Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
496/10.2TBAMR.G1
Relator: EVA ALMEIDA
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
INTERESSE EM AGIR
LEGITIMIDADE ACTIVA
HERDEIRO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/07/2015
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I - A obrigação de prestação de contas é, antes de mais, uma obrigação de informação (art.573º C.Civ.). Esta informação é vital para os autores, já que dela depende o acervo hereditário.
II - Se o herdeiro pode sozinho peticionar a herança ou bens da herança contra quem deles se tenha apropriado ou esteja a possuí-los (2075º nº 1 e 2078 º do CC), por maioria de razão pode exigir a prestação de contas (forçada) ao tutor, que tendo obrigação de as prestar, não o fez ou a quem geriu bens do autor da herança.
III - Este interesse em agir dos aqui autores, não lhes advêm apenas enquanto sucessores no direito da autora da herança exigir essa prestação, i. é por via sucessória, é também um interesse próprio, na medida em que do resultado dessas contas depende o próprio conteúdo do seu direito à herança.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I - RELATÓRIO
M… e marido, C…., e J… intentaram contra R… e M…, acção especial de prestação de contas, pedindo:
a) Se declare 1.ª ré como cabeça-de-casal.
b) Serem ambas as rés compelidas a prestar contas da sua administração de facto ou de direito nos últimos 5 anos da vida da falecida C… e do património, todo o património, créditos e encargos daquela, na data do seu falecimento.
Para tanto, alegam, em síntese, que autoras e rés são irmãs de C…, falecida no dia 1 de Junho de 2010 em Braga. A referida C… vivia com a 1.ª ré há vários anos a esta parte e, seguramente, há pelo menos 1 ano à data da morte, pois se encontrava acamada e incapaz de gerir a sua vida diária. Era a 1ª ré, em conjunto com a 2ª ré, quem punha e dispunha de dinheiros, rendimentos e património da falecida durante a sua vida. Os aqui autores (como herdeiros e beneficiários de testamento) pretenderam junto das rés aferir dos bens, rendimentos, designadamente a descrição de todos os montantes depositados ou não e seus documentos de suporte. Pretendendo, pois, os autores que sejam prestadas contas da administração do património da falecida na data do seu óbito. Administração que era realizada em conjunto pelas aqui rés desde, pelo menos, 2005, altura em que a falecida C… ficou incapacitada de se prover por si. Intitulando-se tutoras e gerindo a seu o património e rendimentos prediais e de capital da falecida. Não se sabendo se apenas de facto ou, também, de direito, mas sendo, pelo menos, gestoras de negócio.
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As rés foram citadas, alegaram que a 1ª ré que foi nomeada tutora da falecida C… por sentença proferida em 20.3.2009, no processo de interdição intentado em 21.12.2007, que correu termos com o nº4/08.5TBAMR, onde a 2ª ré era vogal do conselho de família.
Prestaram contas, requerendo a final que as mesmas sejam admitidas e julgadas justificadas, considerando-se o saldo de €185,01 para entrega aos herdeiros.
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Os autores vieram contestar as contas apresentadas.
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Nos termos do disposto no n° 1, do artigo, 1017.º, do CPC determinou-se o prosseguimento dos autos, em face do valor da acção, como processo sumário.
Seguidamente proferiu-se despacho saneador no qual se decidiu da verificação dos pressupostos processuais de validade da instância e do processado.
O processo seguiu para julgamento, realizando-se a audiência com observância do formalismo legal
Discutida a causa proferiu-se sentença em que se decidiu:
«Pelo exposto, decide-se julgar a presente ação procedente e, em consequência, determinamos que as requeridas, na qualidade de tutora e protutora da interdita, respetivamente, prestem contas do património da interdita, nas quais excluam do respectivo passivo os valores injustificadamente apropriados pelas requeridas nos termos supra expostos, e incluam e discriminem nesse passivo exclusivamente os valores que sejam sustentados pelos recibos já juntos aos autos, respeitantes a alimentação, higiene pessoal, limpeza da sua habitação, medicamentos, honorários dos médicos, taxas moderadoras, despesas administrativas, impostos, créditos laborais, contribuições para a segurança social, água, luz, salário da empregada e transportes da interdita, etc.
