Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
137/09.0IDBRG
Relator: FERNANDO VENTURA
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
IVA
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/13/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: ORDENADO O REENVIO PARCIAL
Sumário: I. No âmbito do IVA, não cabe considerar o imposto a entregar à administração tributária como “prestação tributária deduzida”, pois a dedução de IVA refere-se àquele que o sujeito passivo tem a receber, e não ao que tem a entregar.

II. Consequentemente, as situações em que o sujeito passivo recebe de terceiro IVA que liquidou e não o entrega à administração tributária preenchem o crime de abuso de confiança fiscal previsto no nº 2 do artigo 105º do RGIT.

III. Não comete o crime de abuso de confiança fiscal quem omite a entrega da diferença entre o IVA liquidado e o imposto a seu favor quando não recebeu do cliente o montante correspondente àquele imposto.

IV. Apurado saldo a favor do Estado, mas não que o montante de IVA liquidado foi previamente recebido pelo arguido, ou deixou de o ser, verifica-se insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães


I. Relatório


[1] Nos presentes autos, com o NUIPC 137/09.0IDBRG, do 3º Juízo Criminal de Braga, por sentença proferida em 21/12/2010, foi o arguido José A... condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelos artºs. 105, nºs 1, 4 e 5 do RGIT e 30º, nº2 do CP, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, subordinada à obrigação de o arguido comprovar no processo, nesse prazo, o pagamento ao Estado do montante de €196 606,93 (cento e noventa e seis mil, seiscentos e seis euros e noventa e três centímos). Foi igualmente condenada a arguida Jorge & F..., Unipessoal, Lda, pela prática do mesmo crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelos artºs. 105, nºs 1, 4 e 5 e do RGIT e 30º, nº2 do CP, na pena de 450 (quatrocentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis euros), perfazendo o total de €2 700,00 (dois mil e setecentos euros).
[2] Inconformado, o arguido José A... veio interpor recurso para esta Relação, pedindo a revogação da sentença. Extraiu da motivação as seguintes conclusões:
1. O Recorrente foi condenado pela prática de um crime continuado de abuso de confiança contra Fazenda nacional, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão,
2. suspensa na sua execução por igual período de tempo, condicionada ao pagamento das contribuições ao Estado no valor de 196.606,93€, no mesmo prazo.
3. Da prova produzida em audiência, em especial do depoimento do arguido e da testemunha André V..., resultou provado que nos valores constantes da acusação não foi considerado o abatimento do IVA dedutível,
4. Situação que legal e tributariamente era exigida,
5. E que alteram, em muito, os valores de IVA a pagar pelo arguido ao Estado.
6. Tais factos importam que tivessem sido dados como não provados os factos constantes dos pontos 6,7,8,9 e 10.
7. Lançando-se mão do princípio in dubio pra reo, deveria ter-se absolvido o Arguido do crime de que vinha acusado, pelo que fez o Tribunal uma errada interpretação do art° 105° do RGIT.
8. Sem prescindir, é insustentável a pena aplicada ao Recorrente na sua natureza e dimensão.
9. Deste logo, porque, embora consciente de que tem sido outro o entendimento do Tribunal Constitucional, o Recorrente sustenta que as normas inscritas nos art°s 14º do RGIT e no art° 11º, n° 7, do RIIFNA que subordinam a suspensão da pena à condição do pagamento da prestação tributária em dívida e acréscimos legais estão feridas de inconstitucionalidade material, por ofensa dos princípios constitucionais da culpa, adequação e proporcionalidade e da proibição da prisão por dívidas, e, portanto, por violação do disposto nos art°s 13°, 18° n°2, e 27° da CRP, e Protocolo nº4 Adicional à CEDH.
10. Inconstitucionalidade que fica, por isso, alegada.
11. Não se conforma ainda o Recorrente com o facto de lhe ter sido aplicada uma pena de prisão ainda que suspensa.
12. Parecendo-lhe razoável que se deveria ter lançado mão da aplicação de uma pena de multa, pois ela será suficiente para realizar de uma forma adequada as finalidades da punição, não afectando, de forma alguma as exigências da prevenção.
13. Não pode ainda o Recorrente conformar-se com a posição de que o não recebimento do IVA liquidado, não contende com o preenchimento dos elementos típicos deste tipo legal de crime.
14. De facto, ao alcançar-se o conceito de prestação tributária do RGIT — artigos 114°/3 e 105º/2 — verifica-se que sobre as quantias que não foram recebidas, não há obrigação de as liquidar:
“... bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação de liquidar"
" ... considera-se prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja"
15. O recorrente não dispõe dos meios económicos que lhe permitam satisfazer, no prazo cominado de 1 ano e 6 meses, a dívida tributária sub judice, cujo capital totaliza o montante de 196.606,93€.
16. pois mesmo que disponha da totalidade dos seus réditos mensais – deixando de comer, vestir-se ou pagar o local onde mora – tal não é suficiente para pagar a dívida.
17. Ora, desta forma, não pode aceitar-se que a suspensão da pena de prisão fique condicionada ao pagamento das contribuições em dívida,
18. uma vez que os elementos de facto apurados e assentes acerca da situação económica e patrimonial do Recorrente, inculcam, sem remissa, que a condição a que ficou subordinada a execução da pena de prisão que lhe foi imposta é de cumprimento impossível.
19. Trata-se, assim, de uma condição impossível de cumprir e, portanto, duma inevitável prisão por dívidas.
20. Assim, impunha-se que o Tribunal tivesse optado por uma pena de multa e nunca por uma pena de prisão, ainda que suspensa na sua execução.
21. Ao decidir de modo diverso, a douta sentença em mérito, ofendeu, entre outros, o normativo que se contém no artº 51º nº2 do CP.
22. De resto, também pela prova produzida nos autos e independentemente da supra citada questão da condição impossível, sempre o Tribunal poderia e deveria ter optado pela aplicação de uma pena de multa,
23. pois ela será suficiente para realizar de uma forma adequada as finalidades da punição, não afectando, de forma alguma, as exigências de prevenção de futuros crimes, tanto mais que, reforça-se, resultou provado que o Recorrente, não integrou no seu património o imposto devido.
24. Assim, o douto acórdão em mérito, violou o disposto nos artigos 40º, 70º e 71º do Código Penal.
NESTES TERMOS, revogando o douto acórdão recorrido, farão V. Exas a habitual JUSTIÇA!

