Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | TOMÉ BRANCO | ||
Descritores: | ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA FALSO TESTEMUNHO | ||
Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 09/19/2011 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | CONCEDIDO PROVIMENTO | ||
Sumário: | Só quando de forma clara, inequívoca e incontroversa os factos que constam na acusação não constituem crime é que o Tribunal pode declarar a acusação manifestamente infundada e rejeitá-la com base no disposto na alínea d) do n.º3 do artigo 311.º do CPP. | ||
Decisão Texto Integral: | Após conferência, acordam no Tribunal da Relação de Guimarães: I) Nos autos de inquérito nº 715/10.5TABRG que correram termos nos serviços do Mº Pº do Tribunal Judicial da comarca de Braga, declarado encerrado o inquérito, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido RUI F..., com os demais sinais nos autos, imputando-lhe a prática dos seguintes factos: “No dia 03 de Outubro de 2008, o arguido foi inquirido na qualidade de testemunha, na secção B.I.C. - Droga da P.S.P. de Braga, no âmbito dos autos de inquérito com nº 15/08.OPEBRG, nos quais se investigavam crimes de tráfico de estupefacientes, alegadamente praticados por Alexandre M..., Maria M..., Romão M... e Rui M.... No depoimento que prestou, e após ter sido devidamente advertido de que deveria responder com verdade ao que lhe fosse perguntado, sob pena de incorrer em responsabilidade penal, o arguido referiu ter adquirido produto estupefaciente na residência de Alexandre, a um indivíduo de etnia cigana, familiar daquele, cuja identidade desconhecia. Prestadas as aludidas declarações, o arguido leu-as e assinou-as por as achar conforme. Com base em tais depoimentos, corroborados por demais meios de prova, foi assim deduzida acusação pública contra Alexandre M..., Maria M..., Romão M... e Rui M..., pela prática, cada um, de um crime de tráfico de estupefacientes. No dia 28 de Janeiro de 2010, o arguido foi inquirido na qualidade de testemunha, na sessão de audiência e julgamento realizada neste tribunal, no âmbito daqueles autos, relativamente aos mesmos factos. Durante a aludida audiência, e não obstante ter sido devidamente ajuramentado e advertido das consequências penais que resultariam da falsidade das suas respostas, o arguido afirmou ter adquirido produto estupefaciente a um individuo conhecido por "Speed", de raça branca, à porta da entrada do prédio onde residiam o Alexandre, a Susana, o Romão e oRui M..., negando qualquer envolvimento dos mesmos na prática dos factos de que vinham acusados. Instado quanto à veracidade dos depoimentos por si prestados no decurso da audiência e julgamento e em sede de inquérito, o arguido reiterou a versão dos factos ali apresentada. Em consequência do depoimento prestado pelo arguido na qualidade de testemunha em sede de julgamento, o Rui M... foi absolvido da prática do crime por que vinha acusado, e o Alexandre e o Romão M... condenados pela prática de crimes de tráfico de menor gravidade, porquanto não se logrou apurar a qual deles se adquiriu produto estupefaciente, resultando somente provado que se adquiria tal produto na residência daqueles. (prestou declarações contraditórias e que se excluem mutuamente) O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que prestando depoimentos contraditórios entre si, que se excluem mutuamente, beneficiava terceiros, com a consequente obstrução da acção da justiça. Ainda assim, pretendeu o arguido levar por diante tal conduta, apesar de advertido das consequências em que incorria com a adopção da mesma. Com a factualidade descrita, o arguido constituiu-se autor material, com dolo directo e na forma consumada, de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360º, nº 1 e 3, 14º e 26º, todos do Código Penal. Distribuídos que foram os autos ao 2º Juízo Criminal, foi então proferido despacho pelo Mmº Juiz com o seguinte teor: (transcrição) “O tribunal é competente. O Ministério Público dispõe de legitimidade para deduzir acusação. Não há nulidades, excepções ou questões prévias de que cumpra conhecer. * Encontra-se o arguido acusado da prática de um crime p. p. no art. 360.