interesse público na administração da justiça relativamente aos interesses protegidos pelo segredo bancário, tem a sua sede própria no procedimento de quebra de sigilo bancário previsto no art.º 135º., nº. 3 do C.P.P.
q) - Ao ordenar a prestação dos elementos de informação em causa, o Tribunal a quo, violou o disposto no n.º 3 do art. 135.º, já que deveria ter suscitado junto do Tribunal da Relação do Porto o incidente de prestação de informação com quebra do dever de segredo.
r) - Na verdade, concordando com a interpretação daquela norma feita pelo STJ no seu Acórdão de 06/02/2003, relativo ao processo n.º 03P159, publicado in www.dgsi.pt, Sumário - n.º III, também a CGD defende que: "A decisão sobre o rompimento do segredo é da exclusiva competência de um tribunal superior ou do plenário do Supremo Tribunal de Justiça, se o incidente se tiver suscitado perante este tribunal."
s) - Ao usar da competência atribuída ao Tribunal da Relação pelo nº 3 do art. 135.º, para onde remetem tanto o nº. 4 do art. 519.º do CPC como a al. d) do n.º 2 do art. 79.º do D.L. 298/92, de 31 de Dezembro, e ao decidir como decidiu, o despacho recorrido está necessariamente ferido de nulidade (art.º 201.º do CPC) ou, pelo menos, infringe flagrantemente as regras de competência absoluta, mais propriamente, da competência em razão da hierarquia (arts. 101.º ss. do CPC), o que desde já aqui expressamente se invoca;
t) - resultando violadas aquelas normas - foi violado o dispostos no art. 519º n.º 3 al. c) e n.º 4 do CPC; arts. 78º. e 79º.. nº. 2 al. d) do D.L. 298/92, de 31 de Dezembro e art. 135º.. nº. 2 e 3 do CPP.
u) Ora, inexistindo decisão do Tribunal da Relação que determine no caso concreto a quebra do segredo bancário, não pode a CGD considerar-se deste desobrigada.
v) O presente recurso é admissível ao abrigo da al. a) do nº. 2 do art. 678º. do CPC, uma vez que está em causa o recurso de uma decisão que, à luz do que aqui se defende, violou as regras de competência em razão da hierarquia.
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A não haver questões de que deva conhecer-se oficiosamente, são as conclusões que definem e delimitam o objecto do recurso, como se extrai do disposto nos artº.s 684º., nº. 3; 685º.-A, nº.s 1 e 3, e 685º.-C, nº. 2, alínea b), todos do C.P.Civil, e vem sendo invariavelmente reafirmado pela jurisprudência.
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B) FUNDAMENTAÇÃO
Tendo em conta as peças processuais juntas aos autos, e com relevância para a decisão, vai considerar-se a realidade fáctica acima descrita em I.
III.- O thema decidenduum é, pois, no essencial, decidir se estão reunidas as condições para se exigir a quebra do segredo bancário, que o artº. 78º., do Dec.-Lei nº. 298/92, de 31 de Dezembro, impõe aos membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das instituições de crédito, aos empregados, mandatários, comitidos e outras pessoas que lhes prestem serviço, e cuja violação é punível nos termos do artº. 195º., do Cód. Penal, ex vi do artº. 84º., daquele Diploma Legal.
O âmbito do segredo bancário abrange informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou informações referentes às relações desta com os seus clientes.
O artº. 79º. prevê excepções ao dever de segredo: quando haja autorização do cliente, podem ser revelados factos ou elementos das relações dele com a instituição - nº. 1 -, e, para o que agora nos importa, quando exista uma disposição legal que expressamente limite o dever de segredo – alínea e) do nº. 2.
O Ac. do S.T.J. de 13/02/2008, fixou jurisprudência no sentido de, se a escusa da instituição bancária, de prestar as informações que lhe sejam solicitadas, no âmbito de um inquérito criminal, for legítima cabe ao tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente se tiver suscitado decidir sobre a quebra do segredo, nos termos do nº. 3 do artº. 135º., do C.P.Penal.