[3] O Ministério Público junto do Tribunal a quo, apresentou resposta, que concluiu dizendo:
1) O arguido José A... foi condenado na sentença recorrida, pela prática do crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada, p. e p. no art° 105° n°1, n°4 e n°5 do RGIT, na pena de 18 meses de prisão suspensa na sua execução por igual período na condição de, durante esse período, pagar a quantia de € 196.606,93 e juros legais, ao Estado.
2) Pretende o recorrente colocar em crise a medida da pena em que o arguido foi condenado, por entender não terem sido interpretadas correctamente as normas ínsitas nos artigos 40°, 70° e 71° todos do Código Penal.
3) A Lei Penal, através do disposto nos art°40° 70° e 71°, fornece ao julgador, os critérios de determinação da pena, a qual é alcançada através de um processo que decorre em fases distintas:
a) Determinar, por um lado, a moldura abstracta aplicada aos factos dados como provados no processo;
b) Encontrar, dentro daquela moldura penal, o " quantum" concreto da pena em que o arguido deve ser condenado.
4) O Tribunal a quo decidiu aplicar ao arguido uma pena privativa da liberdade, como impõe o art° 105° n°5 do RGIT (prevê a pena de prisão e não a pena de multa), ainda que suspensa na sua execução por entender que só esta realizaria de forma adequada as finalidades da punição e ter ficado provado que cometeu o ilícito, p. e p. no art° 105° n° 1, 4 e 5 do RGIT.
5) Conforme dispõe o art° 13° do RGIT "na determinação da medida da pena atende-se, sempre que possível, ao prejuízo causado pelo crime" e o montante do IVA não entregue pelo arguido foi muito elevado, sendo grande o prejuízo causado ao Estado, pelo que, no caso em concreto, o Tribunal a quo não podia ter deixado de optar pela aplicação da pena de prisão.
6) O recorrente refere que o Tribunal devia ter optado por aplicar pena de multa e não pena de prisão ainda que suspensa na execução e que a condição de pagar não devia ter operado, esquece, contudo, que o art° 14° impõe que a suspensão seja condicionada ao pagamento dos montantes em dívida e acréscimos legais.
7) O recorrente alega que o art° 14° do RGIT está ferido de inconstitucionalidade material, quando é sabido que a jurisprudência do Tribunal Constitucional é unãnime em considerar que a condição de pagamento dos montantes em dívida como requisito legal para a suspensão da execução da pena de prisão, não colide com princípios constitucionalmente consagrados.
8) Contrariamente à posição assumida pelo recorrente, entende-se que o Tribunal a quo fez uma interpretação correcta do art° 105° do RGIT, pois o arguido cometeu o crime de abuso de confiança fiscal, no momento em que liquidou IVA (tem que pagar independentemente de receber ou não as quantias) e efectivamente recebeu dos seus clientes o montante de €181.317,34 e não entregou à Administração Tributária a quantia de IVA liquidado de €196.606,93, integrando-a no património e afectação funcional da sociedade arguida da qual era gerente.
9) É ao julgador que cabe emitir o seu juízo em termos livre apreciação da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, sendo que a sentença indica na motivação, quais os pontos concretos e depoimentos que revestem maior credibilidade, em consonância com o princípio da imediação e da oralidade.
10) Da audição dos depoimentos prestados em audiência, conjugados e correlacionados com os demais elementos de prova em que se alicerçou o tribunal e com as regras da experiência comum, resulta não haver nos autos provas que imponham decisão diversa da recorrida.
11) O crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada encontra-se preenchido nos seus elementos objectivos e subjectivos, tendo o arguido/ recorrente incorrido em autoria material na prática do referido ilícito e a decisão recorrida encontra-se devidamente fundamentada quanto aos factos dados como provados e que conduziram à condenação do arguido.
12) Assim, não foi violado qualquer preceito legal, desde logo o art° 105° do RGIT e artigos 40°, art° 70° e 71° do Código Penal.
13) Pelo que a sentença recorrida não nos merece qualquer reparo.

Termina pela improcedência do recurso.

[4] Nesta Relação, o Ministério Público, através do Sr Procurador-Geral adjunto, sufraga a mesma posição, para a qual remete.
[5] Cumprido o disposto no artº 417º, nº2 do CPP, não foi apresentada resposta.
[6] Colhidos os vistos, procedeu-se a conferência.

II. Fundamentação
2.1. Delimitação do objecto do recurso
[7] É pacífica a doutrina e jurisprudência Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2ª ed., Ed. Verbo, pág. 335 e Ac. do STJ de 24/03/99, in CJ (STJ), ano VII, tº 1, pág. 247. no sentido de que o âmbito do recurso delimita-se face às conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso Cfr., por exemplo, art.ºs 119.º, n.º 1, 123.º, n.º 2, 410.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), do CPP e acórdão de fixação de jurisprudência do STJ de 19/10/95, publicado sob o n.º 7/95 em DR, I-A, de 28/12/95..
As questões colocadas pelo recorrente são as seguintes:

i. Impugnação ampla da decisão em matéria de facto;
ii. Ausência de cometimento do crime de abuso de abuso de confiança fiscal relativamente ao IVA liquidado mas não recebido;
iii. Aplicação de pena de multa;
iv. Inconstitucionalidade da condição aposta à suspensão de execução da pena de prisão.
Como adiante se indicará, suscita-se uma outra, de conhecimento oficioso, a saber, a verificação do vício previsto na al. a) do nº2 do artº 410º do CPP.

2.2. Da decisão recorrida (quanto aos factos)
[8] As duas primeiras questões colocadas no recurso incidem sobre os fundamentos de facto da sentença condenatório e também sobre a subsunção jurídico-penal da conduta apurada. Começemos, então, por enunciar, com transcrição, os factos dados como provados e não provados na decisão recorrida, e também a fundamentação da convicção que conduziu a esse julgamento:
II. Fundamentação de facto
2.1. Matéria de facto provada.
Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:
1. A sociedade arguida "Jorge & F... Unipessoal, Lda", matriculada na Conservatória de Registo Comercial de Braga sob o n°504 378 686, actualmente declarada insolvente no âmbito do Processo n°7130/08.9 TBBRG do 1° Juízo Cível do Tribunal Judicial de Braga, e em fase de liquidação, tem a respectiva sede na Av. General Norton de Matos, n°35, 2° andar, sala 4, Braga.
2. Tal sociedade encontrava-se colectada em IRC pelo exercício de actividade principal sob o CAE 41200 (construção de edifícios residenciais e não residenciais) e secundária sob o CAE 71120 (actividades de engenharia e técnicas afins), tendo como competente o 1° Serviço de Finanças de Braga, e estava enquadrada para efeitos do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (C.I.V.A.) no regime normal com periodicidade mensal.
3. Desde 21 de Abril de 2006 que o arguido José A... foi o único gerente da mencionada sociedade e como tal responsável pela gestão e administração da mesma.
4. Ao arguido José A..., enquanto responsável pela organização da contabilidade da actividade da mencionada sociedade e pelo cumprimento das respectivas obrigações fiscais, competia-lhe, além do mais, proceder à elaboração e envio ao serviço de finanças competente das declarações periódicas de Imposto Sobre o Valor Acrescentado, estando obrigado a entregar aos cofres do Estado as importâncias que, a tal título, retinha aos seus clientes.
5. No âmbito da sua actividade, a sociedade arguida, através do arguido José , realizou operações tributáveis traduzidas na prestação de serviços a título oneroso, tendo este emitido as respectivas facturas, nelas aposto a base tributável e liquidou IVA, que fez incidir sobre tal base tributável, à taxa legal de 21%.
6. Apesar de ter recebido dos clientes com quem contratou em representação da sociedade "Jorge & F..., Unipessoal Lda" parte do imposto liquidado e mencionado nas facturas, o arguido José A... não remeteu ao Serviço de Administração do IVA os seguintes montantes parcelares de imposto, no prazo legal (até ao dia 15 do 2° mês seguinte ao mês a que respeita) nem nos 90 dias posteriores ao termo do prazo legal:

Período a que respeita a infracção Imposto liquidado Montante da prestação tributária em falta

Abril de 2007 €64.829,46 €40.149,41
Junho de 2007 €77.709,51 €51.438,99
Agosto de 2007 €72.106,40 €51.198,35
Outubro de 2007 €89.180,64 €53.820,18
Total €196.606,93

7. Do total de IVA liquidado, os arguidos comprovadamente receberam pelo menos €181.317,34.
8.) Os arguidos foram notificados nos termos e para os efeitos do art°105, n°4 al.b) do RGIT, não tendo procedido ao pagamento da totalidade da quantia de imposto em dívida, juros e valor da coima aplicável no prazo de 30 dias.
O arguido José agiu livre, deliberada e conscientemente, com o propósito de obter vantagem patrimonial para a sociedade que geria, a que sabia não ter direito, apossando-se em proveito daquela do montante de imposto supra indicado e deduzido nos termos da lei, que estava legalmente obrigado a entregar ao Estado, não desconhecendo que a sua posição era tão só a de assegurar, enquanto mero depositário, a sua detenção para ulterior entrega à Administração Fiscal, bem sabendo que tal conduta é proibida por lei.
10. Agiu durante o lapso de tempo referenciado, reiterando sucessivamente os mesmos propósitos, cometendo de forma homogénea os repetidos actos criminosos, actuando com base numa suposta situação de impunidade por falta de fiscalização da omissão das obrigações fiscais, por não lhe ser exigido, de imediato, o pagamento das quantias devidas e servindo-se dos mesmos métodos que sucessiva e repetidamente se foram revelando aptos para atingir os seus fins.
Mais se provou:
11. Ao longo do período acima referido, a sociedade Jorge & F... Unipessoal, Lda atravessou dificuldades financeiras, que vieram a culminar na sua declaração de insolvência.
12. Não são conhecidos antecedentes criminais aos arguidos.
13. O arguido José A... é técnico de segurança a tempo parcial, auferindo mensalmente 480,00.
14. É solteiro e não tem filhos.
15.Vive em casa dos pais.
16. Por sentença proferida em 9/12/2009, transitada em julgado em 8/02/2010, o arguido José A... foi declarado insolvente.
17. A sociedade Jorge & F... Unipessoal, Lda empregava cerca de 20 trabalhadores.
18. Laborava em instalações arrendadas.
19. O seu capital social ascende a € 120 000,00.
20. Por sentença proferida em 11/11/2008, transitada em julgado em 27/01/2009, a sociedade Jorge & F... Unipessoal, Lda foi declarada insolvente.