Custas pelas requeridas.»
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Inconformadas, as rés interpuseram o presente recurso, que instruíram com as pertinentes alegações, em que formulam as seguintes conclusões.
1.- A douta sentença a proferir não produzira o seu efeito útil normal, pois apenas fará caso julgado relativamente aos requerentes, dado que a falecida deixou, para além das partes, 6 herdeiros que não tiveram qualquer intervenção nos autos, sendo um caso claro de litisconsórcio necessário activo;
2.- Na douta sentença apenas foi admitido como despesa, aquilo que se mostrava documentado, desconsiderando-se totalmente, sem fundamento legal bastante, a prova testemunhal produzida, não se utilizando com justiça o prudente arbítrio do julgador, a equidade, as regras de experiência, bem como as prerrogativas de investigação do julgador no âmbito dos presentes autos;
3.- não foram admitidas como despesa as seguintes rubricas, em virtude de não se encontrarem documentadas, não obstante parte dos documentos constarem dos autos, devidamente identificados:
A) salários com 3 empregadas, V… - nem a indemnização, Segurança Social e o seguro de acidentes de trabalho desta - , C… e uma pequena parte da R…- trabalhadora de uma sociedade- , que cuidaram a falecida entre finais de 2005 e até à data da sua morte, ininterruptamente, em Junho de 2010, num total pago de 47.067,71 euros;
B) a quantia de 6.000,00 euros entregue ao requerente J…, por conta do seu quinhão hereditário, como confessou, qualificada, indevidamente, de despesa extraordinária;
C) a quantia de 700,00 euros mensal, a titulo de despesas com a falecida, com alimentação, vestuário, higiene e outras, desde Abril de 2007 até à sua morte;
D) a quantia de 700,00 euros mensal, no mesmo período, a título de compensação paga à 1° requerida, para na sua casa cuidar e zelar pela falecida, pelo menos até abril de 2009, altura em que a ia requerida foi nomeada curadora desta;
4.- estas despesas é costume poderem ser demonstradas por outros meios, nomeadamente por testemunhas, o que não foi admitido;
5.- o contrato caixa seguro poupança apenas podia ser declarado nulo, caso a Caixa Geral de Depósitos fosse parte nos autos, o que não era o caso;
6.- a falta de assinatura da falecida - segurada - nesse seguro, bem como as "dedadas", como diz a douta sentença recorrida, apostas aquando dos resgates em 2008 e 2009, apenas foram possíveis, em virtude de a Caixa o ter permitido, dado não se encontrarem afectadas de qualquer vício ou anomalia, sendo que as requeridas na subscrição do seguro, o fizeram por dever de zelar devidamente por 90.000,00 euros daquela;
7.- nem o contrato, nem a estipulação das requeridas como beneficiarias padecem de qualquer vício, gerador de nulidade, como decretado, pois ambas tiveram a autorização/consentimento/assentimento da falecida;
8.- restituir a quantia de 45.000,00 euros ao património da falecida, quando a mesma já foi restituída aquando dos dois resgates e algo que não tem qualquer fundamento legal:
9.- a reapreciação da prova produzida, nomeadamente o depoimento das duas testemunhas, cujos depoimentos se transcrevem e a prova documental produzida, impõe que a matéria de facto dada como provada sob os numeras 4, 6, 12, 13, 14, 17, 19, pelas razões invocadas nos pontos V, VI, VII, VII e IX, seja modificada, nos seguintes termos, corrigindo um erro notório de apreciação cometido:
4.- À data do falecimento de C…, esta vivia com a 1 a ré desde Abril de 2007.