Fundando-se em jurisprudência do Tribunal Constitucional e na doutrina, refere o mesmo Acórdão que “O segredo bancário pretende salvaguardar uma dupla ordem de interesses. Por um lado, de ordem pública: o regular funcionamento da actividade bancária, baseada num clima generalizado de confiança, sendo o segredo um elemento decisivo para a criação desse clima de confiança, e indirectamente para o bom funcionamento da economia, já que o sistema de crédito, na dupla função de captação de aforro e financiamento do investimento, constitui, segundo o modelo económico adoptado, um pilar do desenvolvimento e do crescimento dos recursos.
Por outro lado, o segredo visa também a protecção dos interesses dos clientes da banca, para quem o segredo constitui a defesa da discrição da sua vida privada, tendo em conta a relevância que a utilização de contas bancárias assume na vida moderna, em termos de reflectir aproximadamente a “biografia” de cada sujeito, de forma que o direito ao sigilo bancário se pode ancorar no direito à reserva da intimidade da vida privada, previsto no art. 26º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa” (Acórdão Uniformizador de Jurisprudência proferido no Procº. 07P894, publicado no D.R., série I-A, nº. 63, de 31/03/2008).
Para José Maria Pires, também ali citado, o segredo bancário funda-se antes “na necessidade de proteger a actividade bancária de intromissões que prejudiquem a confiança das relações entre as instituições e os seus clientes”, e, por isso, constitui expressão de um “direito fundamental atípico”, que enquadra no art. 16º., nº. 1, da Constituição.
Sem embargo, como alerta ainda o mesmo Acórdão, “esse direito ao sigilo, embora com cobertura constitucional, não é um direito absoluto, até porque, pela sua referência à esfera patrimonial, não se inclui no círculo mais íntimo da vida privada das pessoas, embora com ele possa manter relação estreita.
Pode, pois, ter que ceder perante outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, cuja tutela imponha o acesso a informações cobertas pelo segredo bancário”.
Que não é um direito absoluto, de natureza indisponível, resulta ainda do facto de o titular da conta poder autorizar que sejam fornecidos os elementos a ela referentes.
Ora, como se dispõe no artº. 335º., do Cód. Civil, havendo colisão de direitos desiguais ou de espécie diferente prevalece o que deva considerar-se superior.
É, de resto, o que se extrai do nº. 3 do artº. 135º., do C.P.Penal, que manda aplicar o princípio da prevalência do interesse preponderante.
No âmbito cível a quebra do segredo bancário apenas encontra expressão evidente no artº. 861º.-A (penhora de depósitos bancários), do C.P.Civ..
Sem embargo, o artº. 519º., do mesmo Cód., consagra o dever de cooperação de todas as pessoas, sejam ou não parte na causa, de prestarem a sua colaboração para a descoberta da verdade.
E, reconhecendo a legitimidade da recusa em depôr se a obediência importar violação do sigilo profissional – cfr. alínea c) do nº. 3 – manda aplicar, “com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa” o artº. 135º., do C.P.Penal, “acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado” - cfr. o nº. 4.
Como se dá conta no Ac. do S.T.J. de 21/03/2000, “foi intenção do legislador … afastar a invocação de excessivos e desproporcionados sigilos profissionais” (in C. J., Acórdãos do STJ, Ano VIII, Tomo I-2000, pág. 131).
Como tem sido uniformemente decidido, atenta a forma como está regulado no Dec.-Lei nº. 298/92, havendo conflito entre o dever do sigilo bancário e o dever de cooperação para a realização da justiça, porque estes interesses são mais relevantes, há-de aquele ceder perante este (cfr., v. g. o Ac. da Rel. de Coimbra, de 06/04/2010, Procº. 120-C/2000.C1, relatado pelo Exmº. Des. Emídio Costa, em “www.dgsi.pt”).
Não oferece dúvidas que o segredo bancário não é oponível aos herdeiros de pessoa falecida, já que sendo eles chamados à titularidade das relações jurídicas patrimoniais desta – cfr. artº.s 2024º. e 2032º., ambos do Cód. Civil – passaram a dever ser considerados titulares da conta bancária.
