Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6123/12.6TBBRG.G1
Relator: ANTERO VEIGA
Descritores: CHEQUE
NÃO PAGAMENTO
RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/17/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I - A recusa de pagamento após o decurso do prazo disponível para o efeito, é lícita, uma vez que o banco não está obrigado a pagar o cheque.
II - Mesmo na falta de instruções do sacador, a recusa espontânea e por motu próprio do banco, podendo constituir um incumprimento contratual para com o cliente, encontra-se legalmente coberta pela previsão do art. 32.º, n.º 2, da LUCH, pelo que o sacado não tem, nesse caso, qualquer responsabilidade perante o portador.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães.

B…, intentou a presente ação declarativa com processo sumário contra a ré C…, pedindo a sua condenação de pagar-lhe a quantia de € 20.500,00 (vinte mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora vencidos que calcula em € 269,59 (duzentos e sessenta e nove euros e cinquenta e nove cêntimos) e vincendos a calcular à taxa legal supletiva até integral pagamento.
Alegou a recusa ilícita de pagamento de um cheque de que era portador.
A ré contestou referindo a apresentação fora do prazo de 8 dias.
O Mmº juiz, considerando poder conhecer das questões proferiu decisão julgando a ação improcedente.
O autor inconformado interpôs recurso admitido como de apelação apresentando as seguintes conclusões:
a) O sacador entregou ao recorrente o cheque n.º 8762800…, sacado sobre a conta bancária aberta na ré, com o n.º 99102329…, no valor de €20.500,00, emitido em 25 de outubro de 2011 e apresentado a pagamento no dia 10 de maio de 2012.
b) Cheque esse a que foi recusado pagamento, invocando a Ré o decurso do prazo de apresentação.
c) O cheque, em causa, não foi rescindido, nem revogado, nem sofreu qualquer tipo de vício formal ou substancial.
d) Sendo o cheque um título cambiário, à ordem ou ao portador, literal, formal, autónomo e abstrato, que contem uma ordem incondicionada, dirigida a um banqueiro, no estabelecimento do qual o emitente tem fundos disponíveis, ordem de pagar à vista a soma nele inscrita.
e) O sacado mais não é do que um simples mandatário ou executante de uma ordem do sacador.
f) Assim sendo, entende-se que o dever de pagar o cheque não é afetado pelo decurso do prazo legal de apresentação (LU art.º 29.º)
g) A ordem de pagamento permanece intocada pois nem o Banco fica desobrigado do pagamento nem o cliente fica desobrigado de manter fundos disponíveis, como resultado direto da celebração do contrato de cheque.
h) A recorrida recusou o pagamento do cheque em proveito próprio, pois após a recusa de pagamento do referido cheque, requereu a insolvência da sacador (proc. n.º 2038/12.6 TBBCL do 2.º J. Cível do Tribunal Judicial de Barcelos), sabendo que prejudicava o tomador do cheque
i) A recorrida reteve, ilegalmente, a quantia peticionada (que não lhe era devida nem exigível) abusando de forma flagrante a sua posição dominante face ao sacador.
j) A recorrida violou inexoravelmente os preceitos mais básicos da Lei do Uniforme do Cheque, mandato e contrato de depósito.
k) Impediu indevidamente a sua cobrança pelo seu legítimo portador, causou danos avultados ao mesmo, que se viu, posteriormente, coibido de ver satisfeito o seu crédito em virtude do pedido de insolvência efetuado pela Recorrida.
l) O sacado mais não é do que um simples mandatário ou executante de uma ordem do sacador; a relação intercedente entre o banco e o sacador não tem por fonte o ato de emissão do título – mas um negócio jurídico que lhe é anterior: a convenção ou contrato de cheque.
m) Atendendo à estrutura triangular típica da relação de cheque parece admissível que o beneficiário lesado possa ficar sub-rogado na posição do sacador, considerando-se que este grave incumprimento, por natureza, possa permitir tal intervenção, já que se cifra na lesão das expectativas de terceiro (art.º 606.º/2 C. Civil).
n) Sendo o sacado um simples mandatário ou executante de uma ordem do sacador, incumpriu ao recusar este pagamento, violando assim uma ordem emitida pelo seu mandante, inexistindo justificação/justa causa para o efeito.
o) Tal recusa no pagamento do cheque foi em proveito próprio e portanto consciente da ilicitude, culposo e doloso.
p) A recusa do pagamento do cheque provocou, neste caso, um dano sofrido pelo A., que subroga nos direitos do sacador, provocado pela indevida devolução do título, no montante total de capital de € 20.500,00 (euros), acrescido dos respetivos juros legais.
q) Face ao supra, deverá a decisão ser revogada e substituída por outra que aprecie a violação de uma ordem emitida pelo seu mandante, inexistindo justificação/justa causa para a recusa do pagamento do cheque em causa.
Em contra-alegações sustenta-se a manutenção do julgado.
Colhidos os vistos dos Ex.mos Srs. Adjuntos há que conhecer do recurso.
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Factualidade:
1. No dia 19 de maio de 2012, foi apresentado a pagamento o cheque nº8762800…, sacado sobre a conta bancária aberta na ré com nº99102329…, no valor de € 20.500,00;
2. Este cheque tinha a data de emissão de 25 de outubro de 2011;
