Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
133/14.6TBBCL-A.G1
Relator: ALCIDES RODRIGUES
Descritores: TÍTULO DE CRÉDITO
LIVRANÇA EM BRANCO
AVALISTA
PREENCHIMENTO ABUSIVO
INSOLVÊNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Porque a obrigação cambiária é uma obrigação literal e abstracta, que decorre do título que a incorpora, o credor que exige o respectivo pagamento não carece de invocar no requerimento executivo a sua causa (a relação subjacente ou fundamental), podendo limitar-se a apresentar o título que incorpora a obrigação, correspondendo esta obrigação cambiária à causa de pedir da acção executiva onde se exige o seu cumprimento.

II - Quando o avalista tenha tomado parte no pacto de preenchimento de livrança em branco, subscrevendo-o, devem ser qualificadas de imediatas as relações entre ele e o tomador ou beneficiário da livrança, por não haver entre o avalista e o beneficiário do título interposição de outras pessoas, tendo, neste caso, legitimidade para invocar o preenchimento abusivo da livrança.

III - Por consubstanciarem factos impeditivos do direito de exigir a obrigação cambiária que está incorporada no título, compete a quem invoca o preenchimento abusivo o ónus de alegar e provar os respectivos pressupostos: a existência e o conteúdo do pacto de preenchimento e a violação ou desrespeito pelos termos e condições aí definidos.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

Nos presentes autos de embargos de executado que A. C. deduziu contra o Banco X, S.A., aquele pugna pela extinção da execução.

Para o efeito, e em síntese, alegou que o requerimento executivo é inepto por falta de causa de pedir; a emissão da livrança que serve de base à execução é irregular por violar o contrato social da sociedade subscritora; o preenchimento da livrança que serve de base à execução é abusivo, nomeadamente no que concerne à data de vencimento e valor em dívida; o crédito exequendo encontra-se extinto pelo pagamento.
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Recebidos os embargos, foi notificado o embargado/exequente o qual apresentou contestação, na qual concluiu pela improcedência da oposição à execução e condenação do executado embargante como litigante de má-fé.
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Foi realizada audiência prévia, na qual, após fixação do valor da acção, foi proferido despacho saneador e, bem assim, definidos o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.
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Procedeu-se a julgamento e, findo o mesmo, a Mmª. Julgadora a quo proferiu sentença que terminou com o seguinte dispositivo:

«Por tudo quanto ficou exposto, julgo improcedente, por não provada, a oposição à execução por embargos de executado.
Mais, julgo improcedente o pedido de condenação do embargante executado como litigante de má-fé, absolvendo-o do mesmo.
Condeno o executado embargante no pagamento das custas processuais.
Registe e notifique.»
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Inconformado com aquela decisão dela recorre o embargante/executado (cfr. fls. 475 a 485), o qual formulou, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões (que se transcrevem (1)):

«I- Salvo o devido respeito, o conjunto livrança-requerimento executivo não conterá expressa e explicitamente a relação subjacente, não sendo suficiente a expressão “Remessas Documentárias de Exportação”, como se poderá concluir do douto despacho que contém a definição do “Objecto do Litigio” e “Temas de Prova”.
II- Todavia, mesmo neste tipo de acções, o título executivo constitui um pressuposto específico da execução e condiciona a exequibilidade extrínseca da pretensão, como decorrerá, designadamente e desde logo do disposto no artº 10º, nº 5, CPC, sendo que estes referidos requisitos deverão verificar-se no momento e no acto de instauração da execução, o que não será o caso.
III- Salvo o devido respeito, a decisão sobre a matéria de facto conterá pontos que terão sido incorrectamente julgados; Designadamente, no item 01 dos “factos provados” deveria ter sido dito (julgado, expressamente, que tal livrança foi entregue ao banco exequente, em branco, conforme decorre do depoimento de parte do executado e dos depoimentos das testemunhas S. I., Maria e E. L., ouvidos nos momentos referidos no ponto 10 das presentes alegações.
IV- Que a livrança em causa terá sido entregue ao banco exequente incompleta parece resultar, até, do próprio texto e contexto do item 11 dos “Factos provados”. E até da própria douta decisão recorrida. Só que, não tendo sido tal facto dado como provado, até poderá vir, amanhã, alegar-se que a sentença exorbitou, pelo que deverá acrescentar-se ao item 1 dos “factos provados” a seguinte expressão: “livrança essa entregue pela subscritora ao banco exequente incompleta”.
V- Salvo melhor opinião, porque tais factos (ainda que instrumentais) poderão ser relevantes para apreciar o instituto da interpelação deveria ter sido julgado que a “Y.”, antes da declaração de insolvência, havia encerrado portas em fins de Março de 2012, conforme o atestam o próprio recorrente e as testemunhas S. I. e Maria, nos passos transcritos supra.
VI- Não ocorreu, no caso, a devida interpelação do ora recorrente.
Esta, nos termos da jurisprudência transcrita supra e em que o recorrente se louva seria, em qualquer caso essencial. No caso sujeito, ainda mais porquanto, a sociedade subscritora, em Março de 2012, mesmo antes de declarada insolvente, encerrou as suas portas, sendo que, mais ou menos desde meados de Março, o recorrente não mais pode voltar à empresa.
VII- Sem prévia interpelação ---que a não terá havido--- o preenchimento da livrança será alusivo.
Aliás, o procedimento do banco exequente não terá primado pela boa fé (artº 334º CC).
VIII- Ou seja: ainda que se entenda que, no caso, foi demonstrado que o título executivo (e requerimento) é apto ---e não será--- a verdade é que o preenchimento da livrança, por falta de interpelação sempre seria abusivo.
IX- Ao julgar-se a acção apta e ao condenar-se o ora recorrente na condenação de pagamento, a douta decisão recorrida violou, entre outras as seguintes disposições legais:

- artº 10º, nº 5, 186º, nºs 1 e 2, al. a), e artº 607º, nº 3, CC;
- artº 334º, CC.
TERMOS EM QUE,
e sempre com o douto suprimento de Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, deve o presente recurso merecer inteiro provimento, substituindo-se a douta sentença recorrida por douto Acórdão que julgue a Oposição inteiramente procedente, como é de JUSTIÇA.».
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Contra-alegou a embargada/exequente, pugnando pela improcedência do recurso (cfr. fls. 496 a 509).
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O recurso foi admitido por despacho de 23 de novembro de 2017 como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cfr. fls. 513).
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir.