2.2. Matéria de facto não provada
Não se provou que o arguido José A... se tivesse apropriado em benefício próprio das quantias de IVA não entregues ao Estado (apenas se provou que o fez em beneficio da sociedade arguida).
Não se provou que as dificuldades financeiras experimentadas pela sociedade arguida impedissem em absoluto a entrega da prestação tributária ao Estado.

2.3. Motivação da decisão de facto
A convicção do Tribunal quanto aos elementos constitutivos do crime e ao modo como foi cometido baseou-se, antes de mais, nas declarações do próprio arguido José A..., o qual, na primeira sessão da audiência de julgamento, admitiu a generalidade dos factos de que estava acusado, ressalvando apenas que não entregou os montantes de IVA que constam da acusação ao Estado porque não recebeu tais montantes dos seus clientes (em particular da sociedade I... Imobiliária Unipessoal, Lda) e devido a dificuldades financeiras sentidas pela sociedade arguida ao longo do período em causa na acusação.
Concretamente, explicou que, inicialmente, não fez constar das declarações de IVA que apresentou à administração tributária o montante de IVA não recebido, pelo que, no ano de 2008, apresentou declarações rectificativas devido a tal lapso.
Admitiu ainda que, ao longo do ano de 2007, a sociedade pagava aos trabalhadores e fornecedores, a luz e a água e que só em finais de 2008 é que tais pagamentos passaram a não ser efectuados na sua totalidade, mas apenas parcialmente.
Por último, reconheceu que os valores de IVA constantes da acusação ainda se encontram integralmente em dívida.
Baseou-se ainda o tribunal no depoimento da testemunha André V..., inspector tributário, o qual, de forma serena, precisa, segura e, por conseguinte, credível, confirmou os montantes de IVA liquidados pela sociedade arguida ao longo do período em causa na acusação e os montantes das prestações tributárias em falta, bem como os montantes de IVA em que existe prova de efectivo recebimento por parte da referida sociedade, tudo em consonância com o que foi dado como provado.
Explicou, nomeadamente, que a sociedade arguida entregou, no ano de 2008, declarações rectificativas relativamente ao período em causa na acusação e que no apuramento dos montantes das prestações tributárias em falta foram tidos em conta o IVA liquidado pela sociedade arguida, o IVA dedutível e eventuais pagamentos que a sociedade possa ter feito ao Estado por conta dessa diferença.
Adiantou ainda que, através da análise dos documentos contabilísticos da sociedade arguida e dos documentos recolhidos junto dos seus clientes durante o ano de 2007, chegaram à conclusão que o único cliente em situação devedora era a sociedade I... Imobiliária Unipessoal, Lda com uma dívida de € 705 883,30 (dos quais € 122 508,67 são de IVA). Acrescentou que, de acordo com a tese mais favorável à arguida, considerou-se que o valor integral de IVA não recebido (€ 122 508,67) dizia respeito aos quatro meses em causa nos autos, pelo que do total de IVA liquidado, os arguidos comprovadamente receberam pelo menos €181.317,34 (€303 826,01-€122 508,67).
Note-se que o Tribunal não pôde deixar de atribuir especial credibilidade a este depoimento, não só pelo modo sereno e seguro com que foi prestado, mas também pelos especiais conhecimentos técnicos evidenciados e pelo profundo conhecimento da situação fiscal da sociedade que a testemunha demonstrou, bem patente, de resto, nas suas declarações.
Nesta parte, baseou-se também o Tribunal nos documentos contabilísticos juntos aos autos e nos documentos solicitados aos clientes da sociedade arguida (que constam do anexo aos presentes autos). E note-se que os documentos juntos pelo arguido José A... na primeira sessão de audiência de julgamento não põem em causa os depoimentos e as conclusões acima mencionados, apenas evidenciando que alguns dos serviços prestados pela sociedade arguida ao longo do período referido na acusação foram-no à sociedade I... Imobiliária Unipessoal, Lda.
Em terceiro lugar, baseou-se o Tribunal no depoimento da testemunha Maria S..., técnica oficial de contas, a qual procedeu à análise da contabilidade da sociedade arguida a pedido do sr. administrador de insolvência, tendo explicado que o único cliente em situação devedora para com a referida sociedade é a I... Imobiliária Unipessoal, Lda. Adiantou ainda que ao longo do ano de 2007 foram feitos vários pagamentos aos fornecedores por parte da sociedade Jorge & F..., Unipessoal, Lda.
A testemunha Sónia F... prestou serviços de contabilidade para a sociedade arguida ao longo do período referido na acusação, tendo enviado, no ano de 2008, as declarações rectificativas respeitantes aos meses em causa nestes autos porque houve lapso no envio das primeiras declarações de IVA, já que se constatou que a sociedade tinha facturado muito mais do que constava das declarações iniciais.
Salientou ainda que, ao longo do ano de 2007, os salários eram pagos e os pagamentos aos fornecedores também eram efectuados.
A testemunha Teresa F..., que também estava encarregue da contabilidade da sociedade arguida, pouco acrescentou ao depoimento anterior, corroborando que, no ano de 2007, os salários eram pagos e que os pagamentos aos fornecedores eram efectuados.
João A... e Fernando A..., trabalhadores da sociedade arguida, salientaram que os salários foram sempre pagos. Só os subsídios são que, por vezes, não o eram.
Ouvido na segunda sessão da audiência de julgamento, Francisco D..., administrador de insolvência da sociedade arguida, explicou que, efectivamente, a sociedade Jorge & F... Unipessoal, Lda tinha várias dívidas fiscais aquando da sua declaração de insolvência e que ainda se encontra em liquidação. Frisou as dificuldades financeiras experimentadas ao longo do período em análise.
Por outro lado, salientou que existia uma dívida da sociedade I... ­ Imobiliária Unipessoal, Lda para com a sociedade arguida no valor de € 705 883,30, tendo sido requerida a insolvência daquela sociedade, a qual veio posteriormente a ser declarada. Actualmente, também a sociedade Imomanos se encontra em fase de liquidação, já que tem património, estando os respectivos bens a ser vendidos. Ainda não existiu, pois, a distribuição do produto da venda pelos credores.
Confrontado pela defesa com os valores de IVA que a sociedade arguida não entregou ao Estado, nomeadamente, se nesses valores já foi levado em consideração o IVA dedutível, teve uma afirmação lapidar e, como se verá, com particular importância para o caso vertente: "A pessoa indicada para responder a essa questão é o sr. técnico de administração tributária!".
É que, na segunda sessão da audiência de julgamento, o arguido José A... juntou aos autos um documento, por ele próprio elaborado, com alguns quadros relativos ao apuramento do IVA.
Ora, não pode deixar de realçar-se que tal documento, se bem que dê para perceber a posição do arguido sobre os factos em causa nos presentes autos e como tal foi admitido, assume um carácter manifestamente pouco ortodoxo, uma vez que é elaborado pelo próprio, ou seja, mais não é do que o arguido a refutar as conclusões da inspecção tributária sem qualquer outra base de apoio para além dos mapas que elaborou.
Permitimo-nos, no entanto, tecer algumas considerações sobre tais mapas para demonstrar a fragilidade dos mesmos.
Desde logo, com particular interesse para o problema que nos ocupa, deve salientar-se que as quantias que a sociedade arguida não entregou ao Estado estão reflectidas no mapa 2, facilmente se constatando que não existe grande discrepância, quer ao nível dos montantes parciais (com a excepção do IVA respeitante a Junho de 2007), alguns deles até de valor superior às quantias que constam da acusação, quer ao nível do montante total.
A grande discordância do arguido surge depois. É que o mesmo abate o IVA não recebido para chegar à conclusão que o valor que devia entregar ao Estado seria inferior ao que consta da acusação (veja-se o mapa 5). A seu devido tempo se verá que não tem razão.
Mas o arguido vai mais longe. No mapa 3 e nas considerações que teceu sobre o mesmo, refere que os valores em dívida por parte da sociedade Imomanos atingiriam € 1 095 041,32 e, consequentemente, que o IVA não recebido pela sociedade arguida alcançaria os € 229 950,32, o que, de acordo com a sua versão, significaria que a sociedade arguida não seria devedora, mas...credora de IVA.
Tais considerações contrariam frontalmente todos os meios de prova produzidos nos autos, nomeadamente a própria inspecção tributária, as declarações do sr. inspector tributário André G... e, por último, o requerimento de insolvência da sociedade Imomanos elaborado pela massa insolvente da sociedade Jorge & F..., Unipessoal, Lda.
Na verdade, afirma-se em tal requerimento (cfr. fls 164 e ss) e muito particularmente no seu art° 9°, que "no âmbito das referidas competências, a actual representação da insolvente, após análise da contabilidade existente, verificou que a requerente é credora da requerida da quantia de €705,883,30"
O referido valor (e não o valor de € 1 095 041,32) coincide com o valor constante de fls 231 e com o valor mencionado pelo sr.inspector tributário.
Tanto basta para pôr a nu a fragilidade do documento junto pelo arguido e do raciocínio por ele efectuado.
Assim, por razões óbvias (maior isenção e distanciamento), o tribunal privilegiou o depoimento do sr. inspector tributário André V... em detrimento do depoimento do arguido.
A conjugação de todos os meios de prova acima referidos inculca, pois, a ideia de que os factos ocorreram da forma como foram dados como provados.
Note-se que a existência de meios financeiros para, no período a que se reporta a acusação, a empresa Jorge & F... Unipessoal, Lda cumprir pontualmente as suas obrigações contributivas para com o Estado resulta, assim, do facto de a mesma se manter em funcionamento, conforme documentos contabilísticos existentes nos autos, demonstrativos da existência de giro económico e de movimentos financeiros, de o IVA liquidado e declarado ter sido parcialmente recebido e de pelo menos no ano de 2007 (que é aquele a que se reporta a acusação) os salários e os fornecimentos efectuados terem sido pagos, o que demonstra que, face às dificuldades financeiras sentidas pela sociedade arguida, houve uma opção nítida no sentido de privilegiar tais encargos em detrimento do pagamento do IVA devido ao Estado.
Tiveram-se ainda em conta a certidão da Conservatória do Registo Comercial de fls 63 e ss e a notificação de fls 112.
A prova do elemento subjectivo é sempre indirecta e deve ser extraída dos demais elementos existentes nos autos e das regras de experiência comum. Desta perspectiva, pode certamente dizer-se que, ao não entregar o IVA devido ao Estado, o arguido José A... agiu livre, voluntária e conscientemente, com perfeito conhecimento da censurabilidade jurídico-penal da sua conduta.
No que concerne à situação pessoal e económica do arguido José , as suas declarações, à falta de outros elementos, as quais relevaram ainda para o apuramento da situação financeira da arguida sociedade. Baseou-se ainda o tribunal, nesta parte, na sentença de declaração de insolvência do arguido José A... por ele junta na segunda sessão da audiência de julgamento.
Quanto aos antecedentes criminais dos arguidos, tiveram-se em conta os C.R.Cs juntos aos autos.
No que concerne aos restantes factos não provados, cumpre dizer que nenhuma outra prova se produziu em audiência que permitisse dar como provados outros factos para além dos que, nessa qualidade, se demonstraram.