6.- Na presente data, apenas existe em nome da falecida interditada a quantia monetária de 185,01 euros, além dos demais bens móveis e imóvel relacionado no âmbito dessa acção de interdição e ainda o OURO identificado a fls. 306 dos autos.
12.- A 1ª requerida, a partir de Abril de 2007, procedeu ao levantamento da quantia media mensal de 700,00 euros, como compensação pelo trabalho que desenvolvia para cuidar da C…, com o consentimento dos demais familiares, e a partir de Abril de 2009 - data da nomeação como curadora - , até à data da sua morte, sem autorização do tribunal.
13.- As requeridas, desde antes de finais de 2005 e a data da morte da falecida, tiveram necessidade de contratar, ininterruptamente, concretamente duas empregadas, V…, C… e R… - empregada da empresa denominada Idade + Unipessoal Lda " para auxiliar a cuidar da falecida, primeiro em sua casa e depois em casa da 1 a requeridas, uma vez que aquela necessitava sempre do auxilio de uma terceira pessoa para as tarefas do dia-a-dia, incluindo a sua higiene pessoal, no que foi gasta a quantia global de 47.067,71 euros, sendo que, par além das documentadas a fls 72 a 297, encontram-se ainda documentadas as constantes dos 14 cheques, entregues e recebidos pela V…, a fIs 647, 648, 649, 650, 651, 652, 653, 654, 655, 657, 658, 659, 660 e 670. estes no montante global de 8.435,00 euros e ainda os pagamentos efectuados à Segurança Social. no montante de 991,34 euros, constantes da certidão junta aos autos no dia 06/08/2012, através do requerimento n" 10842944 sob documento 1;
14.- A partir de Abril de 2007, a interdita começou a ser alimentada através de uma sonda gástrica.
17.- A lª requerida recorreu às contas bancárias existentes em nome da falecida para proceder ao pagamento das despesas médicas, medicamentosas, transporte, alimentação, higiene, vestuário, limpeza da casa, fiscais, segurança social, e salários das três empregadas, acima identificadas, nomeadamente as despesas juntas a fls 72 a 305, 392, 561 a 568, cujos dizeres se dão aqui como integralmente reproduzidos e entregou ainda ao requerente J… a quantia de 6.000,00 euros, titulada pelo cheque nº 0784291447 de 11/06/2010, da Caixa. Geral de Depósitos, junto aos através do requerimento identificado acima sob documento 1;
19.- Para além das despesas documentadas nos autos a fis 72 a 305, 392, 561 a 568, a primeira rê, entre Abril de 2007 e fim de Maio de 2010, também procedeu ao levantamento da quantia média mensal de 700,00 euros, com vista a suportar as demais despesas com nomeadamente a alimentação, higiene e vestuário da interdita que não estão documentadas nos autos.
10.- O facto dado como não provado, deve ser dado como provado, sob o nº 21, com a seguinte redacção:
21.- A falecida relativamente ao contrato identificado a fis 538 manifestou a sua vontade expressa e inequívoca no sentido da sua celebração, bem como de que as requeridas fossem as beneficiárias do capital seguro no caso da sua morte.
11.- A douta sentença decidido no sentido em que o fez violou nomeadamente o disposto nos artigos 1014° e 1017° do Código de Processo Civil e artigos 217°, 219°, 224°, 286° do Código Civil, pelo que deve ser revogada e substituída por outra, que modifique a matéria de facto no sentido aqui requerido, bem como julgue a acção não provada e improcedente, absolvendo as requeridas do pedido e julgue as contas devidamente prestadas e encerradas.
PELO EXPOSTO
- requer-se a V. Exas. senhores Juízes Desembargadores se dignem, com todas as consequências legais, julgar procedente a impugnação da matéria de facto dada como provada na douta sentença proferida, alterando-a e ampliando-a e ainda que esta seja revogada e substituída por outra que julgue a acção não provada e improcedente e absolva as demandadas dos pedidos formulados, aprovando na integra as contas prestadas.