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal, por ordem lógica da sua apreciação, consistem em saber:

1.ª – Da falta de causa de pedir da ação executiva;
2.ª – Da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
3.ª – Do preenchimento abusivo da livrança dada à execução, por falta de interpelação prévia dos avalistas.
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III. Fundamentos

A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos:

1. O exequente embargado é portador da livrança n.º …5 junta aos autos principais a fls. 10 e cujo teor se dá por reproduzido.
2. Da livrança referida no ponto 1 e no lugar destinado à assinatura do subscritor resulta o carimbo com os dizeres “Malhas Y. – Empresa Industrial do Cávado, Lda.” seguida das assinaturas do embargante executado e do executado M. L..
3. No verso da mesma livrança e na sequência dos dizeres “Dou o meu aval à firma subscritora” resulta a assinatura do embargante executado.
4. Da referida livrança resulta que foi emitida em Barcelos no dia 12 de Junho de 2008.
5. Do rosto da mesma livrança resulta ainda a alusão a remessas documentárias de exportação.
6. A Malhas Y. - Empresa Industrial do Cávado, Lda., por sentença transitada em julgado no dia 17 de Julho de 2012, foi declarada insolvente – fls. 23.
7. Da certidão de teor da matrícula da sociedade Malhas Y. – Empresa Industrial do Cávado, Lda., emitida no dia 23 de Janeiro de 2008, resulta que a sociedade se obriga com a assinatura de dois sócios gerentes, sendo imprescindível que uma delas seja de M. M. ou A. V. – fls. 127 a 133 cujo teor se dá por reproduzido.
8. Sendo que, eram sócios gerentes da referida sociedade M. L. e o embargante executado.
9. Sucede que, resulta ainda da referida certidão o averbamento n.º1, inscrito pela Ap. 6/20070706, dando conta da cessação de funções de gerentes por M. M., A. V. e António, por destituição, bem como inscrições dando notícia da pendência de acção de anulação da deliberação social que o determinou e procedimento cautelar com vista à suspensão da mesma.
10. Em representação da Malhas Y. – Empresa Industrial do Cávado, Lda., M. L. e o embargante executado subscreveram as declarações que resultam de fls. 135 e 136, cujo teor se dá por reproduzido.
11. No dia 17 de Março de 2008, a Malhas Y. – Empresa Industrial do Cávado, Lda., na qualidade de subscritora e representada pelo embargante executado e por M. L., e o embargante executado e M. L., na qualidade de avalistas, subscreveram e enviaram ao embargado exequente o acordo de preenchimento que resulta de fls. 137 e cujo teor se dá por reproduzido, nos termos do qual autorizam o embargado executado, através dos seus funcionários, “… a preencher a livrança subscrita pelo signatário e avalizada por A. C. e M. L., a sua data de emissão, data de vencimento, local de pagamento, bem como o respectivo montante até ao limite máximo de 500.000,00 (quinhentos mil euros), proveniente das responsabilidades assumidas ou a assumir pela empresa Malhas Y. – Empresa Industrial do Cávado, Lda., perante o mesmo banco em Euros ou em divisas, emergentes de Descontos/Abonos de Remessas Documentárias de Exportação até ao indicado limite, incluindo os respectivos juros compensatórios e moratórios, comissões, impostos e demais encargos acrescidos ou que vierem a acrescer.”.
12. A Malhas Y. – Empresa Industrial do Cávado, Lda. solicitou ao embargado exequente o abono das remessas documentárias de exportação juntas aos autos como documentos 5 a 13 com a contestação e documento n.º2 de fls. 278 a 290 (cujo teor se dá por reproduzido), ao que o segundo acedeu, creditando na conta da referida sociedade o respectivo valor.
13. Em cada solicitação a Malhas Y. – Empresa Industrial do Cávado, Lda. deu as seguintes instruções “1. V.Exas. poderão, se assim o entenderem, debitar, no todo ou em parte e em qualquer conta que eu/nós tiver/mos nesse Banco e em qualquer moeda, pelo contravalor, as importâncias destinadas a comissões e outras despesas de cobrança, bem como a liquidação dos abonos/descontos, respectivos juros, comissões e outros encargos. 2. O banco fica expressamente mandatado, através de qualquer um dos seus funcionários, a preencher as livranças dadas de caução pelo montante das responsabilidades do Proponente, acrescida de juros e outros encargos, incluindo as despesas com a selagem do título, a apor-lhes as datas de emissão, as datas de vencimento e locais de pagamento que mais lhe convierem.”.
14. No dia 12 de Setembro de 2013 o embargado exequente remeteu ao embargante executado a carta que resulta de fls. 445, cujo teor se dá por reproduzido, e no dia 17 de Outubro de 2013 a carta que resulta de fls. 446, cujo teor se dá por reproduzido, exigindo o pagamento das remessas abonadas ainda não reembolsadas nos termos ajustados, no valor total de €242.051,65, e dando conta do preenchimento da livrança referida no ponto 1, com vencimento no dia 24 de Outubro de 2013.
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E deu como não provados os seguintes factos:

Não resulta demonstrada qualquer outra factualidade relevante para a boa apreciação do mérito da causa, nomeadamente que a) o valor referido no ponto 14 dos factos provados se encontra pago.
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IV. Do objecto do(s) recurso(s)

1. Delimitadas, sob o n.º II, as questões essenciais a decidir, é o momento de apreciar cada uma delas.
1.1.– Da falta de causa de pedir da ação executiva (por a relação subjacente não constar do título executivo e/ou do requerimento executivo).

Como questão prévia, defende o embargante/apelante que o conjunto livrança-requerimento executivo não contém expressa e explicitamente a relação subjacente, não sendo suficiente a expressão “Remessas Documentárias de Exportação”; ou seja, no dizer do apelante, pelo título dado à execução (livrança e/ou requerimento executivo) fica sem saber-se o porquê da dívida imputada e reclamada do ora recorrente, sendo o requerimento executivo deficiente, porquanto, «por mais geral e abstracta que seja a relação cartular, na execução, não se dispensará que, no acto de instauração desta, se alegue a razão pela qual o exequente detém o título», o que foi incumprido pelo Banco exequente.
Posição contrária tem o embargado/apelado, o qual entende que, tendo sido dada à execução um título de crédito (no caso uma livrança), não prescrito, a lei prescinde da alegação, no requerimento executivo, dos factos constitutivos da relação subjacente.
Foi esta a posição que foi acolhida na decisão recorrida, na qual, depois de se tomar em consideração que o “título que serve de base à execução” era “uma livrança, ou seja, um título de crédito em sentido estrito e à ordem, que enuncia simples e directamente uma promessa de pagamento (art.º75º LULL)”, se concluiu que, por força do disposto no art. 703º, n.º 1, al. c), do CPC, não estava o embargado/exequente onerado com “qualquer dever de exposição dos factos, para além da referência ao título executivo e à falta da satisfação do crédito nele incorporado, que cumpriu (art. 724º, n.º1, e), CPC)”.
Somos em crer que a razão está do lado do embargado (recorrido na apelação).