2.3. Apreciação

2.3.1 Impugnação ampla da decisão em matéria de facto

[9] A primeira questão colocada decorre, como se disse, da pretensão do recorrente de ver reapreciada em segunda instância a decisão em matéria de facto, que considera incorrer em erro de julgamento. Deparamos, então, com impugnação alargada da decisão em matéria de facto, cumprindo explicitar o seu alcance, frequentemente incompreendido.
[10] Nos termos do artº 428º do CPP, as relações conhecem de facto e de direito, podendo modificar a decisão de facto quando a decisão tiver sido impugnada nos termos do artº 412º, nº3 do mesmo código. Tem sido salientado a uma voz pelos Tribunais Superiores que o recurso em matéria de facto é de fulcral importância para a salvaguarda dos direitos constitucionais de defesa e, para tanto, deve a Relação proceder a efectivo controlo da matéria de facto provada na 1ª instância, mormente por confronto desta com a documentação – registo áudio ou audiovisual - da prova produzida oralmente na audiência. Porém, essa dimensão do recurso não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, como se a decisão da 1ª instância não existisse, mas sim, e apenas, remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, expressamente indicados pelo recorrente Ac. do S.T.J. de 17/05/2007, Pº 071397, relatado pelo Conselheiro Santos Carvalho, acessível em www.dgsi.pt. Cfr., ainda, dentre a jurisprudência do nosso mais Alto Tribunal, acessível no mesmo sítio internet, os Acs. de 23/05/2007, Pº 07P1498, relator Conselheiro Henriques Gaspar, 14/03/2007, Pº 07P21, relator Conselheiro Santos Cabral, e de 15/03/2007, Pº 07P610, relator Conselheiro Pereira Madeira, entre muitos..
[11] Assim, para atingir a completa delimitação do objecto do recurso e obstar à utilização do recurso apenas para sobrepor uma nova apreciação àquela formulada em 1ª instância, veio o legislador processual penal da revisão operada pela Lei 48/2007, de 29/8, a par da eliminação da exigência da transcrição dos depoimentos O que foi justificado na proposta de Lei nº 109X da seguinte forma: «No âmbito da motivação, para pôr cobro a uma das principais causas da morosidade na tramitação do recurso, elimina-se a exigência de transcrição da audiência de julgamento. O recorrente pode referir as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida indicando as passagens das gravações; não é obrigado a proceder à respectiva transcrição (artigo 412.º). O tribunal ad quem procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que, porventura, considere relevantes»., impor ao recorrente em matéria de facto que na motivação proceda a uma tríplice especificação: concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; e ainda, quando o solicitar, concretas provas a renovar. Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: deve o recorrente ter como referência o consignado na acta quanto ao registo áudio ou vídeo das prova prestadas em audiência mas também indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (nºs 4 e 5 do artº 412º do CPP). Tal exigência justifica materialmente a extensão do prazo de recurso de 20 para 30 dias Sem elaborar sobre a necessidade para o exercício da defesa de tal prazo, não pode deixar de se confrontar o mesmo com o prazo concedido pelo legislador para a prolação de sentença nos casos de especial complexidade – 10 dias, nos termos do artº 373º do CPP – e para a elaboração de projecto de acórdão ou elaboração da decisão – 15 dias, nos termos dos artºs. 417º, nº9 e 425º, nº3, do CPP..
[12] Compulsada a motivação apresentada, verifica-se que o recorrente concretiza os pontos de facto que reputa de incorrectamente julgados: pretende a modificação da decisão de prova dos factos constantes dos pontos 6 a 10, dizendo na 6ª conclusão que deveriam passar para o elenco dos factos não provados. Encontra-se, então, respeitado o ónus imposto pela al. a) do nº3 do artº 412º do CPP. Verifica-se igualmente que o recorrente indica as provas que, no seu entender, impõem – esse é o critério legal – decisão diversa da recorrida, a saber, segmentos dos suas declarações e do depoimento de André V..., evocando, para tanto o princípio in dubio pro reo. Vejamos se tem razão.
[13] Antes de mais, importa assinalar que, compulsando o corpo da motivação em busca do desenvolvimento argumentativo das preposições sintéticas indicadas nas conclusões, surpreende-se posição algo distinta. Na motivação, o arguido evoca partes das suas declarações, entre as quais a frase “o IVA que não paguei foi o IVA que não recebi”, ao mesmo tempo que se insuge quanto à circunstância de não ter sido abatido o montante de IVA incobrado nas transacções havidas entre a sociedade arguida e a Imomanos. E, para além do apelo ao que disse em julgamento, em que, como seria de esperar, assumiu a mesma postura do recurso, como meio de prova o recorrente remete apenas para a reapreciação do que foi dito por André V... para, sem mais, conclui que esse depoimento não foi isento, nem credível.
[14] Ouvido todo o depoimento de André V... não encontramos subsídio probatório idóneo a atingir o efeito pretendido pelo arguido, mormente por projecção de uma dúvida razoável, e irremovível, sobre esse thema probandi. Nele a testemunha esclarece que atendera apenas aos elementos inscritos no sistema informático tributário, o qual reflecte o que consta das declarações periódicas apresentadas, conjugando esses elementos com alguma análise documental. Avançou, é certo, com a sua opinião sobre questões jurídicas, mas fê-lo com relutância, como se evidencia na exclamação “isto é quase uma questão jurídica que de facto, pois nos factos concordamos...”, o que manifestamente não permite descartar, como pretendido, esse contributo probatório, sem prejuízo da sua análise crítica e articulação com as demais provas.
[15] Ora, tomando as declarações periódicas constantes dos autos e às quais, estranhamente, nem o recorrente, que as fez juntar aos autos Requerimento em audiência de fls. 549, deferido por despacho judicial proferido de seguida por os considerar importantes para a descoberta da verdade., nem o Tribunal a quo fazem referência expressa, não ficam dúvidas quanto à ponderação de deduções no cálculo do montante a entregar à administração tributária. Tomando as declarações de substituição As primeiras declarações (modelo B) encontram-se a fls. 333, 344, 360 e 378. (modelo C), todas apresentadas em 21/10/2008 e ponderadas pela administração tributária para o cálculo das prestações em dívidas pelo sujeito passivo Cfr. autos de notícia de fls.3 do processo principal e de fls. 2 dos três processos apensos., deparamos com os seguintes valores:
i. Declaração periódica do IVA relativa a Abril de 2007: base tributável de €323.595,04 e €13.122,76 de imposto a favor do sujeito passivo, sendo o montante a entregar ao Estado de €64.829,46 A fls.336 e 3 do apenso 136/2009-2 IDBRG.;
ii. Declaração periódica de IVA relativa a Junho de 2007: base tributável de €370.113,76 e €21.145,56 de imposto a favor do sujeito passivo, sendo o montante a entregar ao Estado de €77.709,51 A fls. 345 e 3 do apenso NUIPC 135/2009-4 IDBRG.;
iii. Declaração periódica de IVA relativa a Agosto de 2007: base tributável de €346.363,77, €72.106,40 de imposto a favor do Estado e €12.365,05 de imposto a favor do sujeito passivo, sendo o montante a entregar ao Estado de €72.106,40 A fls. 57 e 361.;
iv. Declaração periódica de IVA relativa a Outubro de 2001 e dela consta a base tributária de €423.752,17 e €22.619,98 de imposto a favor do sujeito passivo, sendo o montante a entregar ao Estado de €89.180,64 A fls. 379 e 3 do apenso NUIPC 138/2009-4 IDBRG..
Como se vê, os montantes auto-liquidados nas declarações periódicas apresentadas correspondem aos montantes dados como provados de “imposto liquidado”, ou melhor, ao IVA liquidado deduzido do imposto a favor do sujeito passivo.

[16] Diz o recorrente a certo passo da motivação que o montante correcto de dedução seria o €130.939,04, remetendo para os “mapas explicativos” que apresentou Constantes de fls. 558 e 559 e aos quais o Tribunal a quo, correctamente, não atribuiu valor probatório. Com efeito, esses mapas mais não são do que o registo escrito da posição do arguido, como decorre patentemente da sua natureza “explicativa”, sem qualquer valor de demonstração da realidade subjacente, seja quanto à liquidação do IVA das transacções abrangidas nas respectivas declarações periódicas, seja quanto ao direito à dedução.
[17] Em todo o caso, uma vez que o arguido pugna pela remessa dos factos dados como provados sob 6,7,8, 9 e 10 para o elenco dos factos não provados, e não pela inscrição nos factos provados de qualquer outro montante, sempre nos estaria vedado modificar essa parte da decisão, atento o disposto na al. b) do artº 431º do CPP.
[18] Face ao exposto, dúvidas não restam que, ao contrário do que sustenta o arguido, os valores constantes dos factos provados resultam da ponderação dos montantes aceites pela administração e que estes levaram em linha de conta os montantes de imposto a favor do sujeito passivo – IVA dedutível.

2.3.2. Atipicidade penal do IVA liquidado em factura não paga

[19] A segunda questão colocada no recurso coloca-se no plano da subsunção jurídico-penal, na medida em que o arguido não concorda com o entendimento do Tribunal a quo relativamente à valoração da ausência de entrega ao Estado de IVA liquidado em factura mas que não foi efectivamente recebido, considerando que essa conduta não constitui infracção criminal.
Assiste-lhe inteira razão.

