Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
697/16.0JABRG.G1
Relator: FÁTIMA FURTADO
Descritores: CRIME DE HOMICÍDIO
CONTEXTO DE DESESPERO
CULPA DIMINUÍDA
PENA
ARTºS 131º
133º E 72º DO CP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) Sendo a génese do estado emocional vivenciado pela arguida a degradação da sua relação conjugal, à qual era totalmente alheia o seu filho, e a morte deste percecionada como condição para que ela pudesse concretizar o suicídio, por lhe ser insuportável que o filho ficasse em sofrimento pela sua morte, a arguida agiu num contexto de desespero.

II) A morte do filho, embora determinada pelo estado de desespero da arguida, não surge como única forma de evitar o futuro sofrimento daquele, sendo exigível à recorrente, suposta a sua fidelidade ao direito, que assumisse outro comportamento.

III) Nestas circunstâncias, o estado de desespero da arguida diminui-lhe a culpa, mas não lha diminuiu «sensivelmente», ao ponto de se vislumbrar a exigibilidade diminuída de comportamento diferente, ou seja, a culpa consideravelmente diminuída que é pressuposta pelo tipo de homicídio privilegiado do artigo 133.º do Código Penal.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães.
(Secção penal)

Relatora: Fátima Furtado; adjunta: Laura Maurício.

I. RELATÓRIO

No processo comum colectivo n.º 697/16.0JABRG, do juízo central criminal de Braga, 2ª secção, da comarca de Braga, foi submetida a julgamento a arguida Maria, com os demais sinais dos autos.

O acórdão, proferido a 15 de março de 2017 e depositado no mesmo dia, tem o seguinte dispositivo:

«Pelo exposto, o Tribunal Coletivo decide julgar a acusação deduzida pelo Ministério Público parcialmente procedente, por provada, e, em consequência:

. Absolve a arguida Maria da prática, como autora material, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos art.132º, nºs 1 e 2, al. a), do Código Penal; e
. Condena a arguida Maria pela prática, como autora material, de um crime de homicídio, previsto e punível pelo art. 131º, do Código Penal, na pena de prisão de 10 (dez) anos, ordenando-se o seu internamento em estabelecimento destinado a inimputáveis pelo tempo correspondente a esta pena e enquanto durar a causa determinante deste internamento – o regime dos estabelecimentos comuns se mostrar prejudicial à condenada face à anomalia psíquica de que padece.
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O Tribunal condena, ainda, a arguida, a título de custas judiciais, de 3 UC`s de taxa de justiça e dos encargos processuais (art. 8º, nº 9, do RCP e 513º, nºs 1, 2 e 3 e 514º, nºs 1 e do C.P.P).
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Medida de Coação:
(…)
Após trânsito:

. Remeta boletim à D.S.I.C;
. Declaram-se perdidas a favor do Estado as peças de roupa apreendidas a fls. 68 e 131 dos autos, uma vez que a arguida não pretende a sua restituição, tal como decorre da ata da audiência de julgamento do dia 07 de março de 2017;
. Considerando a natureza concreta dos factos provados e personalidade da arguida, proceda-se à recolha de amostras à arguida, nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 8º, nº 2 e 18º, nº 3, da Lei nº 5/2008, de 12 de fevereiro, devendo a entidade responsável pela recolha observar o prescrito nos arts. 9º e 10º deste diploma legal.
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Deposite-se – art. 372º, nº 5, do C.P.P.»
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Inconformada, a arguida interpôs recurso, apresentando a competente motivação que remata com as seguintes conclusões:

1. «Após o nascimento do primeiro filho da arguida, o marido desta afastou-se do contexto familiar e o relacionamento entre o casal deteriorou-se, sendo frequentes os episódios de agressão física e verbal;
2. O marido da arguida, tinha um comportamento agressivo para com o filho mais velho do casal, vitima do ato ilícito da arguida, causando-lhe medo e insegurança;
3. Esta vivência provocou na recorrente um estado depressivo grave;
4. Tendo o mesmo se agudizado, desde finais de Maio de 2016, data em que a recorrente descobriu o relacionamento extra conjugal do marido;
5. O que originou na recorrente um sentimento de desesperança, tristeza, humilhação e perturbação;
6. Que com o seu acumular, geraram um conflito interior inalterável, que durava há já bastante tempo (cfr pontos 4º, 5º, 6º e 7º da factualidade provada), que a levou à prática dos factos ilícitos.
7. A recorrente não conseguiu resolver esse conflito interior, o que a levou a uma perda progressiva de forças, à origem de um estado depressivo grave, que a dominou e, consequentemente, condicionou o seu pensamento;
8. A acumulação de tensão que se arrastou no tempo, agravou o seu estado de desespero e impeliu a arguida para um beco sem saída, deixando de acreditar e de ter esperança.
9. A recorrente foi suportando esse desespero, derivado ao estado depressivo e ao sofrimento que se encontrava, desencadeado pelo quadro de violência que vivenciava na sua pessoa e do seu filho, pela infidelidade do marido, e pela humilhação que sentia, e ao ver limitarem-se as suas capacidades de resistir mais a toda essa situação e tenta matar-se como forma de se libertar desse estado.
10. O que foi fortemente denunciado pela recorrente, através dos manuscritos por si subscritos, e que foram encontrados em sua casa e na caixa de correio dos seus sogros.
11. Ao procurar a morte, a arguida levou consigo o seu filho Manuel, para lhe poupar sofrimentos, pois como resultou provado “ o cônjuge direcionava, de modo reiterado, uma conduta agressiva ao filho mais velho, causando neste sentimentos de medo e insegurança…”
12. Apesar da manifesta perturbação que vivenciava, a arguida ainda teve discernimento de procurar ajuda junto da sua médica de família;
13. Foi medicada, sendo que, os efeitos secundários desta medicação, poderiam, como deram, dar origem a dores de cabeça e alguma confusão mental, o que aliás a recorrente referiu sentir.
14. Pese embora, a prontidão da resposta ao desespero da recorrente, o tratamento farmacológico não foi suficiente para atenuar a sua sintomatologia, e a sua expectável demora na produção dos efeitos, foi para a recorrente o agravamento da sua sintomatologia e, consequentemente, a pressão psicológica apresentou-lhe o crime como a única saída possível para a situação em que se encontrava.
15. Crime este que acaba por praticar, porque a sua intenção, de se matar, não se concretiza.
16. As testemunhas Dr.ª BB, CC, DD, EE e FF, foram peremptórias ao afirmar a relação estreita, de cumplicidade e dependência que existia entre a recorrente e o filho mais velho;
17. A recorrente tinha como intenção pôr termo à sua própria vida e à do seu filho, na convicção de que se este cá ficasse, ficaria desprotegido, e à mercê do pai, cujo relacionamento não era saudável.
18. Ou seja, a sua decisão de “levar consigo”, o filho, foi de apenas e só, o proteger. Quer do sofrimento da ausência da mãe, quer do comportamento do pai.
19. A recorrente, jamais, agiu movida por qualquer sentimento de raiva ou de vingança, mas sim, pelo quadro depressivo que a condicionava, na sua tomada de decisões e nos comportamentos de que adotou.
20. A morte foi o fim de linha, foi o eclodir de uma situação que foi lentamente cercando e aprisionando a arguida, tirando-lhe o necessário e imprescindível discernimento para uma adequada ponderação da situação por si vivida.
21. A solução que a recorrente encontrou, neste manifesto contexto de desespero, condicionou-a, não se sentindo a recorrente capaz de enfrentar essa situação.
22. A recorrente matou para se libertar de todo o desespero e sofrimento que a cercou, pondo, dessa forma, fim a todo o quadro depressivo que foi acometida.
23. A ideação suicida da recorrente decorre do quadro depressivo que a mesma padecia, e que dado a sua gravidade, acabou por condicionar as suas atitudes e condutas, apesar de a mesma ter consciência dos comportamentos, atitudes, responsabilidades e consequências, mas a sua tomada de decisão estava condicionada de tal forma que não conseguiu tomar outra, senão a do facto ilícito.
24. A culpa da recorrente está fortemente diminuída.
25. À data da prática do facto ilícito a recorrente apresentava uma capacidade volitiva diminuída, o que a impediu de uma tomada de decisão coerente, o que de resto vem reforçar, a considerável diminuição da sua culpa.
26. Da análise da prova levada a cabo pelo Tribunal “a quo” mostra-se patente que os factos praticados pela recorrente foram determinados por uma compreensível emoção violenta, e por ter agido em nítido desespero, acreditando que lhe cabia a si a proteção do menor, atirou-se da ponte com o mesmo.
27. Assim, a compreensível emoção violenta, o desespero que a recorrente estava a viver naquele momento, deve privilegiar a sua atuação, pois diminuiu de forma sensível a exigibilidade de outro comportamento;
28. A sua conduta enquadra-se, assim, no tipo p. e p. do artigo 133º do Código Penal - Homicídio privilegiado;
29. A recorrente foi colaborante, e prestou um esclarecimento cabal sobre os factos, e desse modo evidenciou uma personalidade que revela que futuramente se pautará por condutas lícitas; é por todos, respeitada pessoal e profissionalmente.
30. Assim, e por tudo o acima exposto, o qual se dá por reproduzido, existe no douto acórdão ora recorrido, uma contradição insanável entre a fundamentação propriamente dita e a decisão. (alínea b) do nº 2 do artigo 410º CPP).
31. Existe igualmente no acórdão recorrido, erro notório na apreciação da prova, quer da prova testemunhal, apresentada em audiência de julgamento, quer da prova documental, junta aos autos (Alínea c) do nº2 do artigo 410 CPP), as quais devidamente apreciadas pelo Tribunal “a quo”, levariam ao preenchimento dos elementos objetivos do tipo de crime previsto e punido pelo artigo 133º do C.P. – Homicídio Privilegiado.
32. Provas essas, que não foram devidamente apreciadas e muito menos foi fundamentada a sua não apreciação. (aliena c) do nº2 artigo 410º).
33. Uma vez que se nos afigura ser justo enquadrar o homicídio em questão na previsão do artigo 133º do Código Penal, como sendo um homicídio privilegiado e sendo, o mesmo, punível com uma pena de prisão de 1 a 5 anos, a mesma deverá ser graduada nessa moldura.
34. Ponderado todo o circunstancialismo de facto assente como provado pelo Tribunal “a quo”, nomeadamente:

- o grau da ilicitude dos factos é elevada, atendendo ao modo de execução dos mesmos – o salto de uma ponte para o rio, com uma criança de seis anos de idade, que não sabia nadar e a quem a arguida ministrou previamente fármacos contendo benzodiazepinas, consubstancia um meio garantido de se alcançar a morte deste – e à relação de parentesco existente entre a arguida e a vítima;
- a arguida representou os factos que preenchem o tipo do crime de homicídio, agiu com a intenção de os realizar, tendo atuado com dolo direto;
- agiu com o intuito de proteger a vítima, não tendo conseguido, no quadro depressivo que vivenciava, adotar outra atitude, tendo-se convencido que o filho não suportaria a sua ausência;
- a arguida padece de depressão grave sem sintomas psicóticos, com componente reativo vivencial que perpetua o humor depressivo e com componente dissociativo traduzido no evitar trazer à consciência os factos traumáticos, apesar de ter consciência dos mesmos; apresenta fragilidade emocional e dificuldade em gerir as contrariedades afetivas, com riscos de ideação suicida, que impõem uma vigilância permanente e apertada por parte de técnicos de saúde, com acompanhamento psiquiátrico e psicológico e ministração de medicação, o que tem vindo a suceder;
- o seu percurso de vida é caraterizado pela integração familiar e social, tendo mantido sempre hábitos de trabalho;
- não tem antecedentes criminais;
- cumpre com rigor as injunções a que está obrigada no âmbito da medida de coação de obrigação de permanência na Casa de Saúde X, sita em …, Braga, com vigilância eletrónica, desde 14 de julho de 2016, onde se encontra internada desde o dia 18 de junho de 2016;
- a arguida vivencia o presente processo de forma ansiosa e manifesta dificuldades em projetar a sua vida num futuro próximo, enquadrando o facto ilícito cometido como um ato inexorável e irreversível com vista ao termo de um processo de sofrimento perpetrado contra si e o seu filho mais velho, por parte do cônjuge, a par de um sentimento de isolamento e desorientação pessoal, agravado pela vergonha sentida face à falência da relação conjugal;
- beneficia do apoio e da solidariedade da família (pais e irmãos);
- a arguida manifestou arrependimento sincero perante os factos, declarando que sofre diariamente;
- as exigências de prevenção geral, apesar da forte repercussão e alarme social, causadoras de intranquilidade e de insegurança na comunidade em geral que suscitam os crimes contra a vida, não são das mais prementes, considerando o circunstancialismo em que foi cometido o ilícito criminal, tanto mais que no meio de residência da arguida, não obstante a situação ser conhecida e ter sido colhida com surpresa, não se verificam sentimentos de rejeição expressos à sua presença.”
35. - Levam a que tudo visto e ponderado se tenha por justa e adequada a fixação de uma pena de prisão no seu mínimo, mantendo-se contudo o internamento da arguida em estabelecimento destinado a inimputáveis – Unidade de Saúde mental não prisional, pelo tempo correspondente à duração da pena de prisão que lhe vier a ser aplicada e enquanto o seu estado de saúde não se coadunar ao regime dos estabelecimentos comuns, atendendo a toda a prova produzida de que a arguida não reúne condições para estar num estabelecimento prisional comum uma vez que requer vigilância e acompanhamento médico permanente e apertado.
36. - Caso assim não se entenda, a pena de prisão de 10 anos aplicada à arguida é exagerada e desajustada face ao quadro de agravantes e de atenuantes dadas como provadas. Na determinação concreta da pena o Tribunal deverá atender a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele (artigo 71º nº2 CP).
37. – Assim se conclui ser a decisão ora recorrida ilegal, por violação dos preceitos contidos nos artigos 410 nº2, alíneas b) e c) do CPP; 133º do CP, e artigos 70º, 71º e 72º do CP.

Por todo o exposto,

Vem a recorrente mui respeitosamente requer a Vªs Exªs se dignem dar provimento ao presente recurso, devendo ser a recorrente:

a) Condenada por homicídio privilegiado por estarem preenchidos os pressupostos objetivos para a aplicação do tipificado no artigo 133º do CP e, consequentemente, ser aplicada a medida da pena no seu mínimo, e mantendo-se o cumprimento da mesma num estabelecimento destinado a inimputáveis – Unidade de Saúde mental não prisional;
b) Caso assim não se entenda, o que só por mera hipótese académica se coloca, e sem prescindir, deve ser revista a medida da pena reduzindo-a para valores mínimos aplicados ao tipo de crime a que foi a recorrente condenada, e mantendo-se o cumprimento da mesma num estabelecimento destinado a inimputáveis – Unidade de Saúde mental não prisional»
*
O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação de Guimarães, com o regime e efeito próprios.
O Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal a quo respondeu, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.

Nesta Relação, o Exmo. Senhor Procurador-Geral adjunto emitiu douto e fundamentado parecer, no sentido do provimento do recurso, com o enquadramento da conduta da recorrente no privilegiamento previsto no artigo 133.º do Código Penal, baseado no desespero potenciado pela depressão grave, com redução da pena, a dosear entre os quatro e os cinco anos de prisão. Ou, para a hipótese de assim não se entender, convocando a atenuação especial da pena prevista no artigo 72.º do Código Penal, face à diminuição sensível da culpa da recorrente e todo um quadro de confissão, arrependimento sincero e assunção íntima do castigo perpétuo, sendo certo que ficou igualmente provada a ausência de sentimentos de rejeição expressos à presença da arguida no meio de residência.
Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, na sequência do que a arguida veio responder, mostrando a sua concordância com o parecer.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO

Conforme é jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer(1).
*
1. Questões a decidir

Face às conclusões extraídas pela recorrente da motivação apresentada, as questões a decidir reportam-se aos seguintes temas:
. vícios decisórios da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e do erro notório na apreciação da prova;
. subsunção jurídico-penal dos factos: crime de homicídio simples ou privilegiado.
. quantum da pena.
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2. Factos Provados

Segue-se a enumeração dos factos provados, não provados e respetiva motivação, constantes do acórdão recorrido.
«Da instrução e discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:

1.º Desde data não concretamente apurada de 2007, a arguida Maria e Manuel viviam maritalmente, tendo contraído casamento no dia 05 de setembro de 2015.
2.º Fixaram residência na rua …, em Barcelos.
3.º Deste relacionamento nasceram dois filhos: António, nascido a 11 de julho de 2009, e Joaquim, nascido a 03 de agosto de 2014.
4.º Após o nascimento do primeiro filho, o Manuel afastou-se do contexto familiar e o relacionamento entre o casal deteriorou-se.
5.º O Manuel repreendia frequentemente o filho mais velho, elevando o tom de voz, causando-lhe medo e insegurança.
6.º Desde a última semana de maio de 2016, a arguida sentia-se triste, desanimada, ansiosa, nervosa, sem apetite, e sofria de insónias, desconfiando que o marido mantinha um relacionamento extraconjugal.
7.º No dia 06 de junho de 2016, a arguida, manifestamente ansiosa e perturbada, contactou a sua médica de família do Centro de Saúde, pedindo-lhe uma consulta urgente.
8.º Nessa mesma data, a arguida foi consultada no Centro de Saúde, tendo-lhe sido prescrito pela médica de família um antidepressivo – fluoxetina (20 mg de manhã) - e um ansiolítico – diazepam (10mg à noite).
9.º A arguida iniciou a medicação prescrita, sem supervisão de terceiros, não tendo sentido melhoras do seu estado.
10.º No dia 10 de junho de 2016, inconformada com a sua situação familiar, a arguida decidiu colocar termo à sua própria vida e à do filho António, por se ter convencido que este iria sofrer muito com a sua ausência.
11.º Assim, deslocou-se, nessa data, à Ponte Y, com o filho António, com a ideia de se atirar juntamente com este ao rio, sendo nessa altura impedida de concretizar os seus intentos por familiares.
12.º No dia 17 de junho de 2016, a hora não concretamente determinada, a arguida, pelo seu próprio punho, escreveu num papel de tamanho aproximado A6 “não aguento sofrer mais Toma conta do Pequeno e António vai comigo Ele sem mim iria sofrer muito Assim é o melhor. Se não conseguires ficar com o menino entrega à tua irmã”.
13.º E colocou-o sobre a cama do quarto do casal da sua residência, em cima do seu vestido de casamento; por cima do papel manuscrito, a arguida colocou a sua aliança de casamento e ao lado uma caixa com os sapatos que usara no dia do casamento.
14.º A arguida escreveu, num outro papel de tamanho aproximado A6, dos dois lados, pelo seu próprio punho o seguinte: “So pesso desculpa por o que fiz o meu sofrimento é tão grande que não aguentava mais. O vosso filho se meteu com uma colega de trabalho. Eu não merecia isso. Nos nos chatiavamos às vezes mas não era motivo para ele me fazer isso. Se avia alguém que não merecia era eu dava tudo para casa. Levei o António comigo, foi o melhor ele ia sofrer muito sem mim” e “se o vosso filho não conseguir ficar com o Joaquim. Por favor a PP Vossa filha que fique com ele. Com ela ele vai ficar bem. adeus para sempre. Não culpem o vosso filho. Eu é que não aguentava tanto sofrimento…”.
15.º Naquele mesmo dia, cerca das 12h45m, a arguida deslocou-se à ponte rodoviária sobre o rio Cávado que liga Barcelos a Rio Covo, levando consigo o seu filho António, a quem ministrou fármaco contendo benzodiazepinas, sempre convencida que este não suportaria a sua ausência, com o intuito de se lançar do cimo dessa ponte ao rio com este.
16.º Aí chegada, telefonou ao seu marido.
17.º Ato contínuo desligou o telemóvel, dirigiu-se ao gradeamento da ponte, do lado poente, sensivelmente a meio da mesma, e, com o seu filho António ao colo, galgou esse gradeamento ficando de costas para o rio.
18.º Nessa posição, sempre com o filho António ao colo, e apesar de entretanto se ter aproximado uma pessoa, a arguida atirou-se do cimo da ponte, caindo ambos ao rio.
19.º O menor António acabou por se afundar e morrer afogado e a arguida foi resgatada do rio com vida.
20.º A arguida tinha conhecimento que não podia provocar a morte do filho António da forma que o fez, mas não obstante tal cognição, querendo pôr termo à sua própria vida e não vislumbrando, no quadro depressivo que vivenciava, outra solução para o destino do descendente que queria proteger, fê-lo, voluntariamente, atirando-se do cimo da ponte para o rio, bem sabendo que dada a idade daquele o mesmo não sabia nadar e morreria afogado, como efetivamente veio a acontecer.
21.º A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Mais se provou:

22.º A arguida nasceu em Barcelos, no seio de um agregado composto pelos pais e cinco irmãos.
Os rendimentos do agregado familiar provinham dos salários dos progenitores e satisfaziam as respetivas necessidades básicas.
A arguida, demonstrando desinteresse pelos conteúdos escolares, abandonou o sistema de ensino após conclusão do 6º ano, contrariando a orientação parental.
Aos 13 anos, ingressou no mercado de trabalho, passando a laborar numa empresa têxtil local, exercendo funções adequadas à sua idade, aí se mantendo até aos 17 anos.
Nesta altura, transitou de entidade patronal, no mesmo ramo de atividade, que interrompeu após cerca de 7 anos, numa tentativa gorada e fugaz de emigração para Inglaterra.
Após esta experiência, passou a trabalhar como empregada de balcão numa pastelaria local, onde se manteve até à instauração do presente processo.
O regresso ao ensino ocorreu na idade adulta, com a frequência de um centro local de “novas oportunidades”, para obtenção de equivalência ao 9º ano de escolaridade.

A arguida contraiu um primeiro casamento aos 19 anos, sem descendentes, dissolvido pelo divórcio ao fim de 08 anos, caraterizado pela conflitualidade e assente em disparidades entre os cônjuges.

Decorrido cerca de 01 ano, em 2007, encetou relacionamento afetivo com o atual cônjuge, com união de facto até 2015, ano em que contraíram matrimónio e batizaram os dois filhos do casal, entretanto nascidos.
Numa fase inicial, o relacionamento afetivo entre ambos era estável.
Após o nascimento do filho mais velho, iniciaram-se os conflitos entre o casal, com o afastamento do cônjuge da dinâmica familiar e consequente progressiva deterioração relacional.
O cônjuge direcionava, de modo reiterado, uma conduta agressiva ao filho mais velho, causando neste sentimentos de medo e insegurança, o que não se verificava com o filho mais novo.
A arguida foi sempre dedicada aos filhos, revelando-se diligente nos cuidados que lhes dispensava e demonstrando afetividade e amor.
À data dos factos, a arguida integrava o seu agregado familiar constituído pelo cônjuge e os filhos, então, de 06 e 02 anos de idade.
Em termos económicos, os rendimentos provinham da atividade que a arguida exercia como empregada de balcão, auferindo cerca de € 630,00 mensais, bem como da atividade exercida pelo cônjuge, na área da pastelaria, com um vencimento mensal de cerca de € 700,00.
O casal residia numa habitação adquirida com recurso a crédito bancário, com uma prestação de € 200,00 mensais, à qual acrescia a prestação mensal relativa ao crédito para aquisição de automóvel, no valor de € 120,00, e a mensalidade do infantário do filho mais novo, no valor aproximado de € 55,00.
O relacionamento intrafamiliar da família alargada – família de origem da arguida e do cônjuge- caracterizou-se pela interajuda funcional na gestão do quotidiano das crianças.
Durante o ano de 2013, a arguida sofreu uma depressão que teve a duração aproximada de seis meses.
Presentemente, a arguida padece de depressão grave sem sintomas psicóticos, com componente reativo vivencial que perpetua o humor depressivo e com componente dissociativo traduzido no evitar de trazer à consciência os factos traumáticos, apesar de ter consciência dos mesmos.
Apresenta fragilidade emocional e dificuldade em gerir as contrariedades afetivas, com riscos de ideação suicida, que impõem uma vigilância permanente e apertada por parte de técnicos de saúde, com acompanhamento psiquiátrico e psicológico e ministração de medicação.
Cumpre com rigor as injunções a que está obrigada no âmbito da medida de coação de obrigação de permanência na Casa de Saúde X, sita em …, Braga, com vigilância eletrónica, desde 15 de julho de 2016, onde se encontra internada na unidade de doentes agudos, beneficiando de acompanhamento clínico ao nível da psicologia e psiquiatria, com terapêutica medicamentosa específica.
A arguida vivencia o presente processo de forma ansiosa e manifesta dificuldades em projetar a sua vida num futuro próximo, atendendo à consciência face à complexidade da sua atual situação processual, apontando mesmo assim a possibilidade de retomar a anterior atividade laboral.
Em abstrato, no que concerne à natureza dos factos subjacentes ao processo, a arguida revela-se inteirada do valor jurídico em causa e do respetivo dano.
Face ao facto que lhe é imputado, a arguida enquadra-o como um ato inexorável e irreversível com vista ao termo de um processo de sofrimento perpetrado contra si e o seu filho mais velho, por parte do cônjuge, a par de um sentimento de isolamento e desorientação pessoal, agravado pela vergonha sentida face à falência da relação conjugal.
Encontra-se em curso o processo de divórcio entre a arguida e o cônjuge, bem como o processo de regulação das responsabilidades parentais relativas ao filho mais novo do casal.
Esta situação é vivenciada pela arguida com angústia, designadamente o distanciamento face ao filho sobrevivo, que se encontra entregue aos cuidados do pai e família paterna, mantendo um relacionamento regular com a família materna.
A arguida beneficia do apoio da família (pais e irmãos), a qual lhe presta solidariedade e apoio, apesar da consternação vivenciada com o presente processo.
A quadra natalícia e o período do ano novo foram passados juntos dos familiares de origem, sem registo de incidentes.
No meio de residência da arguida, a situação é conhecida, tendo sido colhida com surpresa, embora sem sentimentos de rejeição expressos à sua presença.
23.º A arguida manifestou arrependimento sincero perante os factos, declarando que sofre diariamente.
24.º A arguida não tem antecedentes criminais.
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ii. Da instrução e discussão da causa resultaram não provados os seguintes factos, com interesse para a boa decisão da causa:

25.º A arguida dirigiu-se para a ponte rodoviária sobre o rio Cávado ao volante do veículo de marca “Renault”, modelo “Megane”, matricula QQ, da sua propriedade
26.º No telefonema referido em 16, a arguida disse ao seu cônjuge, para além do mais, “não ficas comigo mas vais ficar com remorsos para a tua vida toda”.
27.º A arguida persistiu na ideia de se suicidar e tirar também a vida ao seu filho, pelo menos, pelo período de cerca de uma semana.
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iii. Motivação de facto.

No apuramento da matéria de facto julgada como provada e não provada, o Tribunal formou a sua convicção com base na valoração conjunta e crítica das declarações da arguida, dos depoimentos da perita médica subscritora do relatório de exame médico-legal psiquiátrico de fls. 403/406 e das testemunhas inquiridas e da prova documental a seguir indicada:
. Informação de serviço de fls. 20 a 31 da PJ (relativa à notícia do crime, diligências encetadas, identificação da arguida e da vítima e apreensão de objetos); relatório de exame ao local do crime e de recolha de provas de fls. 32 a 43; print de fichas de identificação civil da arguida, da vítima e do cônjuge, Manuel de fls. 44 a 47; ficha do registo automóvel relativo ao veículo QQ, propriedade da arguida, de fls. 48 a 49; relatos de diligência externa de fls. 50/51 (recolha de informação quanto ao estado de saúde da arguida no Hospital) e 54/55 (deslocação à casa de residência da arguida); auto de apreensão de objetos de fls. 68 a 69; informação de serviço da Polícia Judiciária de fls. 75 a 80 (relativo às diligências realizadas na sequência da localização do cadáver da vítima); fotografias da vítima – cadáver- de fls. 81/82; fotografia do local onde foi encontrado o corpo da vítima de fls. 84; relato de diligência externa de fls. 85 a 86 (reportando-se ao acompanhamento da evolução clinica da arguida); cotas de fls. 87, 88, 113, 144 e 157 (todas relativas ao acompanhamento da evolução do estado de saúde da arguida); auto de notícia de fls. 90 a 93; auto de verificação de óbito de fls. 94; cota de fls. 114 (relativa a informações obtidas a propósito da autópsia do cadáver da vítima); relato de diligência externa de fls. 129/130 (recolha das peças de roupa que a arguida vestia quando foi resgatada do rio e deslocações ao supermercado A e Café I, Barcelos, com vista a obtenção de imagens dos respetivos sistemas de videovigilância); auto de apreensão de objetos de fls. 131; reportagem fotográfica de fls. 134 a 136 (relativa à diligência da apreensão das peças de roupa que a arguida vestia quando foi resgatada do rio); auto de exame direto de fls. 145 a 146 relativo aos bilhetes manuscritos pela arguida; cota de fls. 151 (relativa à obtenção de imagens do sistema de videovigilância do supermercado A e entrega de talão de caixa referente aos produtos adquiridos pela arguida no dia 17 de junho de 2016); cópia do talão de compra e respetiva impressão informática de fls. 152; informação dos bombeiros de fls. 153 a 156; auto de visionamento de registo de imagens de fls. 158 a 168, obtidas pelas câmaras de videovigilância instaladas na loja pertencente à cadeia de supermercados “A”; registo das mensagens de telemóvel trocadas entre a arguida e o irmão DD constantes no telemóvel deste de fls. 319; assentos de casamento da arguida de fls. 407; assentos de nascimento da vítima e do irmão Joaquim de fls. 408/409 e 411, respetivamente; informação Telecomunicações, SA de fls. 461/462, relativa ao número de telemóvel 9…; certificado de registo criminal de fls. 495; registo clínico de consulta da arguida no Centro de Saúde de fls. 578/579; e do relatório social de fls. 599/601.
O Tribunal tomou, ainda, em consideração a prova pericial a seguir indicada:

. Relatório de autópsia médico-legal de fls. 379 a 384 e 387/389 – do qual se retira que o exame toxicológico efetuado ao sangue da vítima confirmou a presença de benzodiazepinas; relatório de exame químico toxicológico de fls. 392 a 394; e relatório de exame médico-legal psiquiátrico de fls. 402 a 406.