Vejamos.
Nos termos do n.º 5 do art. 10º do CPC, “[t]oda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva”.
Define-se título executivo como “(...) o instrumento que é considerado condição necessária e suficiente da acção executiva(2). Títulos executivos «são documentos de actos constitutivos ou certificativos de obrigações, a que a lei reconhece a eficácia de servirem de base ao processo executivo» (3).
Considera-se que o título executivo é condição necessária da execução na medida em que os actos executivos em que se desenvolve a acção apenas podem ser praticados na presença dele (nulla executio sine titulo). Sem o demandante se apresentar munido de um título executivo a execução não pode ser intentada ou, se intentada, prosseguir. Por outro lado, diz-se que o título executivo é condição suficiente da acção executiva, na medida em que na sua presença segue-se imediatamente a execução, sem ser necessário indagar previamente sobre a real existência do direito a que se refere. Presume-se a sua existência, cabendo ao executado excepcionar ou impugnar a sua formação, subsistência, validade ou eficácia, através da competente oposição à execução ou mediante embargos de executado
Mas o título, além de ser a condição necessária e suficiente da execução, define-lhe também os fins e os limites.
O objecto da execução tem de corresponder, por conse­guinte, ao objecto da situação jurídica acertada no título.
O título executivo é o documento «do qual consta a exequibilidade de uma pretensão» e, consequentemente, a possibilidade de realização coactiva da correspondente prestação através de uma acção executiva.
Ele cumpre uma função constitutiva, atribuindo a exequibilidade a uma pretensão e «possibilitando que a correspondente prestação seja realizada através de medidas coactivas impostas ao executado pelo tribunal».
A exequibilidade extrínseca da pretensão é conferida pela incorporação da pretensão num título executivo, ou seja, num documento que formaliza, por via legal, «a facul­dade da realização coactiva da prestação não cumprida» (4).
Entende-se actualmente, em termos dominantes, que a causa de pedir na acção executiva não é o título executivo, mas sim o facto jurídico constitutivo da obrigação exequenda, ainda que com reflexo no título. O título incorpora-a, demonstra-a, mas não coincide com a obrigação exequenda (5).
Por sua vez, o art. 703º, n.º 1 do CPC, enuncia as várias espécies de títulos executivos admitidos na lei, que podem servir de base a uma execução.
Títulos executivos são tão só e apenas os indicados na lei – trata-se de enumeração taxativa, sujeita à regra da tipicidade, como se constata da letra do preceito em análise “À execução apenas podem servir de base (...)”. Daí não serem válidas as convenções negociais pelas quais as partes conferem força executiva a outros documentos (6).
Entre eles, a al. c), do n.º 1, daquele art. 703º, enuncia os «títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo».
Incluem-se nesta previsão, entre outros, as letras, as livranças e os cheques, cujo regime jurídico se encontra regulado, respetivamente, na Lei Uniforme das Letras e Livranças (LULL) e na Lei Uniforme dos Cheques.
No que ao caso releva, a livrança é um título de crédito à ordem cujo conteúdo envolve a expressão livrança, a promessa pura e simples, feita no título, de pagar uma determinada quantia pecuniária, a data e o lugar do pagamento, o nome da pessoa a quem ou à ordem de quem deve ser paga e a assinatura de quem a passa (subscritor) - art. 75º da LULL.
Diversamente do que sucede com a letra e com o cheque, a livrança “não enuncia uma ordem de pagamento de uma pessoa a outra e a favor de uma terceira, mas simples e diretamente uma promessa de pagamento(7).

Como se decidiu no Ac. do STJ de 15-05-2003 (relator Salvador da Costa), www.dgsi.pt., no «quadro da conveniência da fácil circulação dos títulos de crédito, as relações jurídicas cambiárias decorrentes da subscrição de livranças assumem características que a distinguem da generalidade dos negócios jurídicos.
Nesse quadro de diferença, ressalta do regime das livranças, no confronto entre as relações jurídicas cambiárias e as relações jurídicas subjacentes, além do mais, os princípios da incorporação e da abstracção.
O princípio da incorporação traduz-se na unidade entre a relação jurídica cambiária e a relação jurídica subjacente, e o princípio da abstracção significa que a primeira vale independentemente da causa que lhe deu origem (artigos 1º, nº 2, 14, 16º, 17º, 20º, 21º, 38º, 39º, 1ª e 3ª parte, 40º, 3ª parte, 50º, 51º e 77º da LULL)».
Conforme sobressai do citado aresto, à luz dos princípios da abstracção e da incorporação, uma livrança, enquanto título de crédito, de natureza meramente formal, pode ser dada à execução, por valer como suficiente título executivo, dispensando a necessidade de o exequente invocar a relação jurídica subjacente à sua emissão. Nesse caso, haverá tão só de verificar-se os requisitos de validade do título e de regularidade de porte, como condição da sua exequibilidade. Alheada disso mesmo estará a relação jurídica causal, da qual o título cambiário se abstrai (8).