[20] Numa primeira aproximação ao problema, decorre com segurança dos factos provados que a sociedade arguida não recebeu todo o IVA que liquidou em factura e foi ponderado na condenação decretada pelo Tribunal a quo. Diz-se no ponto 6 dos factos provados que o arguido recebeu dos clientes “parte do IVA liquidado e mencionado nas facturas”, o que encontra conexão com o que se refere no ponto seguinte: “Do total de IVA liquidado, os arguidos comprovadamente Assinala-se a tautologia e impropriedade da utilização desse advérbio no elenco dos factos provados, pois todos terão de estar comprovados. receberam pelo menos €181.317,34”. Sobre a forma como se chegou a esse valor, remete a sentença para o depoimento de André V... e para a sua indicação de que “de acordo com a tese mais favorável ao arguido, considerou-se que o valor integral de IVA não recebido (€122.508,67) dizia respeito aos quatro meses em causa nos autos, pelo que do total de IVA liquidado, os arguidos comprovadamente receberam pelo menos €181.317,34 (€303.826,01 – 122.508,67)”.
[21] O Tribunal a quo decidiu essa questão com os seguintes argumentos:
No caso vertente, o arguido José A... estriba-se na circunstância de o IVA liquidado não ter sido recebido pela sociedade arguida dos seus clientes para concluir que não teria cometido o crime de que está acusado.
A verdade é que o não recebimento do IVA liquidado não contende com o preenchimento dos elementos típicos deste tipo legal de crime, o que, de resto, é particularmente evidente desde a entrada em vigor do RGIT, concretamente face à redacção do seu art 105°/1, embora tal já fosse sustentado no âmbito do RJIFNA.
Nesta matéria, não existe actualmente grande divergência em termos jurisprudenciais e doutrinais.
De facto, como impressivamente se salientou no Ac. RG de 20/11/2006, in www.dgsi.pt, "O IVA contabilizado é devido independentemente de o preço dos bens vendidos ou dos serviços prestados ser ou não recebido ou de se pedir qualquer compensação, pois dos preceitos respectivos do Código do IVA (cf, em especial os arts 16° a 40º e da configuração do imposto em causa, resulta inequivocamente que a declaração das operações efectuadas e o montante final liquidado (encontrado, e que serve simultaneamente de reconhecimento da obrigação de pagamento) não depende da efectiva cobrança do imposto aos clientes.
Com efeito, o exercício de uma actividade sujeita a IVA é aleatória nos seus resultados líquidos e, por isso, envolve vantagens e riscos e imputar o imposto nas transacções com os clientes e não o receber é um risco do próprio operador tributário, que apenas tem a válvula de escape prevista no art° 71° do CIVA para reposição da verdade tributária.
Acresce que, em conformidade, em todos os diplomas legais que passaram a punir a falta de pagamento, total ou parcial, do imposto é expressamente consignado que se trata da "prestação tributária deduzida" e não da que tiver sido efectivamente recebida.
Aliás, admitir o contrário, era transmitir ao Estado os riscos próprios da actividade empresarial, ou seja, era fazer com que o Estado suportasse também as consequências das vendas a crédito não cobradas, o que é um absurdo.
No caso das vendas a crédito, o vendedor assume os consequentes riscos para a sua actividade, mas o Estado garante-lhe, através dos mecanismos do citado art° 71° n's 8 e 9, que, pelo menos, quanto aos créditos incobrados, o contribuinte não perderá o valor correspondente ao IVA que já contabilizou e entregou.
Os valores do IVA cobrados nas vendas a dinheiro e os que são facturados nas vendas a crédito, recebidos ou não, entram no giro contabilístico do comerciante ou do empresário e, materialmente, confundem-se com os demais bens que constituem o activo, neste incluídas as disponibilidades de caixa.
Se as vendas forem feitas a dinheiro, a parte correspondente ao IVA entrou em caixa e deverá ser entregue a quem pertence. Se houve vendas a crédito, isso é da conta e risco do contribuinte, que mais não tem que fazer, também, do que entregar ao Estado a sua parte, sendo que, como já por mais uma vez se disse, este lhe garante a devolução, no caso de o contribuinte não vier a receber o seu crédito."
De qualquer das formas, sempre se diga que, ainda que por absurdo se exigisse que para o cometimento do crime de abuso de confiança fiscal tivesse que ser feita a prova do IVA liquidado ter sido efectivamente recebido, os arguidos não deixariam de ter cometido o crime de que estão acusados, uma vez que o valor integral de IVA não recebido dos seus clientes (€ 122 508,67) é manifestamente inferior ao valor do IVA que não entregaram e estavam obrigados a entregar (€196 606,93).
Ora, "in casu", o arguido José A... enquanto gerente da sociedade Jorge & F... Unipessoal, Lda, ao não entregar as prestações tributárias devidas ao Estado, estava a apropriar-se das mesmas em proveito da sociedade, ainda que não retirando benefício pessoal directo desse acto, pois que a sociedade, por si só, não tem vontade própria; e ao agir desse modo, isto é, ao omitir a obrigação de entrega ao Estado das prestações tributárias devidas, actuava com a intenção de obter um benefício patrimonial para a empresa, ou, pelo menos, com a consciência de que esse efeito decorre necessariamente da sua actuação.