O Ac. da Rel. de Lisboa de 09/11/1999 reconheceu a inoponibilidade do sigilo bancário aos herdeiros de uma das titulares de conta bancária, apesar de a outra titular, irmã da de cujus, se opor a que o Banco prestasse a informação pretendida por aqueles, porque “as contas em causa mantêm-se as mesmas de que era co-titular a finada … não tendo passado após o óbito desta e da sua sucessão a constituir novas contas, pelo que todas as informações a elas correspondentes, quer anteriores, quer posteriores ao seu falecimento, devem ser prestadas aos seus herdeiros” (cfr. C. J., Ano XXIV – 1999, Tomo V, pág. 79. Vai no mesmo sentido o Ac. da mesma Relação de 14/11/2000, in C. J., Ano XXV, Tomo V-2000, págs. 95 e 96).
Ainda no domínio do Dec.-Lei nº. 2/78, de 9 de Janeiro, também o S.T.J. no Ac. de 28/06/1994, reconheceu que os herdeiros “de um depositante não são terceiros em relação às contas do mesmo”, não lhes podendo ser oposto o segredo bancário (in B.M.J. nº. 438 (Julho de 1994), pág. 436).
Decidiu ainda a Relação de Lisboa, no Ac. de 5/03/2002, (ainda que louvando-se no artº. 519º.-A, do C.P.Civ.) que porque a ex-mulher “tem direito a conhecer os bens do casal, na sua globalidade, para serem partilhados, direito esse que o Estado lhe reconhece”, o direito ao sigilo bancário, de que é titular o ex-marido, deve ceder em favor do superior interesse que o Estado tem em administrar justiça (in C. J., ano XXVII, Tomo II – 2002, págs. 71 e 72).
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IV.- Na situação sub judicio uma das herdeiras veio reclamar da relação de bens por se terem omitido depósitos bancários de que, segundo a sua convicção, a sua mãe era titular.
Como se tem entendido, o dever de informar prevalece sobre o dever de guardar segredo “quando se pretenda averiguar da existência de bens da herança” e “quando esteja em causa a determinação de bens que compõem o acervo hereditário” – cfr., por todos, o Ac. da Rel. do Porto, de 07/07/2009, e jurisprudência aí citada (in www.dgsi.pt, proferido no Procº. 15/08.0TBMUR-A.P1, relatado pelo Exmº Des. Pinto dos Santos).
A Recorrente cumpriu com o dever de informar através da comunicação constante de fls. 33, dando conhecimento da existência de duas contas, das quais são titulares o marido da de cujus, e cabeça-de-casal, A., e a filha de ambos, e também herdeira, MF., e informando o saldo que existia à data da morte daquela – 28/03/2007.
Não podemos olvidar, porém, que se trata de duas contas conjuntas e, por isso, se regulam pelos princípios da solidariedade activa – nas relações externas os titulares da conta (qualquer deles), como credores solidários, têm o direito a receber do depositário – o Banco – a prestação a que ele está obrigado, nos termos do artº. 512º., nº. 1, do Cód. Civil, e nas relações internas presume-se que os valores depositados pertencem, em partes iguais, aos co-titulares da conta, nos termos do artº. 516º., do mesmo Código.
Como escrevem P. Lima e A. Varela, “nada resultando da relação jurídica existente entre os credores … sobre a medida da comparticipação de cada um no crédito … funciona a presunção estabelecida neste preceito”, dando em seguida o exemplo de um depósito bancário feito por duas pessoas “em regime de solidariedade activa”, presume-se, “enquanto não se fizer prova noutro sentido, que cada um dos depositantes é titular de metade da conta” (in “Código Civil Anotado”, vol. I, em anotação ao artigo 516º.).
Assim, e na situação sub judicio, considerado o regime de bens matrimonial da comunhão geral, haverá de presumir-se que faz parte da herança uma quarta parte dos depósitos (metade seria da co-titular MF., e a outra metade seria dividida em duas, constituindo uma delas a meação do cabeça-de-casal e a outra a meação da Inventariada).