Particularizando:

A arguida prestou declarações na audiência de julgamento, adotando uma atitude de colaboração com a ação da justiça, procurando esclarecer de forma objetiva e serena os factos traumáticos ocorridos no dia 17 de junho de 2016. O seu depoimento, acompanhado frequentemente por lágrimas silenciosas que escorreram no seu rosto, demonstrou claramente a fragilidade emocional que vive presentemente. Respondeu a todas as perguntas colocadas pelo Tribunal, embora tenha manifestado falta de memória quanto aos acontecimentos que tiveram lugar na ponte rodoviária sobre o rio Cávado na data fatídica em que ocorreu a morte do seu filho mais velho – esta falta de memória, explicada em audiência de julgamento quer pela perita médica subscritora do relatório médico-legal psiquiátrico de fls. 402/406, Dr.ª AC, quer pela testemunha Dr. JD, médico psiquiatra que acompanha a arguida na Casa de Saúde X, assenta na depressão grave de que padece, com componente dissociativa traduzida no evitar trazer à consciência os factos traumáticos. Apesar desta falha de memória, a arguida não recusou ter praticado os factos que lhe são imputados, tendo efetuado uma análise dos motivos que terão estado na origem do seu cometimento, manifestando o seu sincero arrependimento, concluindo que “agora sofre todos os dias”.
Assim, a arguida confirmou o ano em que iniciou a sua união de facto com o Manuel, o local onde fixaram a sua residência, a data do seu casamento, bem como as datas de nascimento dos dois filhos. Descreveu que a relação afetiva estável que mantiveram nos primeiros tempos deteriorou-se após o nascimento do filho mais velho, com um distanciamento do companheiro do contexto familiar - relatou inclusivamente episódios de agressão física e verbal que ocorreriam como alguma frequência desde essa data, dos quais apenas um terá contado à sogra (este relato foi confirmado pela testemunha CC, sua cunhada, a qual declarou que há cerca de 4/5 anos a mãe transmitiu-lhe que a arguida se tinha queixado que o marido a tinha agredido fisicamente; neste sentido, o relatório social junto aos autos também inclui a referência a este episódio que terá sido assumido pelo Manuel; também os irmãos da arguida, as testemunhas DD e EE transmitiram ao Tribunal que durante os almoços que tinham lugar ao fim de semana em casa da mãe, presenciaram algumas situações que em o Manuel se exaltava com a arguida, elevando o tom de voz). Por outro lado, a arguida descreveu um comportamento agressivo do Manuel para com o filho mais velho, que não se verificava relativamente ao filho mais novo, e que levava aquele a temer o pai – a arguida afirmou que o filho Manuel pediu-lhe algumas vezes para “arranjar outro pai” ou para fechar a porta de casa, quando o pai saía, de modo a impedir o seu regresso; o temor deste filho face ao pai foi igualmente testemunhado de forma credível pelos irmãos da arguida – DD e EE – que, reportando-se a situações que presenciaram durante as refeições ao fim de semana em casa da mãe, afirmaram que o Manuel exaltava-se muitas vezes com o filho, elevando o tom de voz e levantando a mão, tendo a testemunha DD concluído que essa era a forma que o Manuel encontrava para educar o filho. Face ao ambiente que vivenciava em casa com o companheiro, a arguida declarou que “se agarrou aos filhos” – esta relação estreita entre a arguida e os filhos, caraterizada por um afeto mútuo, foi corroborada pelas testemunhas CC, cunhada, DD e EE, irmãos, BB, médica de família, e FF, amiga, vizinha e colega de trabalho. A suspeita de um relacionamento extraconjugal do marido com uma colega de trabalho – a existência desta suspeita foi confirmada pela testemunha DD, o qual confirmou que a arguida confidenciou-lhe essa desconfiança, pedindo-lhe inclusivamente para que efetuasse uns telefonemas com vista a obter certezas; neste sentido, veja-se o registo das mensagens trocadas entre a arguida e o seu irmão no dia 15 de junho de 2016 (cfr. fls. 319) – durante o ano de 2016, esteve na origem da tristeza, do desânimo, da ansiedade e do mal-estar que sentiu nas semanas que antecederam a tragédia. A arguida descreveu que sentia a “cabeça descontrolada”, não sabia o que fazia, nem o que pensar e esquecia-se de realizar tarefas relacionadas com o seu quotidiano. Esta desorientação, perturbação e ansiedade foram claramente percecionadas pela arguida, que, tendo consciência das mesmas, contactou no dia 06 de junho de 2016 a sua médica de família do Centro de Saúde, pedindo-lhe uma consulta urgente, o que veio a ocorrer nessa mesma data, com a prescrição do antidepressivo e do ansiolítico identificados nos factos provados – a testemunha Dr.ª BB (médica de família) confirmou a depressão em que a arguida se encontrava e as razões apontadas por esta que justificavam aquele estado emocional, descreveu a respetiva sintomatologia e identificou os medicamentos prescritos; a prova destes factos resultou ainda do teor do registo clínico de consultas da arguida no Centro de Saúde de fls. 578/579, do qual se retira que já em maio de 2013, a arguida tinha sofrido uma depressão. A arguida declarou que tomou de imediato a medicação prescrita, mas que sentia dores de cabeça e alguma confusão mental – a perita Dr.ª AC e a testemunha Dr.ª BB declararam que estes sintomas poderão consubstanciar efeitos secundários da medicação, designadamente do antidepressivo e que habitualmente tendem a passar com o tempo. Reportando-se ao dia 17 de junho de 2016, a arguida afirmou que tomou a medicação antes de sair de casa naquela manhã, na companhia do marido e dos filhos. Relatou que todos estavam de férias com exceção do filho Joaquim que levaram ao infantário. Em seguida, descreveu os locais onde foram durante o período da manhã – café (sublinhou que discutiu com o marido à mesa do café a propósito de umas palavras que este lhe dirigiu na cama nessa manhã, que não conseguia esquecer, que a abalaram profundamente e a fizeram sentir-se humilhada) e loja do A- e o que se passou até ao momento em que voltou a sair de casa com o objetivo de ir ao Supermercado K comprar um brinquedo que o filho Manuel lhe pedia. A partir daí, a arguida só se consegue recordar de ter acordado na cama do hospital, na presença do irmão DD, que a informou que ela se tinha atirado da ponte ao rio com o filho Manuel que acabou por falecer. A arguida lembra-se de ter perguntado como é que isso tinha acontecido e de ter chorado. Presentemente, analisando o que se passou, a arguida, apesar da falha de memória - que se estende ao episódio ocorrido no dia 10 de junho de 2016 sob a Ponte Y de Barcelos -, conclui que quis pôr termo à sua vida e à do filho Manuel, por entender que este não aguentaria a sua ausência, considerando designadamente a forte ligação que tinha consigo e o medo e a insegurança que o pai lhe causava – esta razão não se estenderia ao filho mais novo, o Joaquim, pois como a arguida justificou “o pai era amigo dele”. Refutou qualquer sentimento de vingança ou de raiva para com o marido – tanto a perita Dr.ª AC como a testemunha Dr. JD declararam que nos contatos posteriores que tiveram com a arguida nunca denotaram qualquer indício de raiva ou de vingança por parte desta relativamente ao marido e que pudesse justificar o seu comportamento; ambos tendem a concluir que a conduta ilícita assentou antes numa intenção de proteção do filho Manuel. A arguida confirmou o seu número de telemóvel – 9…, embora não se recorde de ter efetuado qualquer chamada para o marido no dia 17 de junho de 2016. Declarou que o vestido de casamento, a aliança e os sapatos retratados nas fotografias de fls. 41/42 são seus. Reconheceu que a letra dos dois bilhetes cujas cópias constam a fls. 41 e 42 lhe pertence, não se recordando de os ter escrito. Afirmou que o filho Manuel não sabia nadar. Confirmou o teor do relatório social junto aos autos. Por fim, a arguida assumiu o arrependimento sincero e demonstrou o seu sofrimento diário por ser a responsável pela morte de um filho querido.
O assistente Manuel não prestou depoimento, ao abrigo do disposto no art. 134º, nº 1, do C.P.P.
A perita Drª AC, médica psiquiatra, confirmou e esclareceu o teor e as conclusões do relatório médico-legal psiquiátrico de fls. 402 a 406, por si subscrito, explicitando que para a sua elaboração efetuou uma entrevista com a arguida, consultou todo o processo clínico desta existente no Hospital e ainda o processo judicial. A perita médica afirmou que a arguida sofreu alterações de humor com caraterísticas depressivas que se foram manifestando cerca de três semanas antes da data da tragédia, quadro que foi diagnosticado na consulta datada de 06 de junho de 2016, na qual foram prescritos o antidepressivo e o ansiolítico, identificados no ponto i. Referiu que a arguida, vivenciando este quadro psiquiátrico, adquiriu uma ideação suicida que terá estado na origem da sua conduta ilícita. Reconhecendo que a arguida tinha consciência dos seus atos e atitudes e entendia perfeitamente as suas consequências, a perita médica explicou que o estado emocional que aquela desenvolvia condicionou a sua tomada de decisão, esclarecendo que o polo negativo de humor consubstanciado na desesperança e na ideação suicida, impediram a adoção de uma atitude diferente daquela que foi tomada por si no dia 17 de junho de 2016, traduzida no salto da ponte para o rio levando consigo o filho Manuel, com o objetivo de pôr termo à vida de ambos. A parte afetiva e emocional da arguida que, de acordo com a perita médica, poderão ter determinado um exacerbamento da avaliação negativa que a arguida fazia do seu ambiente familiar e designadamente da relação do pai/filho mais velho, obstaram que esta, responsável pelos seus atos, pudesse vislumbrar uma solução diversa para as contrariedades da sua vida. É com base nestas premissas que a perita concluiu que a arguida era seguramente imputável, embora com atenuantes. Reportando-se à falta de memória da arguida relativamente aos factos ocorridos na ponte, a perita admite como plausível o surgimento de um bloqueio emocional, que a protege da trágica realidade e dimensão das suas consequências. A perita médica afirmou que não encontrou qualquer sentimento de raiva ou revolta da arguida relativamente a ninguém. Analisando todo o circunstancialismo do caso e tal como fez constar no seu relatório, afirmou não ser absurdo concluir que subjacente à decisão da arguida em pôr termo à vida do filho mais velho existiu uma intenção de proteção deste descendente, porquanto se convenceu que este sofreria com a sua ausência. Concluiu que a arguida carece sem dúvida de um acompanhamento médico, nas vertentes de psiquiatria e psicologia, com administração de medicação, embora não vislumbre sintomas psicóticos que possam indicar uma paciente perigosa.
A testemunha CC, cunhada da arguida, prestou um depoimento que, apesar de emocionado, revelou-se factual, sincero e objetivo, como decorreu claramente quando, em tom de desabafo, afirmou “não tenho nada contra a Maria, quem me dera poder ter algo a apontar-lhe”. Na verdade, a testemunha afirmou que sempre se deu bem com a arguida, que esta era reservada e introvertida, cuidadosa com os filhos, responsável, trabalhadora e não gostava de falhar. Assinalou a existência de uma grande cumplicidade entre a arguida e o filho Manuel.
A testemunha que reside em Barcelos declarou que aparentemente a arguida e o marido davam-se bem, iam para todo o lado juntos, viviam um para o outro, nunca tendo presenciado qualquer mal-estar entre ambos. Recorda-se apenas de há cerca de 4/5 anos, a mãe ter-lhe dito que a arguida se queixou do Manuel, acusando-o de lhe ter batido. Caraterizou como normal o relacionamento do seu irmão com o filho António, dizendo que nunca presenciou qualquer agressão, embora tenha reconhecido que o Antonio é por vezes ansioso. De todo o modo, nunca viu qualquer marca física no sobrinho que denotasse agressões, sendo certo que estava com este semanalmente, por vezes mais do que uma vez. Referiu que o sobrinho mais velho era desde pequeno muito ligado à mãe, procurando estar sempre com esta. A testemunha não teve conhecimento do episódio ocorrido no dia 10 de junho de 2016, na Ponte Y de Barcelos, e não assistiu ao salto da arguida com filho para o rio Cávado no dia 17 daquele mês. Nessa data, por volta das 12h30, atendeu uma chamada telefónica da arguida que lhe perguntou se ela podia ficar com o Joaquim, caso o pai não ficasse. A testemunha respondeu prontamente que sim, mas notando a perturbação da arguida, perguntou-lhe o que se passava, sendo que a arguida procurava assegurar-se que a cunhada ficaria com o filho mais novo. A testemunha perguntou se estava tudo bem com o irmão, tendo a arguida respondido que ele tinha confirmado a existência de uma relação extraconjugal com uma colega de trabalho. A testemunha disse à arguida que iria ter com ela para conversar, ela respondeu que não valia a pena, a testemunha ouviu o sobrinho António a perguntar à mãe por que é que o irmão tinha que ficar com a tia e em seguida a chamada terminou. A testemunha efetuou então uma chamada telefónica ao irmão, mandou um “sms” à arguida pedindo que se acalmasse, e foi ao encontro do irmão. Não tendo encontrado o Manuel, a testemunha deslocou-se a casa da mãe da arguida, encontrando-a alterada, descontrolada, aos gritos, dizendo que uma irmã da arguida tinha recebido um telefonema no qual lhe transmitiram que uma mulher se tinha atirado ao rio juntamente com o filho. Apesar da mãe da arguida ter dado indicação que a referida mulher seria a filha, a testemunha não acreditou, tendo saído em direção à Ponte Y para ver o que se passava. Aí não viu nada. Lembrou-se então da ponte nova, para onde se deslocou e viu muito movimento, tomando conhecimento do que se tinha passado. Desceu para junto da margem do rio e aí viu a arguida já fora da água a ser assistida. Mais tarde, a testemunha acompanhou os elementos da polícia judiciária a casa da arguida e do irmão, tendo encontrado o seu interior nos termos retratados a fls. 39/41. Dentro de casa, no quarto do casal, nos termos retratados a fls. 41/42, foi encontrado o bilhete manuscrito cuja cópia consta a fls. 41. A testemunha referiu ainda a existência do bilhete manuscrito cuja cópia consta a fls. 42 deixado na caixa de correio da sua mãe, sogra da arguida. Perguntada se não notou nada de anormal no comportamento da arguida nos dias que antecederam a tragédia, a testemunha declarou que na semana anterior encontrou-a abatida e perguntou-lhe o que se passava, tendo esta respondido que estava cansada. A testemunha sugeriu-lhe então que tirasse férias, tendo a arguida dito que já estava de férias e tinha ido ao médico.
O depoimento da testemunha HJ não mereceu qualquer credibilidade ao Tribunal, considerando as incongruências nele detetadas, nomeadamente quando comparado com as declarações que prestou em sede de inquérito (fls. 61/64) – lidas na audiência de julgamento, ao abrigo do disposto no art. 356º, nºs 2, al. b) e 5, do C.P.P.-, a falta de coerência de raciocínio e de atitude e inverosimilhanças que transpareceram nas afirmações e relatos efetuados. Note-se, aliás, que apesar de se declarar amiga da arguida, esta não a reconheceu em audiência de julgamento, negando ter tido qualquer um dos contactos relatados pela testemunha nesta diligência.
A testemunha BB é a médica de família da arguida desde 2010, no Centro de Saúde. Declarou que desde então realizou várias consultas à arguida e aos filhos, salientando que não se lembra de ter visto o pai na maior parte das consultas dos filhos. Definiu a arguida como uma mãe altamente atenta e cuidadosa com os filhos, que cumpria o plano das consultas e seguia as recomendações médicas. Afirmou perentoriamente que existia um vínculo forte entre a arguida e os filhos, nunca tendo verificado qualquer sinal de agressão física nestes ou sintoma de negligência. Referiu que a arguida padeceu de uma depressão em maio de 2013, a qual teve uma duração de aproximadamente seis meses, sendo que já em janeiro de 2010 existiram queixas de sensação de ansiedade, nervosismo e tensão – estes factos retiram-se efetivamente do registo clínico de consulta da arguida de fls. 578/579. A testemunha confirmou que no dia 06 de junho de 2016 a arguida contactou-a, pedindo uma consulta, dizendo que necessitava de falar com ela. Apercebendo-se de que aquela se encontrava perturbada, a testemunha atendeu-a nessa mesma data. Na consulta, constatou que a arguida se encontrava triste, chorosa, muito nervosa e ansiosa. A arguida transmitiu-lhe que não conseguia comer ou dormir há cerca de uma semana, tendo-lhe dito que suspeitava que o marido mantinha uma relação extraconjugal. A testemunha tentou acalmá-la e prescreveu-lhe um antidepressivo – fluoxetina 20 mg- para tomar de manhã e um ansiolítico – diazepan 10 mg- para a noite, medicação que a arguida já tinha tomado numa situação anterior. Nessa consulta, não identificou ideação suicida, nem verificou qualquer indício que pudesse consubstanciar um perigo para a arguida ou para os outros. A testemunha agendou uma consulta para o dia 13 de junho de 2016, para fazer o acompanhamento do estado da arguida, mas esta não compareceu. A testemunha declarou que ficou surpreendida quando soube dos factos ocorridos no dia 17 de junho de 2016.