*
Admitido o recurso, os autos foram remetidos a este Tribunal da Relação, onde o recurso foi admitido sob a forma, modo de subida e efeito atribuídos pela 1ª instância.
Pelo relator, foi, então, exarada a seguinte decisão singular:
« São termos em que:
- Se declara a ilegitimidade dos autores, absolvendo-se os réus da instância;
- Pela dita razão, não se conhece do objecto do recurso.
Custas pelos autores, na 1ª instância e no recurso.»
*
Notificados, os recorridos vieram requerer que o recurso seja decidido em conferência.
O processo foi aos vistos.
Por a maioria dos juízes que integram este colectivo não concordar com a decisão do relator, nos termos do artº 663º nº 3 do NCPC, o acórdão é lavrado pela 1ª adjunta.
II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR.
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações das recorrentes, tal como decorre das disposições legais dos artºs 635º nº4 e 639º do NCPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões “salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras” (artº 608º nº2 do NCPC).
As questões a apreciar são as constantes das conclusões que acima reproduzimos.
III - FUNDAMENTOS DE FACTO
Factos considerados provados na sentença recorrida:
1 - As Autoras e Rés são irmãs e co-herdeiras de herança aberta por óbito de C…., a qual faleceu no dia 1 de Junho de 2010 em Braga.
2.- No dia 30 de Junho de 1998, no cartório notarial de Amares, a falecida C… celebrou o testamento junto a fls. 14 e ss., cujos dizeres se dão aqui como integralmente reproduzidos.
3.- Aquando do seu falecimento, a C… sofria de uma incapacidade de 100%.
4. - À data do falecimento da C…, esta vivia com a 1.ª Ré há cerca de três anos.
5. - Por sentença proferida no dia 20 de Março de 2009, na ação 4/08.5TBAMR, deste tribunal, foi declarada a interdição da falecida C…, sendo a 1.ª ré nomeada sua tutora e a segunda demandada vogal do conselho de família, conforme certidão junta a fls.723 e ss, cujos dizeres se dão aqui como integralmente reproduzidas para todos os efeitos.
6.- Na presente data, apenas existe em nome da falecida interditada a quantia monetária de 185,01 euros, além dos demais bens móveis e imóvel relacionado no âmbito dessa ação de interdição.
7.- Após o acidente de viação em que teve intervenção, ocorrido no dia 8 de Agosto de 1999, a C… passou a necessitar da ajuda de terceiros para executar as tarefas diárias, nomeadamente, para cuidar da sua higiene pessoal e do seu bem-estar.
8.- Na sequência da respectiva ação judicial em que se discutia a responsabilidade pela ocorrência desse acidente de viação, foi arbitrada à interdita uma indemnização no montante total de 111.541,56 euros.
9.- Essa quantia, após dedução dos honorários do respectivo mandatário, no montante total de 19.500,00 euros, foi aplicada no produto financeiro denominado Caixa Seguro Poupança, com a apólice n.º 77/00006465,
10.- através do contrato junto a fls. 538, subscrito apenas pelas RR., cujos dizeres se dão aqui como integralmente reproduzidos para todos os efeitos.
11.- Desse capital foram efetuados dois resgastes parciais, em 6 de Agosto de 2008, do montante total de 20.000,00 euros, e em 13 Abril de 2009, do montante total de 25.000,00 euros, conforme documentos juntos a fls. 539 e 544, cujos dizeres se dão aqui como integralmente reproduzidos.
12.- A 1ª requerida procedeu ao levantamento da quantia média mensal de 700,00 euros, como compensação pelo trabalho que desenvolvia para cuidar da C…, sem o consentimento dos demais familiares ou do tribunal.
13.- A 1.ª requerida teve necessidade de contratar uma empregada para a auxiliar a cuidar da interdita, uma vez que esta necessitava sempre do auxílio de uma terceira pessoa para as tarefas do dia a dia, incluindo a sua higiene pessoal.
14.- A partir de Abril de 2008, a interdita começou a ser alimentada através de uma sonda gástrica.