Portanto, a exequente só teria que invocar a relação subjacente se, porventura, estivessem em causa razões de prescrição do título cambiário, sendo nesse caso irrelevantes os requisitos formais de validade da livrança, enquanto título cambiário, uma vez que a mesma passaria a constituir mero quirógrafo duma obrigação não cambiária.
Só nesse caso, não podendo o título cambiário valer como título executivo, e não sendo feita referência no mesmo à relação subjacente, é que a exequente teria que mencionar no requerimento executivo a obrigação subjacente (9).
Conforme refere Lebre de Freitas (10), uma vez que a execução tem sempre por base um título executivo e este deve acompanhar a petição inicial, bastará, quanto à causa de pedir, remeter para o título, a menos que (para além de outras situações ora sem interesse), tratando-se de obrigação causal, o título não lhe faça referência concreta.
Segundo o art. 724º, n.º 1, al. e) do CPC, no requerimento executivo, dirigido ao tribunal de execução, o exequente deve expor “sucintamente os factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo (…)”.
O citado normativo traduz a afirmação de que, no âmbito da ação executiva, nem sempre a causa de pedir se consubstancia no título executivo.
Como se disse, tratando-se de título que valha como título de crédito, verificando-se a unidade entre a relação jurídica cambiária e a relação jurídica subjacente (princípio da incorporação) e valendo a relação cambiária independentemente da causa que lhe deu origem (princípio da abstração), atento ainda o regime conjugado decorrente dos arts. 703.º, n.º 1, al. c) e 724.º, n.º 1, al. e), do CPC, cabe concluir que uma livrança, enquanto título de crédito, pode ser dada à execução de per si, sem a alegação da relação jurídica subjacente ou fundamental, da qual o título cambiário se abstrai (11), correspondendo a obrigação cambiária à causa de pedir da acção/execução onde se exige o seu cumprimento (12).
Refira-se que o Acórdão do STJ citado pelo apelante [de 5/07/2007, relator Fonseca Ramos, proferido no processo n.º. 07A1999], reporta-se a uma situação diferente daquela que está em causa nos autos; nesse processo estava em causa uma letra de câmbio que, por força da prescrição da obrigação cambiária, apenas valia como quirógrafo da obrigação subjacente, pelo que não estava o exequente dispensado de, no requerimento executivo, invocar, expressamente, a relação subjacente que esteve na base da respetiva emissão do título. Diversamente do que acontecia nessa situação, a obrigação exigida, no caso sub judice, não é a obrigação subjacente, mas sim a obrigação cambiária ou cartular, que está incorporada na livrança, obrigação essa que não prescreveu e que se mantém enquanto tal.
Por conseguinte, no caso em apreço, consistindo o título executivo na livrança n.º …5, enquanto título de crédito não prescrito, e intervindo o recorrente na referida livrança na posição de avalista co-obrigado cambiário, é de concluir que a exequente estava dispensada de alegar, no requerimento executivo, os factos constitutivos da relação subjacente, pelo que improcede a questão em análise.
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1.2.- Da impugnação da matéria de facto.

Em sede de recurso, o apelante impugna a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal de 1.ª instância.
Para que o conhecimento da matéria de facto se consuma, deve previamente o recorrente, que impugne a decisão relativa à matéria de facto, cumprir o ónus de impugnação a seu cargo, previsto no artigo 640º do CPC, o qual dispõe que:

1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.».
Aplicando tais critérios ao caso, constata-se que o recorrente indica quais os factos que pretende que sejam decididos de modo diverso, bem como a redação propugnada, como ainda o(s) meio(s) probatório(s) que na sua ótica o impõe(m), incluindo, no que se refere à prova gravada em que faz assentar a sua discordância, a indicação dos elementos que permitem a sua identificação e localização, pelo que podemos concluir que cumpriu suficientemente o ónus estabelecido no citado artigo 640.º.
Assim, no caso sub júdice, o presente Tribunal pode proceder à reapreciação da matéria de facto impugnada, uma vez que, tendo sido gravada a prova produzida em audiência, dispõe dos elementos de prova que serviram de base à decisão sobre o(s) facto(s) em causa.
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1.3. Sob a epígrafe “Modificabilidade da decisão de facto”, preceitua o artigo 662.º, n.º 1 do CPC, que «a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».

Os recursos da matéria de facto podem envolver objetivos diversificados:

- Alteração da decisão da matéria de facto, considerando provados factos que o tribunal a quo considerou não provados, e vice-versa, a partir da reapreciação dos meios de prova ou quando os elementos constantes do processo impuserem decisão diversa (no caso de ter sido apresentado documento autêntico, com força probatória plena, para prova de determinado facto ou confissão relevante) ou em resultado da apreciação de documento novo superveniente (art. 662º, n.º 1 do CPC);
- Apreciação de patologias que a decisão da matéria de facto enferma, que, não correspondendo verdadeiramente a erros de apreciação ou de julgamento, se traduzam em segmentos total ou parcialmente deficientes, obscuros ou contraditórios (art. 662º, n.º 2, al. c) do CPC);
- Ampliação da matéria de facto, por ter sido omitida dos temas da prova matéria de facto alegada pelas partes que se revele essencial para a resolução do litígio (art. 662º, n.º 2, al c) do CPC;

O âmbito da apreciação do Tribunal da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, estabelece-se de acordo com os seguintes parâmetros:

a) - só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo recorrente;
b) - sobre essa matéria de facto impugnada, tem que realizar um novo julgamento;
c) - e nesse novo julgamento forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não apenas os indicados pelas partes).
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1.4. Por referência às suas conclusões [IV, V e VI], extrai-se que o recorrente pretende que sejam dados como assentes os seguintes factos:

- “livrança essa entregue pela subscritora ao banco exequente incompleta”.
- A “Y.”, antes da declaração de insolvência, havia encerrado portas em fins de Março de 2012.
- Mais ou menos desde meados de Março, o recorrente não mais pode voltar à empresa.
Antes propriamente de nos debruçarmos sobre a impugnação da matéria de facto e com vista a delimitar o seu âmbito, importa ter presente que estes dois últimos factos, ao contrário do primeiro, não foram alegados pelas partes nos respetivos articulados.

Prescreve o art. 5º, n.º 1 do CPC que compete às partes «alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas».
Todavia, o n.º 2 do citado normativo acrescenta que, além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz os «factos instrumentais que resultem da instrução da causa» [al. a)] e os «factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar» [al. b)].
Resulta desta norma que o tribunal deve considerar na sentença factos não alegados pelas partes, não se tratando, porém, de uma possibilidade sem limitações.
Desde logo, é necessário que estejamos perante factos que resultem da instrução da causa.
Segundo o ensinamento de Carlos Lopes do Rego (13), factos essenciais são os que concretizando, especificando e densificando os elementos da previsão normativa em que se funda a pretensão do autor ou do reconvinte, ou a exceção deduzida pelo réu como fundamento da sua defesa, se revelam imprescindíveis para a procedência da ação, da reconvenção ou da exceção; factos instrumentais são os que se destinam a realizar prova indiciária dos factos essenciais, já que através deles se poderá chegar, mediante presunção judicial, à demonstração dos factos essenciais correspondentes – assumindo, pois, em exclusivo uma função probatória e não uma função de preenchimento e substanciação jurídico-material das pretensões e da defesa.

No caso em apreço, admitindo-se que aqueles factos não alegados possam, em termos abstratos, habilitar o Tribunal com uma visão mais abrangente e alargada da realidade vivenciada, e porque os mesmos foram aflorados no processo através dos meios de prova produzidos em audiência de julgamento, julgamos ser lícito indagar da sua verificação.