[22] Com o devido respeito, este entendimento sofre, como de resto o aresto que cita, de deficiente ponderação da estrutura própria do IVA, assente na auto-liquidação pelo sujeito passivo, acompanhada da exigência de entrega de um saldo, ao invés, como acontece noutros impostos, da obrigação de entregar o que for deduzido. Acresce que, ao contrário do referido pelo Tribunal a quo, a posição por si sufragada está longe de recolher apoio jurisprudencial e doutrinário maioritário.
[23] Em termos gerais Para simplificação de raciocínio, não nos referiremos aos regimes especiais ou particularidades., de acordo com o artigo 7º do CIVA Na redacção vigente entre Abril e Outubro de 2007., sempre que ocorrer um facto gerador de imposto sobre o valor acrescentado, este torna-se devido e exigível para cobrança, incumbindo, por imperativo dos artigos 35º e 36º do CIVA, aos sujeitos passivos procederem à sua liquidação e adição do valor do imposto calculado ao valor das mercadorias ou serviços prestados, bem como a reflectirem esse apuramento na factura ou documento equivalente, de forma a que seja pago conjuntamente com a mercadoria ou serviços pelos seus adquirentes ou beneficiários. Então, e sempre que o facto gerador de IVA não seja um acto isolado, estabelecem os artigos 26º e 40º que os sujeitos passivos são obrigados a apresentar à administração tributária uma declaração periódica e a entregar o montante de imposto incluído nas facturas emitidas. Isto independentemente de ter sido efectuado ou não pelos adquirentes das mercadorias ou beneficiários dos serviços o pagamento total ou parcial da quantia facturada, pois a lei não faz excepção nesses casos.
[24] Porém, o conceito de “imposto exigível” para efeitos de entrega e de declaração periódica não se confunde com as regras de incidência do IVA e com as respectivas liquidações em factura, pois, como decorre expressis verbis do artigo 26º do CIVA “os sujeitos passivos são obrigados a entregar o montante do imposto exigível, apurado nos termos dos artigos 19º a 25º e 71º, no prazo previsto nos locais de cobrança legalmente autorizados”. No âmbito desses preceitos encontra-se o regime das deduções (art.º 19º a 25º), e também a possibilidade de rectificações e de dedução de créditos considerados incobráveis, mormente aqueles reconhecidos em processo de insolvência, tendo esta sido decretada (artigo 71º, nº8, al. a)) Situação em que se encontra quer a sociedade arguida, quer a sua cliente Imomanos, desconhecendo-se a data em que esta última foi declarada insolvente.. Pode, assim, vir a apurar-se um saldo nulo de imposto a entregar, ou até um saldo favorável ao sujeito passivo, por o IVA a seu favor no período da declaração período exceder o IVA liquidado. Significa isto que não se encontra no quadro desse imposto verdadeira prestação tributária deduzida, cuja retenção – omissão de entrega – seja merecedora, sem mais, de tutela criminal, ou mesmo contra-ordenacional.
[25] Com efeito, a questão coloca-se tanto no plano contra-ordenacional, como no plano criminal, e em termos praticamente sobreponíveis, dada a proximidade de redacção dos preceitos incriminadores. Estipula o nº1 do art.º 104º, nº1 do RGIT que “A não entrega, total ou parcial, pelo período de 90 dias, ou por período superior, desde que os factos não constituam crime, ao credor tributário, da prestação tributária deduzida nos termos da lei é passível de coima…”, o que compara com o nº1 do artº 105º Na redacção à data dos factos, anterior à Lei n.º 64-A/2008, de 31/12: “Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena ....”. Por outro lado, ambos os preceitos comportam uma extensão da punição a outras realidades tributárias, praticamente com a mesma redacção. Diz o nº3 do artº 104º: “Para os efeitos do disposto nos números anteriores considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de liquidar nos casos em que a lei o preveja”, Enquanto o nº2 do artº 105º estabelece “Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja”.
[26] Ora, a jurisprudência dos Tribunais Tributários é hoje uniforme e pacífica no sentido de que não existe infracção contra-ordenacional relativamente à omissão de entrega ao Estado de IVA liquidado mas não recebido do adquirente da mercadoria ou beneficiário do serviço, pois essa obrigação subsume-se à parte final do nº3 do art.º 114º do RGIT, e não ao conceito de “prestação tributária deduzida” do nº1 do preceito, o qual faz depender a tipicidade do efectivo pagamento do IVA liquidado em factura pelo cliente. Essa corrente jurisprudencial apresenta como marco o Ac. do STA de 28/05/2008, seguido por muitas outras decisões Sem pretensão de exaustão, vejam-se os acórdãos do STA de 28/05/2008, Pº 0279/08, relator Cons. Jorge de Sousa, de 18/09/2008, Pº 483/08, relator Cons. António Calhau, de 15/10/2008, P. 481/08, relator Cons. Borges de Pinho, de 11/02/2009, Pº 578/08, relator Cons. Lúcio Barbosa, de 18/11/2009, P0593/09, relator Cons. Pimenta do Vale e de 02/12/2009, Pº 0887/09, relator Conselheiro Miranda de Pacheco, os acs. do TCAN de de 28/01/2010, relator Des. Álvaro Dantas, Pº 1163/06, de 10/12/2010, Pº 1204/09, Relator Des. Vicente Torrão, e de 11/02/2011, Pº 513/08, relator Des. Francisco Rothes, e do TCAS de 17/10/2008,P. 2316/08, relator Des. Ascensão Lopes, e de 20/10/2009, Pº 3206/09, Des. José Correia, todos acessíveis em www.dgsi.pt. , para além de suscitar largo aplauso doutrinário Cfr. Isabel Marques da Silva, Nulla poena sine lege ou a não punibilidade da não entrega do IVA não recebido, Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, ano 1, nº3, Outubro de 2008, págs. 237-243 e também Nuno Lumbrales e Paula Machado, Responsabilidade contra-ordenacional pela entrega tardia de IVA não recebido, Revista Fiscalidade, nº34, Abril-Junho de 2008, págs. 107-116, argumentando estes que outra solução violaria os princípios da boa-fé e da capacidade contributiva. Dizem estes autores, a fls. 110, com propriedade:« Nesta matéria (à semelhança do que sucede em várias outras) verifica-se que o Estado tem indo a optar por onerar tributariamente e mesmo sancionar punitivamente o contribuinte que é vítima do incumprimento de terceiros, transferindo (na prática e abusivamente) para o mesmo o ónus de resolver as causas da sua dificuldade: o incumprimento de terceiros. Ora, em boa fé, impunha-se, pelo contrário, que o Estado tomasse medidas legislativas e administrativas tendentes à resolução do grave problema que é do frequentíssimo incumprimento de obrigações comerciais».. Porque lapidar, destacam-se os seguintes trechos desse aresto:
No âmbito do IVA fala-se de dedução de imposto relativamente ao imposto que o sujeito passivo tem a receber, nos termos dos arts. 19.º a 25.º do CIVA, não se referindo qualquer situação em que o sujeito passivo tenha de entregar imposto que tenha deduzido.
De facto, no âmbito do referido direito à dedução, os sujeitos passivos não têm de entregar à administração tributária a prestação tributária que deduziram [o imposto que deduziram, à face da definição dada na alínea a) do art. 11.º do RGIT], mas, antes pelo contrário, apenas têm de fazer entrega do imposto na medida em que excede o IVA a cuja dedução têm direito, isto é, do imposto que não deduziram.
