Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
774/13.9TBGMR.G1
Relator: PAULO DUARTE BARRETO
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PLANO DE RECUPERAÇÃO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/17/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I – Viola o princípio da igualdade dos credores um processo especial de revitalização que prevê, por um lado, que os créditos da Segurança Social e da Autoridade Tributária sejam pagos na totalidade, com juros e garantidos por hipoteca, e, por outro, que os créditos privilegiados de trabalhadores sofram uma redução substancial (50%) e ainda um período de carência de 24 meses.
II – Os trabalhadores com privilégio imobiliário especial sobre o imóvel da devedora ficam objectivamente em situação mais favorável na ausência do aprovado plano de recuperação, que, como vimos, é especialmente gravoso para estes credores.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível (2.ª) do Tribunal da Relação de Guimarães:
I – Relatório
Pelo 5º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Guimarães foi proferido, no âmbito do processo especial de revitalização de empresa, despacho a não homologar o plano de recuperação aprovados pelos credores.
Não se conformando com tal despacho, dela recorreu o requerente S…, SA, oferecendo as seguintes conclusões:
“ 1. O Processo Especial de Revitalização (P.E.R.) destina-se a viabilizar a recuperação da empresa (art.º 17º-A do C.I.R.E. e princípios orientadores aprovados pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 43/2011, por força do art.º 17º-D-10 do C.I.R.E.);2. No seu bom termo, o P.E.R. conduzirá à aprovação de um Plano de Recuperação;
3. O Plano de Recuperação, para além de só poder considerar-se aprovado desde que mereça o voto favorável da maioria legal dos credores (art.s 17º-F-3 e 212º-1 do C.I.R.E.), não deverá conter violação de normas legais, nos termos dos art.s 215º e 216º do C.I.R.E., caso em que o juiz terá de recusar a homologação;
4. Não deverá, pois, ser homologado o Plano que contenha medidas que violem o princípio da igualdade de tratamento dos credores ou de classes de credores, ou do qual resultem para os credores efeitos mais desfavoráveis do que os decorrentes da ausência de plano, designadamente, da liquidação do património do devedor.
5. No caso, a Recorrente encetou negociações pugnando pela sobrevivência da sua empresa, na convicção de que tal será viável mediante a aprovação de um Plano de Recuperação no âmbito de um P.E.R., que veio a requerer quando, por dificuldades económicas entretanto agravadas, se lhe afigurou eminente a possibilidade de incumprimento de um plano de insolvência a que se encontrava vinculada.
6. O Plano de Recuperação foi efectivamente aprovado por uma maioria de 81,0236% dos créditos, tendo participado na votação 70,174%;
7. Um reduzido número de credores laborais (11 num universo de 75), todos eles já desvinculados da empresa, deduziram oposição à homologação do Plano de Recuperação alegando violação dos princípios referidos na conclusão 4., no que foram acolhidos pela sentença recorrida;
8. A situação de credores privilegiados que assiste aos trabalhadores não é comparável à do Sector Público: o privilégio dos trabalhadores consiste fundamentalmente no privilégio imobiliário especial que garante os respectivos créditos (art.º 333º-1, al. b) do Cod. do Trabalho); o privilégio do Sector Público – Estado e Segurança Social – decorre da fórmula estrita e imperativamente vinculada em que a lei determina que seja admitida a regularização dos créditos em causa (art.s 36º/L.G.T., 196º e 199º Cod. Proced. Proc. Tributário e 190º-1 Cod. Contr. Seg. Social);
9. O privilégio imobiliário dos trabalhadores subsiste sempre, mesmo na hipótese de subsequente liquidação e é prevalente em relação a qualquer outra garantia, anterior ou posterior, que beneficia outros credores.
10. No caso não foi – nem poderia ter sido – afastado;
11. Não podem, pois, confrontar-se as apontadas situações de privilégio de modo a concluir-se que o tratamento dos créditos dos trabalhadores tem de ser igual ao dos do Sector Público.
12. Aliás, se assim fosse, o legislador tê-lo-ia consagrado inequivocamente, o que não fez.
13. O facto de, no Plano de Recuperação aprovado, se encontrar uma medida de redução de crédito dos trabalhadores não viola portanto o princípio de igualdade de tratamento.
14. Por outro lado, nada garante que, em liquidação, os trabalhadores venham a receber mais do que pela execução do Plano de Recuperação já que nem é garantido que o património produza resultado susceptível de cobrar o valor daqueles créditos nem, sobretudo, de tal ser obtido num prazo curto.