15.- A partir dessa data, a 1.ª requerida levou a interdita para sua casa, a fim de lhe prestar os devidos cuidados que esta necessitava, onde permaneceu até à sua morte.
16.- Com o cuidado da interdita, a 1.ª requerida, professora de profissão, sofreu um desgaste físico e emocional relevante.
17.- A 1.ª requerida recorreu às contas bancárias existentes em nome da falecida para proceder ao pagamento das despesas médicas, medicamentosas, transporte, alimentação, higiene, vestuário, limpeza da casa, fiscais, segurança social, e salário da empregada juntas a fls. 72 a 297, 392, 561 a 568, cujos dizeres se dão aqui como integralmente reproduzidos.
18.- Teor das cadernetas bancárias da Caixa Geral de Depósitos juntas a fls. 351, 352, 353 e 354.
19.- Para além das despesas documentadas nos autos a fls. 72 a 297, 392, 561 a 568, a primeira ré também procedeu ao levantamento da quantia média mensal de 700,00 euros, com vista a suportar as demais despesas com a alimentação, higiene e vestuário da interdita que não estão documentadas nos autos.
20.- No dia 23 de Outubro 2006, no Cartório Notarial de Barcelos, a C… subscreveu a escritura pública de partilha, junta a fls. 64 e ss., cujos dizeres se dão aqui como integralmente reproduzidos para todos os efeitos.
IV - FUNDAMENTOS DE DIREITO
Na presente acção especial de prestação de contas as rés não contestaram a obrigação de as prestarem, e apresentaram as suas contas, requerendo a final fossem justificadas quer as receitas quer as despesas apresentadas, considerando-se o respectivo saldo para entrega aos herdeiros.
Contudo, em sede do presente recurso, nas respectivas alegações as recorrentes excepcionam a ilegitimidade dos autores por preterição de litisconsórcio necessário.
A acção especial de prestação de contas está regulada nos art.ºs 1014.º a 1019.º do CPC.
Esta acção pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las, ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objecto o apuramento e a aprovação de receitas obtidas e realizadas, por quem administra bens alheios.
A obrigação de prestar contas «tem lugar todas as vezes que alguém trate de negócios alheios ou de negócios, ao mesmo tempo, alheios e próprios. Umas vezes, é a própria lei que impõe expressamente tal obrigação; noutras, o dever de apresentar contas resulta de negócio jurídico ou do princípio geral da boa-fé. Por consequência, a fonte da administração que gera a obrigação de prestar contas não releva; o que importa é o facto da administração de bens alheios, seja qual for a sua fonte» (cf. VAZ SERRA, Scientia Iuridica, vol. XVIII, 115).
No caso em apreço a obrigação de prestar contas, relativamente ao período posterior à interdição decorre da lei e incumbe ao tutor. Esta acção reporta-se também a um período de tempo anterior à interdição em que as rés administraram de facto o património e negócios da falecida.
Não está aqui em apreço a gestão da herança (processo especial de contas do cabeça de casal), mas da tutora e protutora após a sentença de interdição e de ambas as rés, no período que a antecedeu, como gestoras de negócios da falecida.
Assim sendo, quem demonstre interesse legítimo na sua prestação pode exigi-la.
Ora, como se refere no Ac. do STJ de 29.10.2002 (03B824) a obrigação de prestação de contas é, antes de mais, uma obrigação de informação (art.573º C.Civ.).
Esta informação é vital para os autores já que dela depende o acervo hereditário.
Ora o herdeiro pode sozinho peticionar a herança ou bens da herança contra quem deles se tenha apropriado ou esteja a possuí-los (2075º nº 1 e 2078 º do CC).
Consequentemente e por maioria de razão, pode exigir a prestação de contas (forçada) ao tutor, que tendo obrigação de as prestar, não o fez ou a quem geriu bens do autor da herança.