3. Neste cheque constava que tinha sido emitido à ordem do autor;
4. O cheque foi apresentado a pagamento via compensação bancária, através do Banco…;
5. No dia 10 de maio de 2012, o pagamento deste cheque foi recusado por ter sido apresentado a pagamento fora de prazo.
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Conhecendo do recurso:
Nos termos dos artigos 684º, n.º 3 e 690º do CPC o âmbito do recurso encontra-se balizado pelas conclusões do recorrente.
Questões colocadas:
- Obrigatoriedade de pagamento de cheque apresentado fora do prazo do artigo 29 da LUCH, quando não rescindido ou revogado e haja fundos na respetiva conta (incondicionalidade da ordem de pagamento; entidade como mandatária do ordenante; recusa em proveito próprio; abuso de posição dominante face ao sacador; violação do contrato de depósito).
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O autor pretende ser ressarcido do prejuízo que sofreu com a recusa do pagamento do cheque, com indicação de apresentação fora de prazo (cerca de quatro meses e meio depois).
Relativamente ao proveito próprio da recorrida, sendo questão nova não será apreciada, tanto mais que nada consta da factualidade (nem foi alegado) sobre tal matéria.
Vejamos quanto ao mais:
Como se defende na sentença recorrida e vem sendo entendimento, a “obrigação de indemnizar do banco perante o tomador de um cheque com fundamento na recusa do pagamento enquadra-se na responsabilidade civil extracontratual prevista no art. 483º nº1 do Cód. Civil”.
Não restam dúvidas quanto à responsabilidade da entidade sacada no caso de apresentação em prazo – artigo 29º da LUCH -, se verificado que a conta dispõe de provisão suficiente, e não existe justa causa que obste ao pagamento. E não basta como justa causa a pura e simples revogação por parte do sacador – artigo 32º, 1 da LUCH, a contrario -.
Pressuposto da responsabilidade é pois, o facto, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
A questão é pois saber se, apresentado o cheque após o prazo consignado no artigo 29º da LU, a recusa de pagamento é ilícita. Tal há-de resultar do respaldo das normas aplicáveis.
O banqueiro age como mandatário do sacador, no âmbito desta especifica relação – e é, com sujeição às regras próprias. Consequentemente importa verificar quais as regras próprias aplicáveis, porquanto a obrigação de cumprir os atos compreendidos no mandato obedecem a regras específicas.
A convenção de cheque é um contrato de prestação de serviços, um contrato de mandato sem representação, sinalagmático, que se caracteriza por o banco aceder a que o seu cliente, titular de um direito de crédito sobre a provisão, mobilize os fundos por meio da emissão de cheques, vinculando-se o banco ao respetivo pagamento nos termos do artigo 3º da LU.
As obrigações decorrentes da convenção são designadamente as que resultam da LUCH.
O artigo 32º, 2ª parte da LU refere que “ se o cheque não tiver sido revogado, o sacado pode pagá-lo mesmo depois de findo o prazo”.
Como se vê, da letra da lei resulta a “possibilidade” de pagar, o que pressupõe a não obrigação de tal pagamento.
O titular de um cheque não apresentado a pagamento no prazo plasmado na LU perde a garantia da obrigação de pagamento do mesmo.
Como refere PAULO OLAVO CUNHA, citado na decisão recorrida, a recusa de pagamento após o decurso do prazo disponível para o efeito, é lícita, uma vez que o banco não está obrigado a pagar o cheque, acrescentando aquele que; “ entendemos que, mesmo na falta de instruções do sacador, a recusa espontânea e por motu próprio do banco, podendo constituir um incumprimento contratual para com o cliente, encontra-se legalmente coberta pela previsão do art. 32º nº2 da Lei Uniforme do Cheque, pelo que o sacado não tem, nesse caso, qualquer responsabilidade perante o portador” - Cheque e Convenção de Cheque, pág. 705.
A recorrida invoca a instrução 25/2003. Hoje veja-se a instrução 3/2009 e seu anexo IV.
Ali se prevê expressamente, em sintonia com a interpretação que se fez do artigo 32º da LU, como causa de devolução dos cheques;
“ Quando a instituição de crédito entender recusar o pagamento do cheque:
- Não revogado pelo sacador e que tenha sido apresentado a pagamento depois de terminado o prazo referido no artigo 29º da Lei Uniforme;”
O Regulamento referido, constitui uma instrução tendo como destinatários as instituições bancárias e outras especialmente autorizadas a participar no SICOI. Visa o bom funcionamento do sistema bancário.
Refere-se no Acórdão de Uniformização nº 4/2008, de 28/02/2008 (DR I-A, de 04/04/08), que “não constituirá a instrução em causa fonte imediata de direito, a dever ser autonomamente apreciada pelo Tribunal”. Contudo pode relevar para efeito de apreciação da culpa (Acs. do STJ de 29/4/08, www.dgsi.pt, processo nº 07A4768 e de 23/2/2010, mesmo local, processo nº 3404/07.4TVLSB.L1.S1).
No entanto no que é pertinente para o caso presente a dita instrução está conforme à reta interpretação da LU, que flui igualmente do acórdão uniformizador n.º 4/2008.
Assim improcede a apelação.

DECISÃO:
Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação confirmando a decisão.
Custas pelo recorrente.

Guimarães, 17 de dezembro de 2013
Antero Veiga
Maria Luísa Ramos
Raquel Rego