Trata-se, porém, de uma presunção ilidível – cfr. artº. 350º., nº. 2, do Cód. Civil – pelo que se a propriedade da quantia depositada pertencer apenas a um dos titulares da conta, ele é admitido a fazer a prova do seu direito.
Mas também tem de entender-se que os herdeiros da de cujus hão-de ser admitidos a ilidir a presunção de pertencer à co-titular MF. a metade dos saldos das contas bancárias, provando que os dinheiros em causa pertenciam, inteiramente, ao casal e não (também ou exclusivamente) a esta co-titular, como o cabeça-de-casal veio informar - cfr. fls. 60.
É certo que, mesmo neste caso, a co-titular MF. também terá de ser admitida a provar que a de cujus a quis beneficiar, fazendo-lhe doação das quantias em causa, já que, estando-se perante uma doação manual (que é a doação verbal de coisas móveis – neste caso, dinheiro – acompanhadas da sua tradição manual – artº. 947º., n. 2, do Código Civil) presume-se dispensada da colação – cfr. artº. 2113º., nº. 3, do mesmo Código.
E, posto que se admita que esta presunção é iuris et de iure, o valor das doações manuais sempre deve ser levado ao cálculo da quota disponível, nos termos do nº. 1, do artº. 2114º., com o que (também) ficam sujeitas a redução por inoficiosidade.
Assim, sem embargo de se reconhecer que a tarefa da decisão seria bem mais facilitada se o Tribunal a quo tivesse levado a cabo algumas diligências, designadamente para se avaliar da absoluta necessidade dos elementos pretendidos, é inegável, pelas considerações acima expostas, que os documentos relativos aos depósitos e aos levantamentos feitos nas mencionadas contas podem revelar a origem dos dinheiros depositados e os fins para que foram utilizados, quiçá conjugadas as suas datas com outros eventos da vida do casal, e, nessa medida, se lhe pertence todo o dinheiro depositado.
A fazer-se a prova deste facto, ficaria, além do mais, ilidida a presunção de que a metade dos saldos bancários pertence à co-titular MF., ilisão em que, como é óbvio, têm interesse os demais herdeiros.
O que, afinal, nos reconduz à determinação dos bens que hão-de compor a herança.
Acautelando, pois, essa possibilidade, admite-se a relevância da informação fornecida pelos elementos pretendidos para a descoberta da verdade e para a realização da justiça, entendendo-se, consequentemente, dever ser de dispensar o dever de sigilo.
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V.- Decidindo-se, como se decidiu não se vislumbra qualquer utilidade na apreciação da questão da nulidade da decisão do Tribunal a quo, tanto mais que, atentos os efeitos suspensivos que foram atribuídos ao presente recurso, a Recorrente não teve que prestar as informações pretendidas.
Sem embargo, sempre diremos que, com a Recorrente, é nosso entender que, sendo legítima a recusa de prestar as informações solicitadas, por estarem a coberto do sigilo bancário e por não ter sido obtida a autorização dos titulares das contas, a competência para decidir sobre a quebra do segredo bancário cabe a este Tribunal da Relação, ao abrigo do disposto no nº. 3 do artº. 135º., do C.P.Penal, aplicável por força do disposto no nº. 4 do artº. 519º., do C.P.Civil.
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VI.- DECISÃO
Em face de quanto acima se expõe, acordam os Juízes desta Relação, ao abrigo do disposto nos artº.s 519º., nº. 4, do C.P.Civil, e 135º., nº. 3, do C.P.Penal, em dispensar a “Caixa Geral de Depósitos, S.A.” do cumprimento do dever de segredo bancário, determinando-lhe que forneça os elementos que oportunamente lhe foram solicitados pelo Tribunal Judicial da comarca de Valença.
Custas pela Recorrente.
Notifique e cumpra as demais d.n.
Fernando F. Freitas
Purificação Carvalho – Adjunta
Eduardo José Oliveira Azevedo – Adjunto