A testemunha AS que tinha saído do trabalho no dia 17 de junho de 2016, por volta das 12h30, passou de carro na ponte rodoviária sobre o rio Cávado, que liga Barcelos a Stª Eugénia, e avistou a arguida com um miúdo ao colo que lhe prendeu a atenção pois parecia ter óculos de piscina – note-se que a vítima tinha efetivamente naquela ocasião óculos com aros de massa azul, conforme se retira das fotografias de fls. 81/82. Então, viu a arguida a transpor o gradeamento da ponte com a criança, que se encontrava calma, apercebendo-se que aquela se preparava para saltar para o rio. A testemunha parou o seu veículo, berrou e dirigiu-se à arguida, tendo lançando ainda mão a um casaco que caiu – verificando mais tarde que era de criança- e que certamente não estava vestido. Nesse momento, a arguida atirou-se da ponte com a criança. Já no rio, a criança ainda mexeu os braços por uns instantes e a arguida boiava, sem qualquer reação. A testemunha declarou que nessa altura não se encontrava mais ninguém na ponte e que o veículo “Renault Megane” retratado nas fotografias de fls. 34/35 não se encontrava ali estacionado – daí que o Tribunal tenha dado como não provado o facto vertido sob o ponto 25; esse veículo sendo propriedade da arguida foi certamente levado mais tarde pelo Manuel quando acorreu ao local. A testemunha abandonou o local quando chegaram os bombeiros e lhe pediram para desviar o seu veículo.
A testemunha MA tinha um barco no rio Cávado e foi chamado ao local pela irmã que se encontrava em cima da ponte. Meteu-se no seu barco e vendo a arguida a boiar de barriga para baixo no rio, resgatou-a da água. Afirmou que a arguida estava inconsciente, tendo-lhe feito algumas manobras de reanimação. A arguida nada disse e gemia. Estava no local quando chegaram os bombeiros. Acompanhou-os nas buscas da vítima que nunca viu.
A testemunha CS passou na ponte rodoviária sobre o rio Cávado, no dia 17 de junho de 2016, por volta das 12h30, conduzindo o seu veículo automóvel, acompanhada da filha de 16 anos. Nesse instante, ambas avistaram a arguida à beira do passeio da ponte, a segurar um telemóvel junto ao ouvido, e uma criança “agarradinha” àquela. Apesar da filha ter dito que a arguida ia fazer uma asneira, talvez matar-se, a testemunha seguiu o seu caminho pois não lhe pareceu que nada de anormal se passasse. Mais tarde soube do sucedido e sentindo-se incomodada por nada ter feito quando avistou a arguida com o filho regressou à ponte para transmitir o que tinha presenciado quando por ali passou.
A testemunha SC circulava de carro sobre a ponte rodoviária sobre o rio Cávado, no dia 17 de junho de 2016, entre as 12h00 e as 12h30, quando avistou a arguida e uma criança sentadas no rebordo do passeio da ponte, no lado contrário àquele onde viria a acontecer o salto. Nesse momento, a testemunha abrandou para verificar se estava tudo bem. Viu então que a arguida levou alguma coisa à boca da criança. Constatando que estavam bem, seguiu o seu caminho, sem mais preocupações.
A testemunha RT, inspetor da Policia Judiciária – DIC de Braga, que acompanhou a investigação dos factos sujeitos a julgamento, confirmou o teor de todas as informações de serviço, relatório de exame ao local do crime, relatos de diligência externa, autos de apreensão, reportagens fotográficas, e resultados das demais diligências realizadas por elementos da polícia judiciária juntos aos autos na fase de inquérito, sem que o teor destes tenha sido questionado por qualquer um dos intervenientes processuais – a testemunha subscreveu a informação de serviço de fls. 20 a 31, os autos de apreensão de fls. 68/69 e 131, as cotas de fls. 88, 114, 144, 151 e 157, o relato de diligência externa de fls. 129/130 e o auto de visionamento de registo de imagens de fls. 158 a 168.
A testemunha DD, irmão da arguida, declarou que havia contactos frequentes entre ambos. A testemunha, a propósito do relacionamento da arguida com o companheiro, declarou que presenciou em casa da mãe, aos fins de semana, algumas situações em que o Manuel exaltava-se com a irmã, elevando a voz e gesticulando, mesmo em frente aos filhos. Referiu, ainda, que essa exaltação se estendia frequentemente ao filho António (v.g quando este não queria comer ou fazia alguma traquinice), apercebendo-se que este receava o pai – a testemunha concluiu, dizendo, que o Manuel pretendia manter o respeito e educar o filho de forma mais autoritária e agressiva. Afirmou que antes do dia 10 de junho de 2016, esteve com a arguida e esta disse-lhe que “não estava bem da cabeça” e que já tinha ido ao médico. Não presenciou os factos que tiveram lugar na Ponte Y em Barcelos, no dia 10 de junho. Nessa data, depois de tomar conhecimento do sucedido, procurou a arguida que lhe disse que estava tudo mais calmo e que tinha pedido ajuda ao marido. Depois do dia 10 de junho, a arguida confidenciou-lhe que tinha problemas com o marido, que era vítima de violência doméstica e que o Manuel era mau para o filho mais velho. Disse-lhe ainda que suspeitava de uma relação extraconjugal do marido com uma mulher de nome “Joaquina” e que não sabia lidar com esta situação. Confirmou a troca das mensagens retratadas a fls. 319. Confrontado, nos termos do art. 356º, nº 2, al. b) e 5, do C.P.P, com as declarações prestadas em sede de inquérito constantes no auto de fls. 315/318, a testemunha confirmou o teor daquelas consignadas nas linhas 15/44.
A testemunha EE, irmã da arguida, declarou que no dia 10 de junho de 2016, recebeu um telefonema, tendo-lhe sido dito que a arguida tinha ido para a Ponte Y em Barcelos para fazer alguma asneira. A testemunha acorreu à Ponte Y, na companhia de um irmão, e aí encontrou a arguida perto do gradeamento, parada no meio do tabuleiro, com o filho António ao colo, a olhar para a água do rio. A arguida só se apercebeu da sua presença quando chegou perto dela. Falou com a arguida, procurando acalmá-la. A irmã, visivelmente abatida, disse-lhe que queria atirar-se ao rio, nunca tendo mencionado que pretendia saltar juntamente com o filho Manuel – a testemunha confrontada com as declarações que prestou em inquérito a fls. 323/326, linhas 37/45, lidas em audiência de julgamento ao abrigo do disposto no art. 356º, nºs 2, al. b) e 5, do C.P.P, confirmou o seu teor. O episódio terminou com a chegada do Manuel, acompanhado do filho Joaquim, que levou a arguida para casa. Mais tarde, a testemunha passou por casa da arguida, tendo esta dito que estava melhor e que ia descansar. Relativamente ao comportamento da arguida nos dias anteriores, a testemunha afirmou que a irmã andava agitada, nervosa e ansiosa, o que não era normal, mas nunca a confrontou com esse facto. Referiu que por vezes em casa dos seus pais, ao fim de semana, o Manuel exaltava-se com a arguida, subindo o tom de voz. Do relato que efetuou a propósito da relação que o Manuel tinha com o filho António, pode concluir-se, no mínimo, que aquele revelava alguma impaciência e agressividade para com a vítima – “se fizesse alguma coisa batia-lhe, levantava logo a mão”.
A testemunha Dr. JD é o médico psiquiatra que acompanha a arguida na Casa de Saúde X, desde a data em que aí foi internada – 18.06.2016. Do acompanhamento efetuado, a testemunha retira que a arguida padece desde aquela data de uma perturbação emocional, com flutuações na sua evolução, a exigir um acompanhamento e vigilância permanentes, designadamente ao nível psiquiátrico e psicológico, com ministração de medicação. A testemunha afirmou que a arguida revela grande fragilidade emocional, podendo registar-se facilmente um aumento da instabilidade que vivencia face a uma qualquer contrariedade ou evento, como ocorreu recentemente com a proximidade da realização do julgamento. A testemunha considera razoável, não vislumbrando qualquer sinal que a infirme, a verificação da falta de memória – bloqueio emocional- que a arguida invoca quanto ao acontecimento vivencial traumático. Referiu que nunca encontrou qualquer laivo de raiva ou rancor que pudesse ter motivado a conduta ilícita. Por fim, a testemunha foi muito esclarecedora quando afirmou que o estado atual da arguida impõe um acompanhamento e uma vigilância permanente por parte de técnicos que jamais poderá ser dispensado por guardas prisionais num qualquer estabelecimento prisional, tendo referido que o facto de aquela estar internada numa unidade de doentes agudos desde que chegou à Casa de Saúde X é muito significativos acerca da atenção e cuidados que o caso requer.
A testemunha DA é o enfermeiro que acompanha diariamente a arguida na Casa de Saúde X desde a data do seu ingresso nessa instituição. É o responsável por vigiar o comportamento da arguida e detetar qualquer indício de ideação suicida, assim como pela ministração da medicação. Descreveu o estado da arguida – ansiosa, triste, isolada, com insónia marcada, sem alegria de viver. Afirmou que a arguida nunca se referiu ao episódio trágico que determinou a morte do filho mais velho e sempre manifestou interesse em ver o mais novo, o que lhe foi negado. Perguntado sobre a perspetiva de recuperação da arguida, a testemunha, apelando à sua experiência profissional, explicou que o percurso até se atingir uma estrutura emocional mínima que permita enfrentar o quotidiano é longo, podendo implicar anos.
A testemunha FF é vizinha, amiga e colega de trabalho da arguida. Afirmou que esta é reservada e mantinha um ótimo relacionamento com os filhos, dizendo que estes eram “o seu tesouro”. Declarou que nas conversas que tinham frequentemente, a arguida nunca lhe relatou mau ambiente familiar, embora de sua casa tenha ouvido algumas discussões do casal. Nos dias que antecederam o trágico evento, a arguida andava cansada, queixou-se que a cabeça estava confusa e que necessitava descansar. Já no decurso das férias que gozava na ocasião dos factos, a arguida disse à testemunha que tinha ido ao médico e que andava a tomar antidepressivos. O trágico evento deixou-a surpreendida.
A testemunha MS é a psicóloga que acompanha a arguida na Casa de Saúde X, desde a data do seu internamento nesta instituição. Depôs de forma serena, objetiva e esclarecedora quanto ao estado de saúde que a arguida apresentava naquela data, sua evolução até à atualidade e perspetivas para o futuro. Assim, a testemunha começou por afirmar que quando contactou a arguida pela primeira vez esta encontrava-se muito instável do ponto de vista emocional, apresentando sintomatologia própria de uma depressão muito grave - perdas de memória, falta de concentração, dificuldade em falar, choro frequente, desesperança e ideação suicida. Do que pode observar das sessões realizadas com a arguida e da consulta dos elementos clínicos a que teve acesso, a testemunha, sem nunca questionar a imputabilidade da arguida, não teve dúvidas em concluir que esta possuía à data dos factos a sua capacidade volitiva diminuída, querendo com isto significar que a vontade de tomar decisões num ou noutro sentido era permeável ao estado emocional que experimentava e certamente contribuiu para o cometimento do facto ilícito. Declarou que a evolução do estado da arguida não tem sido linear até à presente data, registando-se períodos de grande instabilidade, o que determina que continue na unidade de doentes agudos da Casa de Saúde X. Referiu que a arguida necessita de uma vigilância apertada e diária – a testemunha aludiu a uma vigilância de 24 horas-, com acompanhamento médico – vertentes psiquiátrica e psicológica-, sempre supervisionada por técnicos de saúde que controlam inclusivamente a medicação prescrita. Manifestou preocupação perante o futuro do processo-crime e a possibilidade de a vigilância e acompanhamento por parte de técnicos de saúde poderem sofrer alterações, porquanto, entende, que qualquer facilitismo a este nível poderá determinar retrocessos e inclusivamente tentativas suicidas, já que esta ideação ainda constitui um risco elevado. A testemunha foi perentória ao afirmar que a alegada falta de memória da arguida quanto aos factos criminosas corresponde à verdade, não tendo constatado qualquer sinal que a infirme. Por fim, a testemunha salientou que a arguida tem um longo caminho a percorrer – talvez anos- até conseguir ultrapassar a depressão de que padece.
Em suma:
Os elementos de prova acima indicados e analisados – devidamente conjugados e valorados e considerando que os depoimentos, com exceção do da testemunha HJ, mereceram credibilidade ao Tribunal, uma vez que se revelaram objetivos e sinceros, coerentes e responsáveis- contêm aptidão probatória dos factos descritos sob o ponto i), suficiente, assim, para desvirtuar a presunção de inocência de que beneficia a arguida
A arguida, insatisfeita com o ambiente familiar que vivia – relacionamento com o marido e o comportamento deste para com o filho mais velho, a que acresceu a suspeita de um relacionamento extraconjugal daquele- desenvolveu uma depressão grave, durante a qual se veio a registar ideação suicida. Esse estado emocional condicionou o seu pensamento – inclusivamente, pode ter gerado um exacerbamento da visão negativa que tinha do seu casamento e da relação pai/filho António, conforme referiu a Drª AC- e condicionou a tomada de decisões e comportamentos. Com consciência da gravidade dos factos e da sua valoração e por isso mesmo sem nunca ter deixado de ser responsável pelos mesmos, a arguida decidiu pôr termo à sua vida e à do filho mais velho, convencendo-se que este não suportaria a sua ausência. Esta solução (errada) foi tomada pela arguida em função da sensível diminuição da sua capacidade volitiva. Com efeito, o quadro depressivo não a afetou ao nível da consciência, da compreensão da ilicitude dos factos e da sua valoração, mas tão só ao nível do controlo da vontade. Deste modo, a arguida dirigiu-se à ponte sobre o rio Cávado, fazendo-se acompanhar do filho mais velho, e daí saltou com este para o rio, com o objetivo de pôr termo à vida de ambos. Agiu, pois, livre, deliberada e conscientemente, sabendo necessariamente, como qualquer outro cidadão, que a sua conduta era proibida e punida por lei - a conduta em discussão reporta-se a ação que a generalidade dos cidadãos (e bem assim a arguida) sabe ter relevância jurídico-penal e como tal ser proibida, aliás como demonstra bem o arrependimento que declarou na audiência de julgamento. Esta foi, porém, a única solução que vislumbrou para as contrariedades que experienciava. O filho acabou por morrer afogado e a arguida foi resgatada do rio com vida. A arguida, considerada uma boa mãe, a quem ninguém consegue apontar qualquer falha no seu relacionamento com os filhos, atuou convicta que protegia o filho Manuel (esse convencimento decorre, designadamente, do teor dos bilhetes por si escritos e apreendidos nos autos e é corroborado pela seriedade do ato que praticou visando pôr termo à sua própria vida; acresce que não foi apurado qualquer indício de vingança relativamente ao cônjuge que sustente qualquer intencionalidade com tais contornos subjacente à sua conduta para com o filho mais velho). Presentemente, padece de uma depressão grave, sem sintomas psicóticos, que impõe um acompanhamento e vigilância permanentes e apertados, realizados por técnicos de saúde, com ministração de medicação e terapia psiquiátrica e psicológica, controlando sempre os indícios de ideação suicida. A arguida demonstra arrependimento e sofrimento diário por ter posto termo a vida ao filho, apesar do bloqueio emocional relativamente a estes factos.
Sob os factos vertidos no ponto ii), importa tecer os considerandos que se seguem.
O facto descrito sob o ponto 25 foi considerado não provado atendendo ao depoimento da testemunha AS e às razões que se explanaram a propósito da sua análise acima efetuada.
Uma vez que o assistente Manuel não prestou depoimento, não foi possível apurar da veracidade do facto enunciado sob o ponto 26, tanto mais que não existe nenhum elemento de prova de onde se possa retirar o teor do telefonema que a arguida fez da ponte ao seu cônjuge no dia 17 de junho de 2016.
Por fim, o Tribunal considerou que não foram reunidos elementos de prova que possam determinar a prova do facto vertido sob o ponto 27. Apesar do episódio ocorrido no dia 10 de junho na Ponte Y em Barcelos, não se pode concluir sem mais que a arguida persistiu na ideia de se suicidar e tirar a vida ao filho António pelo período de uma semana. Note-se que após aqueles factos, a testemunha EE, sua irmã, deslocou-se a casa da arguida onde esta disse que estava melhor e que iria descansar, aparentando, deste modo, ter abandonado a ideia suicida. Por outro lado, não é absurdo pensar, atendendo à perturbação depressiva que sofria, que a decisão de se suicidar e tirar a vida ao filho, possa ter surgido de uma qualquer contrariedade ocorrida na manhã do dia 17 de junho, tal como aquela que a arguida relatou, traduzida nas palavras que lhe dirigiu o marido, que não conseguiu esquecer e a fizeram sentir-se humilhada. Face ao exposto e em observância do princípio in dubio pro reo, considerou-se não provado o facto em causa.»
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3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