Este interesse em agir dos aqui autores não lhes advêm apenas enquanto sucessores no direito da autora da herança exigir essa prestação, i. é por via hereditária, é também um interesse próprio, na medida em que do resultado dessas contas depende o próprio conteúdo do seu direito à herança.
Como se refere no Ac. do TRL de 24.9.2010 (proc. 1294/07.6TBAMD.L1-8) “a acção de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha direito á sua prestação sem que a lei exija que tenha de ser proposta por todos os interessados nessa prestação. Aliás, o facto de o principal objectivo da acção ser o apuramento das contas e só eventualmente se destinar à condenação no pagamento do saldo, confirma que a acção não tem de ser proposta por todos os interessados. Por outro lado, a prestação de contas não é um direito da herança que tenha de ser exercido em conjunto por todos os herdeiros. O interesse na prestação de contas é de cada um dos herdeiros e não faria sentido a exigência do exercício deste direito por todos os herdeiros em conjunto. Basta pensar na hipótese duma herança com apenas 3 interessados em que um deles administra os bens e, dos outros dois, há um que faz um pacto com o administrador. Neste caso, o terceiro interessado não poderia exigir contas da administração, o que não é uma solução lógica e que possa ser acolhida”.
A situação configurada como hipótese no acórdão citado é precisamente a dos presentes autos, em que as demandadas também são herdeiras e a uma delas compete o cabeçalato. Considerar-se que a acção só poderia proposta pela cabeça de casal, no âmbito dos poderes que lhe são conferidos pelo artº 2087º do CC, ou por todos os herdeiros (artº 2091º do CC) impediria na prática o exercício do direito.
Acresce que o disposto nas citadas normas está inserido no capítulo da administração da herança. Ora aqui não se discute a administração da herança, mas a de bens e rendimentos da falecida em vida desta, que, dependendo das contas a prestar, integrarão a herança.
Assim como qualquer herdeiro pode, por si só, exigir de terceiro ou co-herdeiro a restituição de bens da herança, sem que este lhe possa opor que não lhe pertencem por inteiro (artºs 2075º e 2078º do C.C.), também pode exigir que aquele que administrou bens de falecido preste contas dessa administração, uma vez que o eventual saldo dessas contas irá integrar a herança.
Improcedem, nesta parte, as conclusões das apelantes
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Vem também impugnada a decisão sobre a matéria de facto, no tocante aos factos dados como provados nos nºs 4, 6, 12, 13, 14, 17, 19 e ao facto dado como não provado. As apelantes indicam o que, em seu entender, desses factos se provou, pugnando pela pertinente alteração da matéria de facto.
Para tanto, além dos documentos juntos aos autos, fazem apelo aos depoimentos das testemunhas N… e B…, que transcrevem em anexo.
O artº 640º do NCPC impõe ao recorrente, que pretenda impugnar a decisão relativa à matéria de facto, o ónus de indicar os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa, indicando, sob pena de rejeição, com exactidão, as passagens da gravação em que se funda o seu recurso.
Ora, embora as apelantes tenham transcrito os depoimentos, transcrição que era facultativa, não indicaram, nem nas conclusões, nem no corpo das respectivas alegações, as passagens da gravação em que alicerçam a sua discordância, incumprindo totalmente o ónus que lhes era imposto pela al. a) do nº 2 do artº 640º do NCPC, o que implica a rejeição do recurso no tocante à decisão da matéria de facto.
Pelo exposto não se conhece do recurso nesta parte, mantendo-se inalterada a matéria de facto considerada provada na sentença.
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Face à matéria de facto provada analisemos agora quais as despesas que se devem considerar justificadas.
A) No tocante à alegada despesa constante do facto nº 12 (valor médio mensal de €700,00 levantados pela 1.ª requerida como pagamento pelos serviços que a própria prestava à interdita), a mesma não se pode considerar justificada por carecer da necessária autorização e arbitramento pelo Tribunal (artºs1942.º, n.ºs 1 e 2, do C.C.). Não poderia ser a própria tutora a arbitrar a sua remuneração e a pagar-se, a seu bel-prazer. Assim, os levantamentos da conta bancária da interdita, que, a este invocado título, a 1º requerida / recorrente efectuou, evidentemente não podem ser considerados despesas justificadas.