O significado natural da expressão «deduzir» é o de «subtrair de um total». ( Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, I Volume, página 1081). Como ensina BAPTISTA MACHADO, «nos termos do art. 9.º, 3, (do Código Civil) o intérprete presumirá que o legislador «soube exprimir o seu pensamento em termos adequados». Só quando razões ponderosas, baseadas noutros subsídios interpretativos, conduzem à conclusão de que não é o sentido mais natural e directo da letra que deve ser acolhido, deve o intérprete preteri-lo (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, página 189. )
Assim, é de partir do pressuposto de que, com a utilização da expressão «prestação tributária deduzida» se pretendeu aludir a todas as situações em que é apurada uma prestação tributária (isto é, no caso, uma quantia de imposto, nos termos do citado art. 11.º do RGIT) pelo sujeito passivo através de uma subtracção de um quantia global e essa quantia deduzida tem de ser entregue à administração tributária.
(...)
Nestas situações, o imposto que deve ser entregue não é o imposto que foi liquidado, mas sim o eventual saldo positivo a favor da administração tributária que se registe após confrontação do volume global do imposto liquidado (recebido ou não) e do imposto que foi pago pelo sujeito passivo aos seus fornecedores ou prestadores de serviços (arts. 19.º a 25.º do CIVA).
Poderão, no entanto, ver-se no âmbito do IVA situações de dedução do imposto pelo sujeito passivo, no sentido literal atrás referido, nos casos em que o imposto liquidado nas facturas é recebido pelo sujeito passivo daqueles a quem vende mercadorias ou presta serviços: neste caso, ao total recebido, o sujeito passivo tem de abater o imposto pago e entregá-lo à administração tributária, nos casos em que o saldo é favorável a esta, no período em causa. Mas, esta situação só pode ocorrer nos casos em que o sujeito passivo tenha recebido efectivamente o imposto daqueles a quem vendeu mercadorias ou prestou serviços, o que não sucedeu no caso em apreço.
No entanto, as situações deste tipo, em que o sujeito passivo receber de terceiros IVA que liquidou e não o entregar à administração tributária, havendo obrigação de entrega por se comprovar que há um saldo positivo a favor desta no confronto da globalidade do imposto liquidado e pago pelo sujeito passivo em determinado período, são especialmente previstas não nos n.ºs 1 e 2, mas sim na parte final do n.º 3 do art. 114.º do RGIT, que, refere a prestação tributária «que tendo sido recebida, haja obrigação legal de liquidar nos casos em que a lei o preveja». Neste sentido, relativamente ao art. 29.º do RJIFNA, cujos três primeiros números têm teor idêntico aos correspondentes números do art. 114.º do RGIT, pode ver-se F. PINTO FERNANDES e J. CARDOSO DOS SANTOS, Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras Anotado e Comentado, páginas 174-175. Interpretando também com este sentido as expressões idênticas que constavam do art. 24.º, n.ºs 1 e 2, do RJIFNA, respeitante ao crime de abuso de confiança fiscal, podem ver-se ALFREDO JOSÉ DE SOUSA Infracções Fiscais (Não Aduaneiras), 3.ª edição, páginas 108-109, e NUNO de SÁ GOMES, Evasão Fiscal, Infracção Fiscal e Processo Penal Fiscal, 2000, páginas 261-262. No mesmo sentido, a propósito das expressões idênticas utilizadas no art. 105.º do RGIT, pode ver-se SUSANA AIRES DE SOUSA, Os Crimes Fiscais, página 124 ).

[27] No plano criminal, o Tribunal a quo socorre-se do acórdão desta Relação de 20/11/2006 Proferido no Pº1796/06, relator Des. Anselmo Lopes, acessível em www.dgsi.pt ., que transcreve parcialmente, podendo aduzir-se no mesmo sentido, embora em termos bem menos enfáticos, os mais recentes Acs. da Relação do Porto de 1/10/2008 Proferido no Pº 0842659, relator Des. Cravo Roxo, acessível em www.dgsi.pt. e da Relação de Lisboa de 4/02/2009 Publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano XXXIV, tomo I, págs. 159-164 relator Nuno Garcia. . Contudo, no sentido, da atipicidade penal da não entrega do IVA facturado mas não recebido, depôem os Acs. desta Relação de 9/06/2005 Proferido no Pº 203/04-1, relator Des. Ricardo Silva, acessível em www.dgsi.pt . e da Relação de Coimbra de 15/10/2010 Proferido no Pº 24/06.4IDGRD, relator Mouraz Lopes, acessível em www.dgsi.pt ., posição que nos parece igualmente ser a mais adequada, atenta a tipologia do IVA supra referida.
[28] Por seu turno, no plano doutrinário, a posição que exclui a tipicidade relativamente à omissão de entrega da diferença entre o IVA liquidado e o imposto a favor do sujeito passivo quando este não tenha sido recebido é sufragada sem voz divergente Para além da doutrina já mencionada na parte transcita do Ac. do STA de 28/05/2008, mormente Susana Aires de Sousa, Os Crimes Fiscais. Análise dogmática e Reflexão sobre a legitimidade do discurso criminalizador, Coimbra, 2006, páginas 124-126, cfr. Isabel Marques da Silva, Regime Geral das Infracções Tributárias, Coimbra, 2ª edição, 2007, pág. 168 e Nullum Crimen, Nulla Poene, Sine Lege Praevia: Inexistência de infracção tributária nos casos de não entrega de IVA não recebido, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Paulo de Pitta e Cunha, volume II, 2010, págs. 257-266, e também Paulo Marques, Crime de Abuso de Confiança Fiscal, Coimbra, 2011, págs. 51-64 e 101-106. . Em anotação fortemente crítica ao Ac. desta Relação de 20/11/2006, Isabel Marques da Silva considera que, pese embora o IVA liquidado seja exigível independentemente do seu recebimento Salvo nas empreitadas e sub-empreitadas de obras públicas., as consequências para a violação da obrigação de entrega da prestação tributária de IVA não recebido cingem-se à possibilidade de cobrança coerciva e ao dever de pagamento de juros. Em linha com a jurisprudência tributária supra referida, escreve a mesma autora Nullum Crimen…, págs. 262-263.:
Está […] por demonstrar o modo como o nº1 do artigo 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias se poderá ter como aplicável ao IVA, uma vez que neste imposto a prestação tributária deduzida, a que foi objecto do exercício do direito à dedução, é precisamente a que não tem de ser entregue nos cofres do Estado. Pela nossa parte, não vemos, pois, como seja possível fazer caber a não entrega das prestações tributárias de IVA no nº1 do artigo 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias. O mesmo não se diga já do nº2 do mesmo preceito legal, que o Tribunal parece ignorar. Como dissemos já, o nº2 do artigo 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias procede a uma extensão do tipo nele incluindo também a prestação tributária “(…) que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja”. O que permite considerer subsumível no tipo legal de crime a não entrega do IVA liquidado que tenha sido recebido. Mas apenas deste, como resulta expressamente do preceito. O recebimento da prestação tributária é, pois, em face do tipo legal de crime, pressuposto essencial do crime de abuso de confiança, sendo o que dever fiscal de entrega de IVA não recebido não goza de protecção penal, por atipicidade do facto.