No que concerne ao primeiro ponto da impugnação da matéria de facto, dúvidas não subsistem quanto à sua procedência, já que o mesmo resulta consensualmente admitido por ambas as partes (quer nos articulados, quer no recurso), foi comprovado pelas testemunhas S. I., Maria (“as livranças iam sempre em branco”), E. L. (“a livrança é preenchida posteriormente … a livrança estava em branco … só tinha a assinatura da empresa na frente e teria a do senhor A. C. e do Senhor M. L.”) e pelo depoente de parte prestado pelo executado-recorrente (questionado pela Mmª juiz se reconhecia “que esta livrança, quando assinada, estava em branco, por preencher?” respondeu: “Estava em branco”).

De resto, da 2ª parte do item 11 dos factos provados infere-se já essa realidade fáctica e a mesma mostra-se reconhecida, de um modo expresso, na fundamentação de direito da sentença recorrida, tendo a Mmª juiz explicitado:

No caso dos autos, a livrança foi assinada em branco, pela subscritora e executado embargante, avalista, já que quando assim procederam, a mesma encontrava-se incompleta, nomeadamente quanto à data do vencimento e valor. Trata-se, aliás, de uma situação comum: avalizado e avalista subscrevem ambos em branco o título, que o primeiro entrega de seguida ao terceiro, o qual aquando do preenchimento surgirá como beneficiário”.
Não subsistindo dúvidas quanto à demonstração dessa facticidade, resta concluir pela procedência desse ponto da impugnação da matéria de facto, pelo que o item 1 dos factos provados passará a valer com a seguinte redação:

1. O exequente embargado é portador da livrança n.º …5 junta aos autos principais a fls. 10 e cujo teor se dá por reproduzido, livrança essa que lhe foi entregue pela subscritora incompleta.

Quanto ao mais:

Resulta do depoimento da testemunha S. I., técnica oficial de contas que laborou por conta da Y. durante 14 anos, desde 1998 a finais de março de 2012, que esta empresa encerrou em finais de março de 2012 (a empresa fechou portas em “finais de Março de 2012”, “Eu saí no dia 26 de Março de 2012. Fiquei mesmo até ao fim”, “… a empresa fechou e os trabalhadores vieram-se embora, nós, pronto, estivemos lá no mês de Março”), o que (nos) habilita a dar como provado o primeiro dos factos instrumentais supra delineados, nos termos seguintes:

- A “Y.”, antes da declaração de insolvência, havia encerrado portas em fins de março de 2012.
Relativamente ao outro facto instrumental, por referência aos meios probatórios em que o apelante se suporta para o dar como demonstrado, entendemos, salvo melhor opinião, que o mesmo não resulta provado.
Desde logo, porque o depoimento da testemunha S. I. – que referiu que, quando deixou a empresa, em março de 2012, o recorrente já lá não estava e que “já não ia à empresa, talvez há duas ou três semanas antes” – é manifestamente insuficiente, por si só, para nos habilitar a dar como demonstrada a referida facticidade nos termos propugnados pelo recorrente. Até porque, por referência à sua razão de ciência, não é possível asseverar que, posteriormente ao fecho de portas, o recorrente não se tenha deslocado às instalações da Y., sendo que desde que deixou a empresa (finais de março) até agosto de 2012 (data da declaração de insolvência da Y.) a testemunha declarou nada mais saber sobre o que nela se passou.

Por outro lado, o depoimento de parte do executado-recorrente não reveste, nessa parte, cariz confessório (por não se tratar de um facto que lhe seja desfavorável – art. 352º do Cód. Civil) e mesmo que perpetivado como equivalendo a declarações de parte, sujeitas à livre apreciação da prova (art. 466º, n.º 3 do CPC), não se mostra acompanhado por outro(s) meio(s) probatório(s), sejam eles documentais ou testemunhais, que inelutavelmente o corrobore ou suporte, não sendo de olvidar o natural interesse que aquele tem no desfecho dos presentes embargos deduzidos.
Serve isto para dizer que o último dos pontos de factos impugnados deve ter-se como improcedente.
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1.5. Face às alterações introduzidas na decisão relativa à matéria de facto, é a seguinte a factualidade (provada) a atender para efeito da decisão a proferir:

- Factos provados.