15. O valor contabilístico e fiscal do imóvel que constitui a garantia dos créditos laborais não representa, por si, qualquer indício de que possa corresponder ao valor comercial ou seja, ao resultado de uma venda.
16. Acresce que, da não homologação do Plano de Recuperação, não decorre, directa e imediatamente, a liquidação. Quando muito a insolvência, pelo que o contraponto Plano/Liquidação em que a sentença se baseia não tem suporte legal.
17. Tendo em vista os “princípios orientadores” referidos na conclusão 1., designadamente o princípio segundo e os objectivos próprios de um P.E.R., a execução de Plano aprovado pelos credores e que permita a recuperação da empresa é a que se afigura como solução construtiva,
18. tanto mais numa situação em que os trabalhadores que a ela se opõem já se afastaram – voluntariamente – da empresa.
19. Não foi assim violado aquele princípio. Ao contrário do que diz a sentença recorrida, foi até cumprido.
20. Perante o resultado da votação e a posição da generalidade dos trabalhadores – os quais não deduziram qualquer oposição – o terceiro princípio orientador foi também cumprido, verificando-se que o Plano é o que melhor serve o interesse de todas as partes,
21. sendo claros os sinais da existência de uma “abordagem unificada”,
22. pelo que também quanto a este princípio não existe violação.
23. O atendimento de um desiderato específico de uma parte reduzida de uma classe de credores no quadro presente significaria solução drasticamente desproporcionada e contrária à boa fé”.
Os ex-trabalhadores da requerente A… e N… vieram responder ao recurso, sem formular conclusões, mas pugnando pela manutenção do decidido.
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II – Fundamentação
A) Fundamentação de facto
Com interesse para a presente apelação, considera-se assente o seguinte:
1)A empresa tinha ao seu serviço 74 colaboradores em 2009, 77 em 2010, 82 em 2011 e 27 em 2012, contando neste momento com 29 colaboradores, dois administradores incluídos (vd. fls. 1438 e fls. 388 e 389). Salienta-se ainda que destes 29 colaboradores, 10 encontram-se com o seu contrato de trabalho suspenso, devido ao facto de a sociedade não ter condições financeiras para proceder ao pagamento dos salários destes trabalhadores (fls. 1110).
2) O plano de revitalização prevê o seguinte a propósito dos créditos do Estado:
a) Segurança Social – os créditos privilegiados serão pagos na totalidade (100%), sendo os juros vincendos calculados à taxa anual de 3,5%, com pagamento em 150 prestações mensais, amortização capital progressiva, nas seguintes condições: 1ª à 12ª – 25% de vp; 13º à 24ª – 50% de vp; 25º à 36ª – 75% de vp; 37ª ss. – 1000% de vpr, sendo vp=valor em dívida/nº de meses autorizado e vpr=[valor em dívida – valor pago em progressividade]/nº de meses remanescentes sem progressividade. Para garantia da dívida será constituída hipoteca voluntária sobre o imóvel identificado a fls. 1172.
b) Autoridade Tributária/Créditos Privilegiados e Comuns – Plano de pagamento: 100% dos créditos, com juros vincendos calculados à taxa anual de 3,5 %, com pagamento em 150 prestações mensais, postecipadas, iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira no último dia útil do mês seguinte àquele em que se verifique a aprovação do plano de recuperação apresentado no âmbito do processo especial de revitalização. Constituição de garantia hipotecária sobre o imóvel identificado a fls. 1173.
3) O plano de revitalização prevê o seguinte a propósito dos créditos dos “Trabalhadores – Salários e Indemnizações/ Credores Privilegiados”: perdão de 50% da dívida, pagamento de 50% em 168 prestações mensais, com amortização de capital crescente, iniciando-se o período de carência de 24 meses no último dia útil do mês seguinte àquele em que se verifique o trânsito em julgado da sentença de homologação do plano especial de recuperação, propondo-se o perdão dos juros vencidos, vincendos e outros encargos. A proposta de pagamento de 50% de capital em dívida aos trabalhadores poderá ser revista desde que sejam superados os resultados previsionais deste plano (vd. fls. 1176).
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O objecto do recurso afere-se do conteúdo das conclusões de alegação formuladas pela recorrente (artigos 684.º, n.º 3 e 685.º - A do Código de Processo Civil).
Isso significa que a sua apreciação deve centrar-se na questão de direito nele sintetizada e que, in casu, cinge-se à pretendida homologação do plano de recuperação.