A recorrente centra a sua discordância do acórdão condenatório inequivocamente na subsunção jurídico-penal dos factos, que pretende ver efetivada no tipo legal de crime de homicídio privilegiado, do artigo 133.º do Código Penal; e na medida concreta da pena que lhe foi aplicada, que quer minorada.
Invoca também a ocorrência dos vícios decisórios da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e do erro notório na apreciação da prova, mas perspetiva-os exclusivamente no âmbito da sua discordância da subsunção jurídica dos factos que foi feita pelo tribunal a quo.
No que a este último ponto respeita, há desde logo a considerar que os vícios decisórios se encontram estruturados e legalmente previstos, no artigo 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, numa lógica jurídica de vícios da matéria de facto, que emanam dos termos do próprio texto da decisão recorrida – por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos – tornando impossível uma decisão logicamente correta e conforme à lei.
Sendo a contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão, prevista na al. b), do nº 2 daquele artigo 410.º, a que se traduz numa «incompatibilidade não ultrapassável através da própria decisão, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão» (2).
E o erro notório na apreciação da prova, previsto na al. c), do mesmo n.º e artigo, o que se traduz numa «falha grosseira e ostensiva na análise da prova» que leva a que «um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta que o tribunal violou as regras da experiência ou que se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das legis artis» (3).
Ora, no caso em apreço, a recorrente não indica um único ponto de facto que esteja em contradição com qualquer outro ou com a fundamentação, ou onde vislumbre o alegado erro notório na apreciação da prova. Limitando-se a evidenciar factos que constam como provados do acórdão recorrido, aos quais apenas dá outra interpretação de direito.
De onde resulta que, também neste ponto, a sua discordância do acórdão recorrido se contém na matéria de direito, por se reportar exclusivamente à interpretação e subsunção jurídica dos factos apurados.
Naufraga, pois, a arguição de vícios decisórios do n.º 2, do artigo 410.º, do Código de Processo Penal, que recorrente invoca mas, como vimos, nem sequer concretiza nos termos da respetiva definição legal.
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Passemos pois à apreciação da questão de saber se há erro de interpretação na subsunção dos factos ao direito, quanto à imputação à recorrente da prática de um crime de homicídio, previsto e punível pelo artigo 131.º do Código Penal. Posto que, na sua perspetiva, o crime que cometeu ao matar o menor António, seu filho, foi o de homicídio privilegiado do artigo 133.º do Código Penal.
Dispõe este artigo 133.º que: «Quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa, é punido com pena de prisão de um a cinco anos.»
São aqui previstos quatro conceitos-tipo que levam ao privilegiamento do homicídio, em função de uma cláusula de exigibilidade diminuída legalmente concretizada, sendo três de natureza emocional: a compreensível emoção violenta, a compaixão e o desespero; e um quarto de natureza ético-social: um motivo de relevante valor social ou moral.
Para além da verificação daqueles estados ou motivos, exige a lei que que o agente atue dominado por eles e que essa atuação diminua sensivelmente a sua culpa. Nas palavras de Figueiredo Dias (4): «Os estados ou motivos assinalados pela lei não funcionam por si e em si mesmos (hoc sensu, automaticamente), mas só quando conexionados com uma concreta situação de exigibilidade diminuída por eles determinada; neste sentido é expressa a lei ao exigir que o agente actue “dominado” por aqueles estados ou motivos.»
É, pois, a especial diminuição da culpa, em resultado de exigibilidade diminuída, que justifica e fundamenta o privilegiamento do crime de homicídio, do artigo 133.º.
Seguindo o mesmo autor (5), compreensível emoção violenta «é um forte estado de afeto emocional provocado por uma situação pela qual o agente não pode ser censurado e à qual também o homem normalmente “fiel ao direito” não deixaria de ser sensível». Representando o requisito da compreensibilidade da emoção uma «exigência adicional relativamente ao critério de menor exigibilidade subjacente a todo o preceito».
A compaixão é um «estado de afeto ligado à solidariedade ou à comparticipação no sofrimento de outra pessoa».
O desespero, embora muito próximo da emoção violenta, distingue-se desta por coincidir, em geral, com situações que se arrastam no tempo, fruto de pequenos ou grandes conflitos, que provocam no agente a «estados de afeto ligados à angústia, à depressão ou à revolta».