1. O exequente embargado é portador da livrança n.º ...5 junta aos autos principais a fls. 10 e cujo teor se dá por reproduzido, livrança essa que lhe foi entregue pela subscritora incompleta.
2. Da livrança referida no ponto 1 e no lugar destinado à assinatura do subscritor resulta o carimbo com os dizeres “Malhas Y. – Empresa Industrial do Cávado, Lda.” seguida das assinaturas do embargante executado e do executado M. L..
3. No verso da mesma livrança e na sequência dos dizeres “Dou o meu aval à firma subscritora” resulta a assinatura do embargante executado.
4. Da referida livrança resulta que foi emitida em Barcelos no dia 12 de Junho de 2008.
5. Do rosto da mesma livrança resulta ainda a alusão a remessas documentárias de exportação.
6. A Malhas Y. - Empresa Industrial do Cávado, Lda., por sentença transitada em julgado no dia 17 de Julho de 2012, foi declarada insolvente – fls. 23.
7. Da certidão de teor da matrícula da sociedade Malhas Y. – Empresa Industrial do Cávado, Lda., emitida no dia 23 de Janeiro de 2008, resulta que a sociedade se obriga com a assinatura de dois sócios gerentes, sendo imprescindível que uma delas seja de M. M. ou A. V. – fls. 127 a 133 cujo teor se dá por reproduzido.
8. Sendo que, eram sócios gerentes da referida sociedade M. L. e o embargante executado.
9. Sucede que, resulta ainda da referida certidão o averbamento n.º1, inscrito pela Ap. 6/20070706, dando conta da cessação de funções de gerentes por M. M., A. V. e António, por destituição, bem como inscrições dando notícia da pendência de acção de anulação da deliberação social que o determinou e procedimento cautelar com vista à suspensão da mesma.
10. Em representação da Malhas Y. – Empresa Industrial do Cávado, Lda., M. L. e o embargante executado subscreveram as declarações que resultam de fls. 135 e 136, cujo teor se dá por reproduzido.
11. No dia 17 de Março de 2008, a Malhas Y. – Empresa Industrial do Cávado, Lda., na qualidade de subscritora e representada pelo embargante executado e por M. L., e o embargante executado e M. L., na qualidade de avalistas, subscreveram e enviaram ao embargado exequente o acordo de preenchimento que resulta de fls. 137 e cujo teor se dá por reproduzido, nos termos do qual autorizam o embargado executado, através dos seus funcionários, “… a preencher a livrança subscrita pelo signatário e avalizada por A. C. e M. L., a sua data de emissão, data de vencimento, local de pagamento, bem como o respectivo montante até ao limite máximo de 500.000,00 (quinhentos mil euros), proveniente das responsabilidades assumidas ou a assumir pela empresa Malhas Y. – Empresa Industrial do Cávado, Lda., perante o mesmo banco em Euros ou em divisas, emergentes de Descontos/Abonos de Remessas Documentárias de Exportação até ao indicado limite, incluindo os respectivos juros compensatórios e moratórios, comissões, impostos e demais encargos acrescidos ou que vierem a acrescer.”.
12. A Malhas Y. – Empresa Industrial do Cávado, Lda. solicitou ao embargado exequente o abono das remessas documentárias de exportação juntas aos autos como documentos 5 a 13 com a contestação e documento n.º2 de fls. 278 a 290 (cujo teor se dá por reproduzido), ao que o segundo acedeu, creditando na conta da referida sociedade o respectivo valor.
13. Em cada solicitação a Malhas Y. – Empresa Industrial do Cávado, Lda. deu as seguintes instruções “1. V.Exas. poderão, se assim o entenderem, debitar, no todo ou em parte e em qualquer conta que eu/nós tiver/mos nesse Banco e em qualquer moeda, pelo contravalor, as importâncias destinadas a comissões e outras despesas de cobrança, bem como a liquidação dos abonos/descontos, respectivos juros, comissões e outros encargos. 2. O banco fica expressamente mandatado, através de qualquer um dos seus funcionários, a preencher as livranças dadas de caução pelo montante das responsabilidades do Proponente, acrescida de juros e outros encargos, incluindo as despesas com a selagem do título, a apor-lhes as datas de emissão, as datas de vencimento e locais de pagamento que mais lhe convierem.”.
14. No dia 12 de Setembro de 2013 o embargado exequente remeteu ao embargante executado a carta que resulta de fls. 445, cujo teor se dá por reproduzido, e no dia 17 de Outubro de 2013 a carta que resulta de fls. 446, cujo teor se dá por reproduzido, exigindo o pagamento das remessas abonadas ainda não reembolsadas nos termos ajustados, no valor total de €242.051,65, e dando conta do preenchimento da livrança referida no ponto 1, com vencimento no dia 24 de Outubro de 2013.
15. A “Y.”, antes da declaração de insolvência, havia encerrado portas em fins de março de 2012.
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2. – Do preenchimento abusivo da livrança dada à execução, por falta de interpelação prévia dos avalistas.
O aval, designadamente quando prestado ao subscritor de uma livrança, constitui um negócio cambiário cujo regime jurídico emerge da LULL (arts. 30.º a 32.º e 46.º “ex vi” do art. 78.º).
Segundo o artigo 32º da LULL, o dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele “afiançada”, o que significa que a responsabilidade que para o avalista emerge do aval se determina pela do avalizado.
Não é por isso necessário protesto por falta de pagamento para responsabilizar o avalista do aceitante ou subscritor da livrança, dado que o mesmo protesto já é dispensável para responsabilizar o próprio aceitante ou subscritor.

Assim, perante uma letra ou livrança completa o portador do título não está obrigado a comunicar ao aceitante ou subscritor e respectivo avalista que vai apresentar a letra ou livrança a pagamento.
Contudo, no caso, estamos perante a denominada «livrança em branco», expressamente admitida pelo art. 10º da LULL, aplicável às livranças por força do art. 77º da mesma lei, que é aquela a que falta algum ou alguns dos requisitos essenciais indicados no art. 75º da LULL, mas que incorpora, pelo menos, uma assinatura que tenha sido feita com intenção de contrair uma obrigação cambiária (14). De facto, a livrança, tal como a letra, pode ser passada incompleta, tendo ficado em branco algumas das estipulações cambiárias que determinam o conteúdo da obrigação cartular.
Está em causa, “normalmente, uma relação fundamental que comporta um direito de crédito ainda não inteiramente definido (porque falta determinar o respectivo montante, ou vencimento), ou no seio da qual se prevê como apenas eventual a constituição de um direito de crédito. Aparece, sobretudo, no âmbito das relações duradouras com prestações pecuniárias como expediente para fazer face ao espectro do incumprimento. E apesar de alguma doutrina acentuar o carácter ilíquido da dívida como determinante da utilização da letra em branco, convém colocar no mesmo plano o seu carácter futuro e incerto; trata-se, em suma, da garantia de responsabilidades futuras e ilíquidas(15).
É o que acontece com frequência nos casos das “livranças-caução” emitidas por uma sociedade a favor de um banco, em que a livrança é emitida sem que seja determinado o montante da obrigação, a data da emissão, a época de pagamento ou o lugar de pagamento. No fundo, trata-se de uma forma de tutelar um crédito concedido ou a conceder pelo banco, através de diversos negócios a celebrar entre as partes, ao longo do tempo, sendo que a obrigação será avalizada pelos gerentes ou administradores da sociedade, ficando o banco desta forma com mais do que um património (o da sociedade) que poderá executar para a satisfação do seu crédito. A ele se acrescentam o património do(s) gerente(s) ou administrador(es) avalista(s). Nestas situações a livrança deve ser acompanhada de um pacto de preenchimento do título acordado entre as partes (16).
O contrato de preenchimento, na definição dada pelo Ac. do STJ de 3/05/2005 (relator Azevedo Ramos), in www.dgsi.pt., «é o acto pelo qual as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, designadamente, a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo do vencimento, a sede de pagamento, a estipulação do juros».
O preenchimento posterior da livrança em branco, condição imprescindível para que possam verificar-se os efeitos normalmente resultantes das livranças, deve ser feito de acordo com o convencionado.
Por outro lado, tendo o avalista tomado parte no pacto de preenchimento de livrança em branco, subscrevendo-o, devem ser qualificadas de imediatas as relações entre ele e o tomador ou beneficiário da livrança, por não haver entre o avalista e o beneficiário do título interposição de outras pessoas (17).
Assim, e não tendo sido transmitida a terceiro, o avalista tem, neste caso, legitimidade para invocar o preenchimento abusivo da livrança em causa, bem como outros meios de defesa.
Incumbe-lhe, porém, a ele (executado/embargante) provar a existência do pacto de preenchimento e do seu desrespeito por parte do exequente/embargado (18), sendo que o meio próprio para tal efeito é precisamente a oposição à execução mediante embargos (19), onde podem ser alegados quaisquer factos que possam ser invocados como defesa no processo de declaração (cfr. arts. 728º, n.º 1 e 731º do CPC).
Em sede de apelação, aduz o recorrente que, no caso, não ocorreu a sua devida interpelação, pelo que sem esta o preenchimento da livrança será abusivo.
Acontece porém que - como foi salientado nas contra-alegações – esta “nova tese” “constitui questão sobre a qual o Tribunal a quo não se pronunciou nem tinha obrigação de se pronunciar, simplesmente porque está para além da causa de pedir e do pedido constantes na petição inicial (embargos de executado)”, pois que “em parte alguma dos embargos de executado o Recorrente” alegou “a falta de interpelação por parte do Banco Recorrido” e, “nessa medida, tal questão não foi contemplada nem nos temas da prova fixados nem apreciada na decisão final”.