B) No tocante às despesas indocumentadas, mencionadas em 19 dos factos provados (para além das despesas documentadas nos autos a fls. 72 a 297, 392, 561 a 568, a primeira ré também procedeu ao levantamento da quantia média mensal de 700,00 euros, com vista a suportar as demais despesas com a alimentação, higiene e vestuário da interdita que não estão documentadas nos autos), na sentença recorrida considerou-se que “apenas deveriam constar nesse passivo exclusivamente os valores que sejam sustentados pelos recibos já juntos aos autos, respeitantes a alimentação, higiene pessoal, limpeza da sua habitação, medicamentos, honorários dos médicos, taxas moderadoras, despesas administrativas, impostos, créditos laborais, contribuições para a segurança social, água, luz, salário da empregada e transportes da interdita, etc.
Ora, apesar do disposto no artº 1016º nº 2 do CPC então vigente (as contas são (…) instruídas com os documentos justificativos) o nº 5 do artº 1017º permite que se considerem justificadas sem documentos as verbas de receita e de despesa em que não é costume exigi-los.
A redacção do facto nº 19 não é feliz. Mas terá de ser interpretado de acordo com a finalidade desta acção e, como só para ela teria relevo se efectivamente se provou que essa quantia foi despendida para os fins aí exarados (alimentação, vestuário e higiene da interdita), é com este sentido que o interpretaremos, pois de outra forma nem deveria constar dos factos provados.
Assim sendo, provadas as despesas e não sendo costume exigir recibos ou facturas de despesas com alimentação, vestuário e higiene, entendemos que as mesmas deverão considerar-se justificadas.
C) No tocante à aplicação do valor da indemnização recebida pela falecida C… no produto financeiro denominado Caixa Seguro Poupança, titulado pela apólice n.º 77/00006465, de que são beneficiárias as rés/apelantes, suas subscritoras (factos nºs 9 a 11), é forçoso considerá-lo de nenhum efeito para os termos da presente acção.
Com efeito a C… era viva, ainda não se encontrava interditada, o contrato não contém a sua assinatura, mas apenas as das aqui rés/apelantes, suas beneficiárias em caso de morte da C….
Se a aplicação financeira fosse posterior à interdição, entendemos que tal aplicação teria de ser autorizada pelo Tribunal e, obviamente, que, em caso de morte da interdita, não poderia beneficiar outros que não todos os seus herdeiros.
Tendo-o sido antes da interdição, o produto financeiro teria de ser subscrito pela própria C….
Mostrando-se tal contrato apenas assinado pelas rés, dele beneficiárias, ainda que invocando agora que também o foi em representação da C… (o que se subentende quando alegam que “o fizeram por dever de zelar devidamente por 90.000,00 euros daquela”), como as rés não tinham poderes para a representar e nunca foi ratificado pela forma prevista no artº 268º nº 2 do CC, o negócio sempre seria ineficaz em relação à C… e concomitantemente em relação aos seus herdeiros.
Nem as “dedadas” apostas nos documentos juntos a fls. 539 e 544, para efeitos de resgastes parciais da quantia objeto desse “seguro de capitalização”, podem ser interpretadas como ratificação do negócio originário, por não satisfazerem a forma prevista na lei (nº 2 do artº 268º do CC), nem justificam tais levantamentos pois, mesmo antes da interdição, na impossibilidade da C… assinar, o documento apenas a obrigaria se feito ou confirmado presencialmente perante o notário (373º do CC).
Não tendo sido assinado pela C…, tratando-se de um seguro, sujeito a forma escrita e que só pela apólice pode ser provado, o contrato em relação à C… e seus herdeiros é nulo (se a vontade existiu mas a declaração não assumiu a forma legal) ou inexistente (se a declaração de vontade não existe).