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Do princípio da igualdade
O juiz recusa a homologação do plano de recuperação aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou as normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza – art.º 215.º, do CIRE, aplicável por remissão do art.º 17.º-F, n.º 5, do mesmo diploma legal.
Ao abrigo do art.º 194.º, do CIRE, o plano de recuperação deve obedecer ao princípio da igualdade dos credores de insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas.
A razão objectiva porventura mais clara que fundamenta a diferença de tratamento dos credores assenta na distinta classificação dos créditos, nos termos em agora está assumida no art.º 47.º, do Código; (…) para além disso, dentro da mesma categoria há motivos para destrinçar, conforme o grau hierárquico que couber aos vários créditos; (…) mas a ponderação das circunstâncias de cada situação pode justificar outros alinhamentos, nomeadamente tendo em conta as fontes do crédito; (…) o que está vedado é, na falta de acordo dos lesados, sujeitar a regimes diferentes credores em circunstâncias iguais – Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 2008, pg. 194.
No caso em apreciação temos em confronto os seguintes créditos:
a) Segurança Social – os créditos privilegiados serão pagos na totalidade (100%), sendo os juros vincendos calculados à taxa anual de 3,5%, com pagamento em 150 prestações mensais, amortização capital progressiva, nas seguintes condições: 1ª à 12ª – 25% de vp; 13º à 24ª – 50% de vp; 25º à 36ª – 75% de vp; 37ª ss. – 1000% de vpr, sendo vp=valor em dívida/nº de meses autorizado e vpr=[valor em dívida – valor pago em progressividade]/nº de meses remanescentes sem progressividade. Para garantia da dívida será constituída hipoteca voluntária sobre o imóvel identificado a fls. 1172.
b) Autoridade Tributária/Créditos Privilegiados e Comuns – Plano de pagamento: 100% dos créditos, com juros vincendos calculados à taxa anual de 3,5 %, com pagamento em 150 prestações mensais, postecipadas, iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira no último dia útil do mês seguinte àquele em que se verifique a aprovação do plano de recuperação apresentado no âmbito do processo especial de revitalização. Constituição de garantia hipotecária sobre o imóvel identificado a fls. 1173.
3) O plano de revitalização prevê o seguinte a propósito dos créditos dos “Trabalhadores – Salários e Indemnizações/ Credores Privilegiados”: perdão de 50% da dívida, pagamento de 50% em 168 prestações mensais, com amortização de capital crescente, iniciando-se o período de carência de 24 meses no último dia útil do mês seguinte àquele em que se verifique o trânsito em julgado da sentença de homologação do plano especial de recuperação, propondo-se o perdão dos juros vencidos, vincendos e outros encargos. A proposta de pagamento de 50% de capital em dívida aos trabalhadores poderá ser revista desde que sejam superados os resultados previsionais deste plano (vd. fls. 1176).
Os credores trabalhadores não deram o seu assentimento ao plano de recuperação que prevê, como sabemos, perdão de 50 % dos seus créditos, sendo a restante metade pagas em 168 prestações mensais após um período de carência de 24 meses.
Diga-se, desde logo, que embora os créditos em confronto sejam privilegiados, nada obsta que os créditos tributários tenham um tratamento diferenciado. Porque o regime do CIRE terá sempre de considerar as normas imperativas dos créditos tributários, que, pela sua própria natureza, não podem ser derrogadas.
O plano de insolvência (leia-se recuperação) é um verdadeiro negócio jurídico processual e mesmo uma transacção, portanto, um autêntico contrato - cfr. Ac. da Relação de Coimbra, de 06.11.2012, processo n.º 444/06.4TBCNT-Q.C1 – pelo que, sendo imperativas as normas do LGT que supra reproduzimos, por só ao Estado competir lançar impostos e proceder à sua cobrança, com observância do princípio da legalidade, não sobra, assim, qualquer espaço para a autonomia privada (cfr. Ac. da Relação de Lisboa, de 15.11.2012, processo n.º 86/11.1TYLSB-G.L1-6).
O que significa que tais normas não podem ser derrogadas por via, in casu, de um qualquer plano de recuperação.
Desta conclusão não resulta a violação do princípio da igualdade dos credores, consagrado no artigo 194.º, do CIRE, em virtude da distinta natureza dos créditos tributários.
Por conseguinte, da circunstância do plano de recuperação em apreço prever um tratamento mais favorável aos créditos tributários não decorre, sem mais, violação do princípio da igualdade.