Por sua vez, o motivo de relevante valor social ou moral terá de avaliar-se «à luz da ordem axiológica suposta pela ordem jurídica».
No caso vertente, é com base na interpretação da factualidade apurada como demonstradora de um estado emocional de desespero, recondutível ao conceito tipo do artigo 133.º do Código Penal, que a recorrente entende dever censurada pelo homicídio do filho.
E, realmente, daquela factualidade decorre que a recorrente vivenciava uma deterioração do relacionamento conjugal, iniciada a partir do nascimento do filho mais velho (a vítima), em 2009, com um progressivo afastamento do marido do contexto familiar, suspeitando ela que ele manteria uma relação extraconjugal. Por outro lado, o marido «repreendia frequentemente o filho mais velho, elevando o tom de voz, causando-lhe medo e insegurança»; o que desgostava a recorrente que «foi sempre dedicada aos filhos, revelando-se diligente nos cuidados que lhes dispensava e demonstrando afetividade».
Está também apurado que a arguida andava manifestamente ansiosa e perturbada; que contactou a sua médica de família pedindo-lhe uma consulta urgente, sendo medicada com um antidepressivo. Que 11 dias antes do homicídio do filho, inconformada com a sua situação familiar, a arguida já havia decidido por termo à sua própria vida e do filho mais velho, por se ter convencido que este iria sofrer muito com a sua ausência, tendo sido impedida de concretizar os seus intentos quando já estava na Ponte Y de Barcelos para se atirar ao rio juntamente com o filho.
Neste quadro fático, que se mantinha à data da prática do homicídio, é realmente indubitável que a recorrente vivenciava uma situação emocional caraterizada por um sentimento geral de impotência, de pendor depressivo, perante uma situação externa tida como existencialmente insuportável, que se arrastava já há algum tempo, da qual a arguida se pretendia libertar provocando a sua própria morte. Mas à concretização deste seu intento opunha-se a antevisão do que seria o futuro do filho mais velho, caso ela se suicidasse, futuro que previa ser de sofrimento, por estar convencida que este não suportaria a sua ausência (6).
Neste contexto, pode sem esforço caraterizar-se como de desespero a situação subjetivamente vivenciada pela arguida.
Contudo, como já se salientou, o privilegiamento do homicídio não ocorre automaticamente por ter sido praticado em estado de desespero, a lei não exige apenas que o agente esteja desesperado, mas que tal desespero diminua sensivelmente a sua culpa. Clarifica Figueiredo Dias que «O efeito diminuidor da culpa ficar-se-á a dever ao reconhecimento de que, naquela situação (endógena e exógena), também o agente normalmente “fiel ao direito” (“conformado com a ordem jurídico penal”) teria sido sensível ao conflito espiritual que lhe foi criado e por ele afetado na sua decisão, no sentido de lhe ter sido estorvado o normal cumprimento das suas intenções» (7).
Torna-se assim relevante avaliar os motivos do agente, que para preencherem o elemento típico do artigo 133.º têm de ser identificados como bons ou, pelo menos, como aceitáveis pelo ordenamento jurídico.
No caso em apreço, dúvidas não restam que a génese do desespero da recorrente era a degradação da sua relação conjugal, à qual era totalmente alheia o seu filho e que, a morte deste, era percecionada como condição para que a arguida pudesse concretizar o suicídio, pois era-lhe insuportável que o filho ficasse em sofrimento pela sua morte.
Neste quadro, embora podendo haver quem encontre, no ato de matar o filho, ainda o amor maternal, subjetivamente entendido no âmbito da angústia existencial vivenciada pela mãe, o certo é que, ainda mais forte do que ele, a situação denuncia a vontade obstinada da arguida de libertação imediata de uma situação externa tida como existencialmente insuportável, a qualquer preço, mesmo que que essa libertação implicasse o sacrifício da vida do filho; e não obstante a morte deste não ser sequer representada como «a saída» para o estado de sofrimento em que ela se encontrava.
A morte do filho, embora determinada pelo estado de desespero da arguida, não surge como única forma de evitar o futuro sofrimento deste, sendo exigível à recorrente, suposta a sua fidelidade ao direito, que assumisse outro comportamento.
Tendo a arguida descartado todas as outras hipóteses válidas e ao seu alcance para evitar o sofrimento que antevia para o filho e optado por o matar, agiu num contexto de desespero, que sem dúvida lhe diminui a culpa, mas não lha diminuiu «sensivelmente», ao ponto de se vislumbrar a exigibilidade diminuída de comportamento diferente, ou seja, a culpa consideravelmente diminuída que é pressuposta pelo tipo de homicídio privilegiado.
Acresce ainda, no caso, que onze dias antes do homicídio a recorrente já se havia deslocado à Ponte Y em Barcelos, decidida a por termo à sua própria vida e à do filho, atirando-se juntamente com ele ao rio, sendo impedida de concretizar os seus intentos por familiares. De onde decorre a inevitável existência de uma reflexão prolongada sobre o crime, o que reforça a exigibilidade do seu não cometimento.
Não pode pois considerar-se que a conduta da arguida integra o tipo privilegiado do artigo 133.º do Código Penal, naufragando o recurso, também nesta parte.
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Por último, para o caso de improcederem os outros pontos do recurso, como veio a acontecer, a recorrente insurge-se com o quantum da pena que lhe foi aplicada, que pretende ver reduzida ao mínimo legal previsto para o tipo de crime de homicídio do artigo 131.º, pelo qual foi condenada.
Não propugnando, sequer, a sua atenuação especial, nos termos do artigo 72.º do Código Penal, ao contrário do que acontece com Ministério Público, que no douto parecer emitido nesta instância aponta também essa hipótese.