No caso e em face dos factos provados, mais do que perante uma nulidade, estamos perante um caso de negócio inexistente.
Assim, quer pela via da nulidade, como se considerou na sentença recorrida, nulidade que é do conhecimento oficioso e pode ser apreciada e declarada em qualquer acção, ainda que nela não seja parte o outorgante Banco (cfr. artº 286º do CC), quer, como entendemos nós, pela via da sua inexistência e ineficácia em relação à falecida e seus herdeiros, a quantia em questão, aplicada pelas rés no referido produto financeiro, integrava o património da C… quando esta faleceu e as rés terão de a restituir ao património daquela, considerando-se injustificados os movimentos a débito na conta corrente respeitantes a esse valor de €92.000.
D) As demais questões colocadas na presente apelação e respeitantes às despesas apresentadas, estavam dependentes da propugnada alteração da matéria de facto a que não se procedeu, ficando assim inviabilizada a sua apreciação. De qualquer forma, sempre diremos que nunca se poderia considerar como despesa relativa à administração de bens da C…, o levantamento da quantia de 6.000,00 euros, titulada pelo cheque nº 0784291447 de 11/06/2010, da Caixa Geral de Depósitos, uma vez que a entrega dessa quantia, alegadamente a um dos herdeiros, por conta do respectivo quinhão, sucede após o óbito da C…., extravasando o âmbito da administração dos bens que aqui se discute.
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Cabe ainda a este Tribunal esclarecer que na sentença proferida não cumpria determinar que as contas fossem prestadas. Tal só sucede quando o réu negue a obrigação de prestar contas (artº 1014ºA nº 3 do CPC)
Com efeito o processo inicia-se com o pedido dos autores para que as rés sejam obrigadas a prestar contas. Só se as rés contestassem a obrigação de as prestar é que, produzidas as provas necessárias, era de imediato proferida decisão ou remetidas as partes para os meios comuns, como disposto no citado artigo, com vista a decidir da existência dessa obrigação. E, decidindo-se pela obrigação de as prestar, eram então as rés notificadas para esse efeito (nº 5 do citado artº 1014ºA).
No caso em apreço as rés vieram prestar contas (1016º do CPC), funcionando tal apresentação não como uma contestação, mas como uma “petição”, estando agora em discussão apenas o julgamento das contas.
As contas apresentadas foram contestadas pelos autores. Por isso o processo seguiu para a sua apreciação, como disposto no artº 1017º nº 1 do CPC então vigente.
Assim, apenas cumpria ao Tribunal apreciar as contas apresentadas e decidir, em sede de sentença, se tem por boas as contas prestadas ou quais as verbas da receita e da despesa que considera ou não considera justificadas (cfr. artº 1017º do CPC) e, eventualmente, condenar as rés no pagamento aos herdeiros do saldo apurado – artº 1014º nº 1 parte final (vide entre outros o Ac. do TRP de 26.9.2006, proc. 0624521).
Pelo exposto e no segmento do dispositivo da sentença, terão de ser introduzidas modificações, adequando-o ao processado, que não tem por objecto determinar que as rés prestem contas, mas sim julgar as contas prestadas por estas, como as mesmas peticionaram.
V- DECISÂO
Nestes termos acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, revogando a sentença recorrida, julgam-se justificadas as despesas apresentadas pelas rés e referidas sob os nºs 9º, 17º e 19º dos factos provados na sentença (despesa com honorários do advogado, despesas documentadas nos autos a fls. 72 a 297, 392, 561 a 568 e ainda as despesas, em média não superiores a €700,00 euros por mês, para alimentação, higiene e vestuário da interdita) e injustificadas todas as restantes.
Custas por apelantes e apelados na proporção de 80% para aquelas e 20% para estes.
Guimarães 07.5.2015
Eva Almeida
Filipe Caroço
Henrique Andrade - Vencido. Como relator primitivo, apresentei projecto no sentido da avocação da decisão singular.