Porém, a outra face deste tratamento mais favorável aos créditos tributários, não tem que significar tratamento desfavorável agravado relativamente aos outros créditos.
Tendo presente que o processo especial de revitalização se destina a permitir ao devedor que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja susceptível de recuperação, estabelecer negociações com os respectivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização (art.º 17.º-A, do CIRE), não pode, todavia, cair-se no outro extremo, ou seja, proteger o devedor à custa desproporcionada do credor.
O princípio da igualdade não pode ser derrogado de forma manifestamente desproporcionada, impondo-se um equilíbrio entre os direitos dos credores tutelados pelo CIRE.
Atente-se que os créditos dos trabalhadores que se opuseram à homologação do plano de recuperação são igualmente privilegiados. Não são credores comuns. Não se compreende, pois, que sofram à partida uma redução substancial (50%) dos seus créditos e, não obstante, um período de carência de 24 meses. É óbvio o desequilíbrio, que só pode resultar de total ausência na procura de uma solução construtiva entre devedor e credores, e assim completamente à revelia do processo especial de revitalização.
Digamos que a recuperação desta empresa é feita quase à custa os créditos dos trabalhadores. Tem que haver razoabilidade, sobretudo quando, como é o caso, os credores não dão o seu assentimento. Se relativamente aos créditos tributários pouco ou nada se pode fazer contra a vontade da Fazenda Pública e da Segurança Social, em virtudes das normas imperativas, tal não significa que sejam outros credores, ainda por cima privilegiados, a sofrer nos seus créditos, de forma quase absoluta e directa, o impacto da protecção tributária.
E assim se concorda com o tribunal a quo: houve violação do princípio da igualdade.
Da situação menos favorável
O juiz recusa ainda a homologação contanto que o requerente demonstre em termos plausíveis, em alternativa, que a sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que ocorreria na ausência de qualquer plano – 216.º, n.º 1, al. a), CIRE, também ex vi 17.º-F. n.º 5.
Aos fundamentos da decisão a quo contrapõe a apelante que o valor contabilístico e fiscal do imóvel que constitui a garantia dos créditos laborais não representa, por si, qualquer indício de que possa corresponder ao valor comercial ou seja, ao resultado de uma venda, e ainda que, da não homologação do Plano de Recuperação, não decorre, directa e imediatamente, a liquidação. Quando muito a insolvência, pelo que o contraponto Plano/Liquidação em que a sentença se baseia não tem suporte legal.
A apelante não põe em causa - nem podia por - o que diz o tribunal a quo quanto à graduação dos créditos dos trabalhadores: gozam do privilégio imobiliário especial previsto no art. 333º, nº1, al. b) do C. do Trabalho (ou seja, sobre bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua actividade) sendo graduados antes dos créditos referidos nos artigos 748.º e 751.º do Código Civil, conforme estabelece a alínea b) do nº2 do mesmo artigo.
É óbvio que o valor fiscal do imóvel pode não significar o seu valor comercial. Não obstante, a avaliação fiscal constitui um forte indicador do património da devedora, que pode e deve ser utilizado para aferir da sua capacidade em satisfazer as dívidas. É, pois, absolutamente razoável e ponderado, calcular o património imobiliário da devedora com fundamento na avaliação fiscal.
Finalmente, é manifesta a confusão quanto ao que está verdadeiramente em causa no artigo 216.º, n.º 1, al. a), do CIRE. A comparação, como claramente resulta do texto legal, é entre a situação ao abrigo do plano e a que teria na ausência de qualquer plano, segundo, pois, o modelo legal da liquidação universal dos bens da devedora. Importa apreciar como previsivelmente ficará a situação dos credores em cada uma destas situações, e não qualquer outra. Só temos duas situações. A que resulta do plano de recuperação, consentida pela maioria dos credores, ou a supletivamente prevista na lei para a liquidação do património da devedora. Uma ou outra. E concluir qual a que se prevê mais favorável aos credores.
Aqui chegados, afastados os fundamentos da apelação e acolhendo os motivos que fundaram a decisão a quo – os trabalhadores têm privilégio imobiliário especial sobre o imóvel da devedora – daí que objectivamente resulte situação mais favorável na ausência do aprovado plano de recuperação, que, como vimos, é especialmente gravoso para estes credores.
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III – Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação e confirma-se a decisão recorrida.
Custas da apelação pela recorrente.
Guimarães, 17 de Dezembro de 2013
Paulo Barreto
Filipe Caroço
António Santos