Com efeito, analisando o requerimento de embargos de executado, em parte alguma dele resulta invocada – expressa ou sequer de um modo implícito – a falta de interpelação prévia dos avalistas por parte do Banco Recorrido, sendo que, no que concerne à alegada violação do pacto de preenchimento, limitou-se o embargante a alegar que, «no caso sujeito poderá configurar-se uma situação flagrante de abuso de direito. O exequente escreveu no título, unilateralmente, o que lhe aprouve. E utilizou-a a seu bel prazer” (art. 45º daquela peça processual).
Como é sabido, os recursos – ordinários – visam permitir que um tribunal hierarquicamente superior proceda à reponderação da decisão recorrida, o que tem direta repercussão na delimitação das questões que lhe podem ser dirigidas.
O ponto de partida do recurso é sempre uma decisão que recaiu sobre determinadas questão, visando-se com ele apreciar da manutenção, alteração ou revogação daquela
Sendo um meio de impugnação de uma decisão judicial, o recurso apenas pode incidir, em regra, sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas pelo tribunal recorrido, não podendo o tribunal ad quem confrontar-se com questões novas (ou seja, sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida e sobre pedidos que nela não foram formulados), salvo quando estas sejam de conhecimento oficioso (como, por exemplo, o abuso do direito ou os pressupostos processuais, gerais ou especiais, oficiosamente cognoscíveis) e o processo contenha os elementos imprescindíveis. Tal regra justifica-se quer em atenção ao princípio da preclusão, quer para impedir que seja desprezada a finalidade dos recursos (art. 676º, n.º 1 do CPC), quer para não possibilitar a supressão de graus de jurisdição (20).
Nesta conformidade, constituindo a aludida questão agora invocada pelo recorrente uma questão completamente nova, que não foi colocada nem alegada na 1.ª Instância, e que esta não decidiu por não ter sido chamada a decidi-la, está-nos vedado de a conhecer.

De qualquer modo, mesmo que se entendesse de modo contrário no sentido da admissibilidade da cognoscibilidade da invocada questão – o que se concebe para efeitos meramente argumentativos –, sempre se diria que a mesma não se mostra demonstrada, visto o que consta do item 14 dos factos provados – no dia 12 de Setembro de 2013 o embargado exequente remeteu ao embargante executado a carta que resulta de fls. 445, cujo teor se dá por reproduzido, e no dia 17 de Outubro de 2013 a carta que resulta de fls. 446, cujo teor se dá por reproduzido, exigindo o pagamento das remessas abonadas ainda não reembolsadas nos termos ajustados, no valor total de €242.051,65, e dando conta do preenchimento da livrança referida no ponto 1, com vencimento no dia 24 de Outubro de 2013 –, sendo certo não resultar da facticidade apurada que essa missiva não foi rececionada pelo embargante ou não chegou à sua esfera de disponibilidade.
Sempre improcederia, pois, o referido fundamento de recurso.

Importa, por último, salientar que o preenchimento da livrança depois da insolvência da subscritora não corporiza violação do pacto de preenchimento.
Estando em causa uma livrança em branco ou em branco avalizada, entende-se que a obrigação cambiária surge logo no momento da emissão do título, tanto a do subscritor da livrança, como a do avalista, embora essa obrigação só possa ser efetivada depois do preenchimento do título (21), que deverá ocorrer depois do vencimento da obrigação subjacente, pois só nesse momento se verifica a quantificação da obrigação cambiária e a sua exigibilidade (22).

Assim, declarada a insolvência em momento posterior ao da subscrição do título pelo insolvente, o seu preenchimento subsequente à declaração do estado de insolvência não afecta aquele de nulidade formal e tão pouco consubstancia violação do pacto de preenchimento, pois quando foi declarada a insolvência essa obrigação já estava constituída e celebrado o referido acordo.

Para efeito do exercício do direito de acção do portador é indiferente, ainda, saber se o título foi ou não apresentado a pagamento ao aceitante ou subscritor declarado insolvente, podendo a obrigação cambiária ser logo exigida tanto daquele como do respetivo avalista, obrigado que se encontra à semelhança do próprio avalizado (art. 32º, n.º 1 e 77º, n.º 3 da LULL), pois, para além de ser suficiente a apresentação da sentença declaratória da insolvência (art. 44º, n.º 6 da LULL), a obrigação emergente do negócio subjacente à emissão da letra ou da livrança em branco tem-se por vencida por força da declaração de insolvência do aceitante ou subscritor (art. 91º do CIRE), como consequência da impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas (art. 3º, n.º 1 do CIRE).