°, n°s 1 e 3, do Código Penal.Prescreve esta disposição legal que, quem, como testemunha (...) perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova, depoimento, relatório, informação ou tradução, prestar depoimento (...) falsos, é punido (...). Ora, da factualidade relatada na acusação resulta que o arguido, na qualidade de testemunha ajuramentada, e em dois momentos distintos de um mesmo processo penal, prestou depoimentos manifestamente contraditórios entre si. Contudo, para o preenchimento do elemento objectivo do tipo de ilícito de falsidade de testemunho, é fundamental a prova entre a palavra - ou seja, o depoimento prestado - e a verdade histórica, sem o que há apenas dois depoimentos divergentes mas não necessariamente contrários à verdade. Ora, a acusação não refere quais são os factos verdadeiros, o que é indispensável para que, em confronto com eles, se possa concluir que o depoimento do arguido (na qualidade de testemunha), numa ou em ambas as versões, foi falso (Nesse sentido cfr., entre outros, o Acórdão da Relação de Guimarães n° 840/08 de 29 de Junho, in www.dgsi.pt) Tem pois de se considerar que o circunstancialismo fáctico constante da acusação pública não é suficiente para preencher o elemento objectivo do crime de falsidade de testemunho de que o arguido foi acusado. Assim como também não resulta da acusação que o arguido, agindo intencionalmente, conhecia o contrário daquilo que declarou. Consequentemente, e em conformidade com o disposto no Art. 311, n° 2, al. a) e n° 3 al. d) do C. P. Penal, decido rejeitar a acusação. Notifique”. Desse despacho recorreu o Ministério Público, concluindo a sua motivação nos seguintes termos: (transcrição) “Na acusação deduzida nos autos encontram-se vertidos todos os factos que constituem os elementos essenciais do crime de falsidade de testemunho, porquanto preenche tal tipo de crime a testemunha que, sobre a mesma realidade, presta dois depoimentos antagónicos, ainda que não se apure qual deles é falso. Nos casos em que o arguido depõe de forma antagónica, por duas vezes, no mesmo processo, em fase de inquérito e na audiência de julgamento, sendo a divergência dos depoimentos de tal forma clara e evidente, deve dispensar-se a prova da verdade objectiva para efeitos de comprovação dos factos integradores do crime em apreço. Ainda que assim não se entenda, resulta claro que a M.Ma Juiz a quo perfilhou um teoria jurídica segundo a qual, para preenchimento do tipo previsto no art°360 do C.P., a falsidade da declaração se afere pela conformidade com o acontecimento real a que se reporta, correspondendo tal posição a um entendimento que não é unânime na jurisprudência (cfr. acórdãos da Relação de Guimarães de 29-06-2009 (processo 840/08.2TABRG.G1), da Relação de Évora de 15-04-2008 (processo n.° 2613/07.1.) e ac. da Relação do Porto de 30-01-2008 (processo n°712790)). 4- O despacho que rejeita a acusação que imputa ao arguido o crime de falsidade de testemunho por considerar que os factos não constituem crime, nos termos do art°311, n°2 al.a) e n°3 al.d) do C.P.P. não pode ter como fundamento a opção por um determinado entendimento jurisprudencial sobre os elementos do crime. 5 – A acusação só pode ser rejeitada quando for evidente que os factos nela descritos ainda que viessem a ser provados não preenchem qualquer tipo legal de crime, sendo que na acusação dos autos encontram-se vertidos todos os factos que constituem os elementos essenciais do crime de falsidade de testemunho, razão pela qual não podia o Tribunal rejeitar a mesma tendo violado o disposto nos art°360, n°1 e n°3 do C.P. e o art°311, n°2 al.a) e n°3 al.d) do C.P.P.» Termina requerendo a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que receba a acusação. *** Nesta instância a Exmª Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no qual defende a procedência do recurso.Foi dado cumprimento ao artº 417º, nº 2 do C.P.P. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. *** FundamentaçãoComo é sabido as conclusões da motivação constituem o resumo do pedido e, como tal é o teor de tais conclusões que constitui o âmbito do recurso (artº 412º, nº 1 do C.P.P.). In casu, a questão fundamental trazida à apreciação desta Relação é a de saber se a acusação contém uma narração de factos susceptível de integrar, ou não, o crime de falsidade de testemunho imputado ao arguido. Na hipótese negativa, justifica-se a rejeição da acusação por manifestamente infundada; se se concluir pela hipótese afirmativa, então, há que revogar a decisão recorrida, como pretende o recorrente. Posta a questão, vejamos. Do preceituado no artº 311º do C.P.P. resulta que, recebidos os autos no tribunal, sem que tenha havido lugar a instrução, e depois de se apreciar de nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação de mérito, o juiz deverá rejeitar a acusação se a considerar manifestamente infundada, não a receber se ela representar uma alteração substancial dos factos nos termos dos artºs 284º, nº 1 e 285º, nº 3 do C.P.P. ou despachar designando dia para julgamento, resolvidas as questões anteriores. O nº 3 do citado artº 311º do C.P.P., enuncia os casos em que se deve considerar manifestamente infundada a acusação deduzida. Um desses casos, é precisamente a circunstância de a acusação não conter a narração dos factos susceptíveis de constituírem crime. Será então que, in casu, o libelo acusatório descreve os factos e as circunstâncias que consubstanciam o crime do artº 360º, nºs 1 e 3 do C. Penal imputado ao arguido Rui Filipe, como defende o recorrente/Mº Pº? Pois bem, a resposta a esta questão não pode deixar de ser afirmativa. Na verdade, analisando o caso em concreto verifica-se, desde logo que o arguido prestou depoimentos claramente contraditórios, por duas vezes, no mesmo processo, em fase de inquérito e na audiência de julgamento. É certo que o libelo acusatório não refere expressamente quais os factos verdadeiros, como se diz no despacho impugnado, mas não é menos certo que o contexto em que os depoimentos foram prestados permite concluir que o arguido agiu intencionalmente, visto que tinha conhecimento directo dos factos sobre que depôs, isto é das concretas vendas de substâncias estupefacientes a ou aos arguidos. De todo o modo, sufragamos também o entendimento expresso por Vinício Ribeiro, em Código de Processo Penal, Notas e Comentários, 644, que "os casos integrantes da figura da acusação manifestamente infundada devem ser claros e evidentes. «4.2 – Conforme jurisprudência assente, manifestamente infundada é a acusação que, por forma clara e evidente, é desprovida de fundamento, seja por ausência de factos que a suportem, por a insuficiência de indícios ser manifesta e ostensiva, no sentido de inequívoca, indiscutível, fora de toda a dúvida séria, seja porque os factos não são subsumíveis a qualquer norma jurídico-penal, constituindo a designação de julgamento flagrante violência e injustiça para o arguido, em clara violação dos princípios constitucionais.(transcrição do ac. RL de 16.05.2006, Proc. 836/2006-5, Rel. Margarida Blasco). Se a questão focada na acusação for juridicamente controversa, o juiz no despacho do presente artigo não pode considerar a mesma (acusação) manifestamente improcedente. Assim, por exemplo, o juiz não pode rejeitar a acusação com base no disposto na al.d) do n°3 (Se os factos não constituírem crime) se a questão for discutível. Só o poderá fazer se for inequívoco e incontroverso que os factos não constituem crime." (negrito nosso) Do exposto se conclui, sem necessidade de maiores considerações, que o Tribunal recorrido não decidiu bem ao rejeitar a acusação do Mº Pº, por considerá-la manifestamente infundada, uma vez que tal peça processual não é de forma clara e evidente desprovida de fundamento, por ausência de factos que a suportem a imputada conduta delituosa do arguido. Por outro lado há ainda que ter em consideração na avaliação da questão em apreço que o juiz não pode rejeitar a acusação com base no disposto na al. d) do n°3 (Se os factos não constituírem crime) se a questão for discutível. Só o poderá fazer se for inequívoco e incontroverso que os factos não constituem crime. Daí que o esforço argumentativo do recorrente terá de lograr procedência. III) Em conformidade com o exposto, acorda-se conceder provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que receba a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido RUI F....DECISÃO Sem tributação. Guimarães, 11 de Julho de 2011 |