[29] Temos, então, que assiste razão ao recorrente quando reclama a diminuição da punição que lhe foi imposta, por efeito da restrição da obrigação de entrega de IVA tutelada criminalmente às quantias efectivamente recebidas dos clientes.

2.3.3. Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada

[30] Aqui chegados, importa tomar os factos provados e verificar se neles encontramos todos os elementos pertinentes para a decisão, uma vez adquirido o entendimento jurídico que deixámos afirmado. A resposta só pode ser negativa.
[31] Ao Tribunal incumbe apreciar a acusação, enquanto elemento delimitador dos poderes de cognição num processo penal de estrutura acusatória, como o nosso Artº 32º, nº5 da CRP., sem descurar o princípio da investigação, perseguindo a verdade material de forma a atingir decisão justa, princípio de que o disposto no artº 340º do CPP constitui emanação. Quando tal não aconteça, e seja patente do texto da decisão que subsiste uma lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para a decisão de direito, uma lacuna por não se apurar o que é evidente que se podia apurar, ou uma lacuna por o tribunal não investigar a totalidade da matéria de facto, podendo fazê-lo, verifica-se o vício contemplado na al. a) do nº2 do artº 410º do CPP, a conhecer oficiosamente.
[32] Como já referimos, o Tribunal a quo dá como provado no ponto 7 dos factos provados que “os arguidos […] receberam pelo menos €181.317,34”, sendo esse minus reportado ao “total do IVA liquidado”. Na economia da fundamentação da convicção do Tribunal, compreende-se que tal valor corresponde ao resultado da subtracção ao total de €303.826,01 de IVA liquidado em factura do montante de €122.508,67 correspondente ao IVA relativo à facturação total de €705.883,30 para com a sociedade I... Imobiliária Unipessoal Lda e que esta sociedade não pagou, tendo entretanto sido declarada insolvente. Note-se que, embora impugne esse ponto da decisão, o arguido concorda expressamente com esse montante quando dá como “devidamente descontadas as quantias que o arguido não recebeu da Imomanos (e que a título de IVA poderíamos apontar em 122.508,67€)”, o que espelha acordo sobre esses aspectos – valor de facturação não paga e respectiva incidência de IVA - entre todos os sujeitos processuais.
[33] Porém, os valores relevantes para a punição da conduta omissiva prevista nos art.ºs 105º, nºs 1 e 2 do RGIT, não são os valores globais, totais, mas sim, nos termos do nº7 do preceito, os montantes relativos a cada declaração periódica, pelo que ficamos sem saber como se distribuiu nas quatro declarações em questão nestes autos a facturação da Imomanos e, correlativamente, o IVA liquidado mas não recebido correspondente a cada uma.
[34] Novamente, procurando perscrutar na fundamentação da convicção do Tribunal razão para essa omissão, verifica-se que é feita alusão ao depoimento de André V... e a que a imputação da facturação não paga foi feita a esses quatro meses “de acordo com a tese mais favorável à arguida”. Todavia, não se compreende a razão para exercício hipotético, tendo em atenção que se trata de realidade documentada, inscrita em facturas, e que as mesmas devem estar reflectidas tanto na contabilidade da sociedade arguida, como na contabilidade da Imomanos. É que, sublinhe-se, a partir do momento em que foi possível afirmar, com o devido suporte probatório, que o valor de €705.883,30 facturado à Imomanos e por pagar faz parte da base tributável indicada nas declarações periódicas relativas aos meses de Abril, Julho, Agosto e Outubro, e não a outros meses, passo indispensável para assegurar a correcção da subtração da parcela que conduz ao resultado de €181.317,34, levado ao ponto 7 dos factos provados, então será possível, e exigível, determinar quanto desses €122.508,67 corresponde a IVA incluído nas declarações periódicas relativas a Abril, Julho, Agosto de 2007 e Outubro de 2007.
[35] E não se argumente, como faz o Tribunal a quo, que esse apuramento será irrelevante, porquanto sempre terá sido cometido o crime de abuso de confiança fiscal em função da permanência de um saldo a favor do Estado relativo a IVA recebido que deveria ter sido entregue e não o foi, qualquer que seja o seu valor. Impõe-se recordar que a Lei nº64-A/2008, de 31/12, veio operar uma restrição do tipo penal do artº 105º do RGIT, passando a prever apenas as prestações tributárias deduzidas, bem como aquelas que, recebidas, haja obrigação de liquidar, de valor superior a €7.500,00, cumprindo então verificar se deve ser aplicado o disposto no artº 2º, nº2 do CP com referência a cada um dos crimes de abuso de confiança fiscal incluídos na continuação criminosa. Por outro lado, tendo o arguido sido acusado pela forma agravada do crime de abuso de confiança, p. e p. pelo nº5 do artº 105º do RGIT para as entregas não efectuadas superiores a €50.000,00 tomando, por imperativo do nº7 do preceito, cada declaração, então é necessário estabelecer se alguma das entregas devidas de IVA previamente recebido ultrapassou esse limiar. Em terceiro lugar, é imperativo estabelecer quais os montantes correspondentes a cada mês pois são esses, e apenas esses, os “acréscimos devidos” para efeitos do artº 14º do RGIT, e não os incidentes sobre todo o IVA liquidado em factura, tenha ou não sido recebido.
[36] Cumpre, então, assegurar a sanação do vício apontado, o que não é possível realizar neste Tribunal na medida em que carece de investigação e produção de prova, mormente documental, que não se encontra nos autos. Será, por isso, e nos termos decorrentes do artº 426º, nº1, do CPP, determinado o reenvio parcial, porque se trata apenas de ampliar o apuramento dos factos, mantendo-se inalterados os factos dados como provados e não provados.
[37] Em virtude dessa decisão, ficam prejudicadas as demais questões suscitadas (artº 660º, nº2, do CPC, ex vi artº 4º do CPP).

III. Dispositivo

Termos em que acordam os Juízes da secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em:

A. Conhecer oficiosamente do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
B. Determinar o reenvio parcial do processo para novo julgamento, com vista a determinar, tomando o valor total de €122.508,67 de IVA liquidado em factura mas não recebido pelo arguido dado como provado, quais as parcelas correspondentes a cada declaração periódica, com referência aos meses de Abril, Julho, Agosto de 2007 e Outubro de 2007;
C. Sem custas;
D. Notifique.

Guimarães, 13/06/2011