No caso de o vencimento das obrigações ser ocasionado pela declaração de insolvência do aceitante ou subscritor, e como o avalista responde solidariamente (art. 47º, n.º 1 “ex vi” do art. 77º, n.º 1 da LULL), nada impede que o portador demande separadamente aqueles co-obrigados (art. 44º, n.º 6 da LULL), pelo que o preenchimento da livrança depois da insolvência do subscritor do título não consubstancia violação do acordo de preenchimento, mesmo que este estabeleça a obrigatoriedade de o credor notificar o devedor e seus garantes no caso de inadimplemento do negócio causal (23).
No caso dos autos, considerando que o executado não logrou provar que os concretos termos em que a livrança foi preenchida estavam em desconformidade com os termos que haviam sido acordados entre as partes no pacto de preenchimento, outra solução não poderia ser senão a de que os embargos teriam que improceder e, portanto, nenhuma censura merece a decisão recorrida.
Improcede, portanto, o recurso.
*
Sumário (ao abrigo do disposto no art. 667º, n.º 3 do CPC):

I - Porque a obrigação cambiária é uma obrigação literal e abstracta, que decorre do título que a incorpora, o credor que exige o respectivo pagamento não carece de invocar no requerimento executivo a sua causa (a relação subjacente ou fundamental), podendo limitar-se a apresentar o título que incorpora a obrigação, correspondendo esta obrigação cambiária à causa de pedir da acção executiva onde se exige o seu cumprimento.
II - Quando o avalista tenha tomado parte no pacto de preenchimento de livrança em branco, subscrevendo-o, devem ser qualificadas de imediatas as relações entre ele e o tomador ou beneficiário da livrança, por não haver entre o avalista e o beneficiário do título interposição de outras pessoas, tendo, neste caso, legitimidade para invocar o preenchimento abusivo da livrança.
III - Por consubstanciarem factos impeditivos do direito de exigir a obrigação cambiária que está incorporada no título, compete a quem invoca o preenchimento abusivo o ónus de alegar e provar os respectivos pressupostos: a existência e o conteúdo do pacto de preenchimento e a violação ou desrespeito pelos termos e condições aí definidos.
*
V. DECISÃO

Perante o exposto acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso de apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas a cargo do recorrente (art. 527.º do CPC).
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Guimarães, 12 de abril de 2018

Alcides Rodrigues
Espinheira Baltar
Eva Almeida


1. Todas as transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo gralhas evidentes e a ortografia utilizada.
2. Cfr. Anselmo de Castro, A acção Executiva Singular, Comum e Especial, Coimbra Editora, 1977, pág. 14.
3. Cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, Coimbra Editora, 1993, p. 58.
4. Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, in Acção Executiva Singular, Lex, 1998, pp. 13, 14, 29 e 63/64.
5. Cfr. Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, Almedina, 1999, p. 82, Salvador da Costa, A Injunção e as Conexas Acção e Execução, 5ª ed., 2005, Almedina, p. 280 e Joel Timóteo Ramos Pereira, Prontuário de Formulários e Trâmites, Vol. IV, Processo Executivo, 2ª ed., Quid Iuris, p. 199 e o Ac. do STJ de 15-05-2003 (relator Salvador da Costa), www.dgsi.pt. Diversamente, Alberto dos Reis, Processo de Execução, vol. II, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, p. 5, Eurico Lopes Cardoso, Manual da Acção Executiva, 3ª ed. (Reimpressão), Almedina, 1992, p. 13, e Anselmo de Castro, A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, 2ª ed., Coimbra Editora, 1973, p. 90, entendiam que a causa de pedir numa execução era consubstanciada pelo próprio título executivo.
6. Cfr. Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo, A Acção Executiva Anotada e Comentada, Almedina, 2015, pp. 135/136, Abrantes Geraldes, Títulos executivos, Thémis, Ano IV, n.º 76 – 2003, A Reforma da Acção Executiva, Almedina, pp. 37/38, Eurico Lopes Cardoso, obra citada, p. 22 e Manuel de Andrade, obra citada, p. 59.
7. Cfr. A. Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, Vol. III, Letra de Câmbio Universidade de Coimbra, 1975, p. 23.in
8. Cfr., nesse sentido, Marco Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Civil Executivo, 2016, Almedina, p. 82; ac. da RP de 10/02/2015 (relator Rui Moreira) e o ac. do STJ de 3/05/2005 (relator Azevedo Ramos), ambos disponíveis in www.dgsi.pt., aduzindo este último que a obrigação cambiária é uma obrigação abstracta e, portanto, independente de qualquer "causa debendi", válida por si e pelas estipulações expressas na livrança.
9. Cfr. Ac. do STJ de 15.03.2012 (relator Garcia Calejo), in www.dgsi.pt.
10. Cfr. A Acção Executiva depois da reforma, 4ª edição, Coimbra Editora, 2004, p. 158.
11. Cfr. Ac. da RE de 28/06/2017 (relatora Isabel de Matos Peixoto Imaginário), in www.dgsi.pt.
12. Cfr. Ac. da RC de 07-02-2017 (relatora Maria Catarina Gonçalves) e os Acs. do STJ de 23/09/2010 (relator Lopes do Rego) e de 13/11/2012 (relator Garcia Calejo), disponíveis in www.dgsi.pt.; J. P. Remédio Marques, Curso de Processo Executivo Comum À Face do Código Revisto, Almedina, p. 53 e Miguel Teixeira de Sousa, obra citada, pp. 68/69.
13. Cfr. Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, 2ª ed., 2004, Almedina, pp. 252/253; no mesmo sentido, à luz do atual CPC, Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, 2ª ed., 2014, Almedina, p. 40.
14. Cfr. Abel Delgado, Lei Uniforme sobre letras e livranças Anotada, 7ª ed., Petrony 1996, pp. 78 e 79.
15. Cfr. Carolina Cunha, Letras e Livranças, Paradigmas Actuais e Recompreensão de um Regime, Almedina, p. 554.
16. Cfr. L. Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias, 2017, 2ª ed., Almedina, pp.122/123.
17. Cfr. Acs. do STJ de 15.05.2014 (relator Tavares de Paiva) e de 22.10.2013, (relator Alves Velho), in www.dgsi.pt.
18. Cfr., neste sentido, o acórdão uniformizador de Jurisprudência do STJ de 14/05/1996, in DR n.º 159/96, 2ª série, de 11/07/1996 («Em processo de embargos de executado é sobre o embargante, subscritor do cheque exequendo, emitido com data em branco e posteriormente completado pelo tomador ou a seu mando, que recai o ónus da prova da existência de acordo de preenchimento e da sua inobservância»; Ac. da RP de 03-04-2014 (Leonel Serôdio), in www.dgsi.pt.
19. Cfr. Ac. da RC de 10/02/2015 (Relator Barateiro Martins), in www.dgsi.pt. e Marco Carvalho Gonçalves, obra citada, p. 93.
20. Cfr. Abrantes Geraldes, obra citada, pp. 28, 29, 109 a 110, Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., 1997, Lex, p. 395.
21. Cfr. Ac. do STJ de 15.05.2013 (relator Abrantes Geraldes), in www.dgsi.pt.
22. Cfr. Abel Delgado, obra citada, p. 83.
23. Cfr. J. H. Delgado de Carvalho, Acção Executiva Para Pagamento de Quantia Certa, 2ª ed., Quid Iuris, pp. 412/413, cuja fundamentação seguimos de perto na exposição em apreço.