Vejamos.

A arguida foi condenada pela prática, como autora material, de um crime de homicídio, previsto e punível pelo artigo 131.º, do Código Penal, a que corresponde pena de prisão de oito a dezasseis anos.
A atenuação especial da pena está prevista no artigo 72.º, n.º 1 do Código Penal e destina-se àqueles casos em que existam circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime ou contemporâneas dele, que diminuam de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena. Sendo algumas dessas circunstâncias exemplificativamente enumeradas nas várias alíneas do n.º 2 da mesma disposição legal.
A atenuação especial funciona como uma verdadeira «válvula de escape» do sistema, destinando-se apenas àqueles casos que, pelo seu caráter excecional, apresentem uma gravidade tão diminuída que não coube na previsão do legislador quando fixou os limites normais da respetiva moldura legal; já que para os casos «normais», «vulgares» ou «comuns», «lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios.» (8)
No caso em apreço, o Ministério Público apresenta como fundamento da atenuação especial «a diminuição sensível da culpa da recorrente e todo um quadro de confissão, arrependimento sincero e assunção íntima do castigo perpétuo que a recorrente denotou, sendo certo que ficou igualmente provado que “no meio de residência da arguida, a situação é conhecida, tendo sido acolhida com surpresa embora sem sentimentos de rejeição expressos à sua presença, tanto mais a última quadra natalícia e o período do ano novo foram passados juntos dos familiares de origem, sem incidentes”»
Se atentarmos à factualidade apurada, verificamos efetivamente que a arguida confessou e manifestou arrependimento sincero, declarando que sofre diariamente. Não tem antecedentes criminais. Beneficiando do apoio da família (pais e irmãos), que lhe prestam solidariedade e apoio apesar da consternação vivenciada com o presente processo. Não havendo sentimentos de rejeição expressos à sua presença no meio da residência.
Contudo, se bem que em termos gerais tal circunstancialismo milite efetivamente a favor da arguida, não tem – com todo o respeito por opinião contrária – potencialidade para diminuir a gravidade do facto, a culpa do agente ou as necessidades de prevenção em níveis compatíveis com a previsão do artigo 72.º do Código Penal.
Estamos perante uma situação em que a factualidade apurada evidencia claramente que a arguida matou o seu próprio filho, de apenas seis anos de idade, com quem vivia, necessariamente dela dependente, que nela confiava, e que era inclusive alheio à génese do seu estado de depressão e desespero, que se reconduzia exclusivamente à degradação da sua relação conjugal. Encontrando-se a vítima totalmente indefesa perante a arguida, não só pela idade e laços afetivos, como pelo próprio modo de execução do crime, com ministração prévia de fármacos contendo benzodiazepinas e salto para o rio, não sabendo a criança nadar.
E se bem que, no quadro depressivo em que se encontrava, tenha agido com o intuito de proteger a vítima do sofrimento que a sua morte lhe causaria, ao bem jurídico máximo da vida do filho sobrepôs a necessidade da sua própria e imediata libertação, através do suicídio, da situação existencial que vivenciava. Pois não podemos esquecer que a causa do sofrimento que antevia para o filho advinha do seu próprio suicídio.
Agindo com um dolo direto e intenso. Exteriorizando uma perigosa inversão da hierarquia de valores penalmente protegidos, com crença num poder supremo da mãe sobre a vida e morte do filho, e decisão das condições em que a vida dele vale, ou não, a pena ser vivida, independentemente da opinião do próprio. O que revela uma personalidade já com caraterísticas de desestruturação pessoal, aumentando as necessidades de prevenção especial.
Elevadas são também as imposições de prevenção geral para reafirmação da validade das normas e de integridade dos valores comunitários essenciais, por estar em causa a vida humana, e especialmente, a morte de uma criança de seis anos, indefesa, e absolutamente alheia à angústia existencial vivenciada pela arguida.
Neste quadro, e apesar do manifesto peso dos fatores atenuativos, mormente da situação de intenso desespero vivenciada pela arguida, da confissão e do arrependimento sincero, a imagem global do facto apresenta-se com uma razoável gravidade, merecendo da comunidade frontal reprovação e forte censura, não assumindo aqueles fatores a dimensão necessária e suficiente para que se possa considerar a possibilidade de uma atenuação especial nos termos do artigo 72.º do Código Penal.
Quanto à determinação da medida concreta da pena, o tribunal está vinculado, nos termos do artigo 71º, nº 1, também do Código Penal, a critérios definidos em função de exigências de prevenção, limitadas pela culpa do agente.
Neste âmbito, ponderando os fatores de valoração que militam a favor e contra a arguida – supra enunciados e devidamente acentuados no acórdão recorrido – já se se justifica que a pena concreta se contenha no primeiro quarto da respetiva moldura legal do crime de homicídio, p. e p. pelo artigo 131.º do Código Penal.
Razão pela qual não nos merece censura a pena encontrada pelo tribunal a quo, de dez anos de prisão – sujeita ao regime de execução definido no acórdão recorrido – que apenas em dois anos excede o mínimo legal, numa moldura que vai de oito a dezasseis anos de prisão, e que responde adequadamente às exigências preventivas, sem exceder a medida da culpa.
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III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam as juízas desta secção do Tribunal da Relação de Guimarães, em negar provimento ao recurso interposto pela arguida Maria.
Vai a recorrente condenada em custas, fixando-se em 5 (cinco) Ucs a taxa de justiça.
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Guimarães, 22 de janeiro de 2018
(Elaborado e revisto pela relatora)

1. Cfr. artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
2. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, Editora Rei dos Livros, 8ª ed. Lisboa, 2012, p. 77.
3. Simas Santos e Leal Henriques, op. citada na nota 3, p. 80.
4. Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, tomo I, Coimbra Editora, 2.ª ed., p. 83.
5. Op. Citada, p. 85 a 90.
6. Cfr. ponto 15 dos Factos Provados.
7. Op. citada, p. 83.
8. Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Ed. Notícias § 454 e § 465.