Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
7788/05.0TBBRG.G1
Nº Convencional: JTRG000
Relator: JORGE TEIXEIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
DANO CAUSADO POR EDIFÍCIOS OU OUTRAS OBRAS
PRESUNÇÃO DE CULPA
ÓNUS DA PROVA
VÍCIO DE CONSTRUÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/16/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Área Temática: CÍVEL
Sumário: I- A responsabilidade civil pressupõe culpa e, no caso de situação extracontratual, sobre o lesado impende o ónus de prova de factualidade que demonstre culpa do alegado lesante: artigos 487 nº 1 e 483 nº 1 do Código Civil.
II- A situação prevista no artigo 492, do Código Civil configura uma daquelas em que o lesado beneficia de uma presunção de culpa do lesante, sendo, assim, sobre este último, que impende o ónus de afastar essa mesma presunção, resultante da existência de uma perigosidade da anomalia como, por natureza, será o ruir do edifício ou outra obra.
III- No entanto, a presunção de culpa do lesante, não pode ignorar ou afastar os pressupostos contidos nessa mesma disposição legal e, designadamente, os pressupostos da própria presunção de culpa do lesante, cujo ónus da respectiva prova recai sobre os lesado.
IV- Assim, para que exista uma presunção de culpa do proprietário ou possuidor de edifício ou outra obra que ruir, no todo ou em parte, necessário se revela que o lesado demonstre a existência de um vício de construção ou defeito de conservação, ou seja, que o lesado demonstre que a ruína foi devida a um vício de construção ou a falta de manutenção, uma vez que sobre ele incide o ónus da prova dos factos constitutivos do seu direito de indemnização - art. 342º do Cód. Civil.
V- A responsabilidade prevista neste artigo 492, do C. Civil, não exclui a responsabilidade que derive dos princípios gerais, uma vez que aquela tem o fim de aumentar, e não de diminuir as garantias dos lesados.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães.

I- RELATÓRIO.

Recorrente: MC e esposa, RV.

Recorridos: JR e mulher, LR.

JR e esposa, LR intentaram a presente acção declarativa sob a forma sumária demandando os RR., MC e esposa, RV, alegando como fundamento e, em súmula, serem proprietários de prédio que identificam, sendo os réus proprietários de prédio que confronta, pelo lado poente, com o deles.

Mais alegam que os RR. realizaram no seu terreno as obras de loteamento que descrevem, as quais implicaram uma alteração nas condições de escoamento e infiltração das águas pluviais, pois que, tais águas deixaram se infiltrar no solo e passaram a escoar-se pelo prédio pertencente aos AA.

Ora, esta circunstância, conjugada com a falta de conservação de um muro de sua propriedade, por parte dos RR., implicou, numa altura de grandes chuvadas, e em que ocorreu a ruptura de uma conduta de águas pluviais, a derrocada parcial do muro em causa e o arrastar de enorme quantidade de lama e pedras do mesmo muro para o interior da propriedade dos AA., ocupando parcialmente o seu prédio, tendo também destruído parte da flora que ali existia, provocando, assim, danos nesse mesmo prédio, quer na parte exterior, quer na parte interior da habitação.

Alegam ainda ter interpelado os réus, por várias vezes, no sentido de procederem a reconstituição do muro e à reparação dos danos, o que, contudo, aqueles sempre recusaram fazer.

Com estes fundamentos, concluem pedindo, no que ora interessa, que os RR. sejam condenados a reerguer o muro em causa e a reforçar a sua estrutura de forma a tornar-se apto a suportar adequadamente as terras do seu prédio, assim como no cumprimento de uma obrigação pecuniária compulsória de vinte e cinco euros diários no caso de incumprimento de tal pedido.

Citados que foram, contestaram os réus, e, além de se terem defendido por via de excepção, invocando a sua legitimidade e prescrição do eventual direito dos AA., alegaram ainda a inexistência de qualquer nexo de causalidade entre as obras de loteamento a que procederam e a queda do muro, nunca tendo os réus realizado obras capazes de agravar ou impedir o escoamento de águas pluviais, tendo feito, pelo contrário, obras para melhorar tal escoamento, acrescentando que, de todo o modo, a ser verdade que foi o rebentamento da conduta que provocou tais danos, e sendo uma conduta pública, não são os réus responsabilizáveis pelos danos alegadamente ocorridos.

Por último, alegam que os AA. sempre se recusaram a realizar no seu prédio um muro em betão, com alguns buracos no mesmo, de modo a permitir a filtração e escoamento de águas pluviais, sendo que, qualquer modo, tudo ocorreu por força de uma intempérie de natureza e força excepcionais não tendo os RR. qualquer culpa ou negligência no sucedido, sustentando até que cabia aos AA. fazer obras de conservação no muro em causa.

Responderam os AA. sustentando que o muro é propriedade dos RR., tal como já haviam alegado, não tendo os AA. qualquer obrigação de conservação do mesmo, mas sim os RR..

Terminados os articulados, foi proferido despacho saneador, onde se julgaram improcedentes as invocadas excepções da ilegitimidade passiva e da prescrição, afirmando-se quanto ao mais a validade e regularidade da instância.

Realizado o julgamento, foi proferido despacho que respondeu à matéria de facto controvertida, sendo proferida sentença que julgou parcialmente procedente a acção, e, em consequência decidiu:

- “Condenar os réus, a reerguer o muro sito no prédio descrito nos factos 9º e 10º, e referido no facto 27º, e a reforçar a sua estrutura de forma a tornar-se apto a suportar adequadamente as terras desse prédio, num prazo de sessenta dias a contar do trânsito em julgado da presente sentença.

- No mais, vão os réus absolvidos do pedido nº 6”.

Inconformados com tal decisão, dela interpuseram recurso os RR., de cujas alegações extraíram as seguintes conclusões:

“1º O Acordão do Tribunal da Relação de Guimarães que ordenou o prosseguimento desta acção apenas contra os RR MC e esposa, absolveu da instância a então Ré AG. Na sequência dessa decisão, os AA intentaram uma acção contra a AG no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, que corre termos com o nº 263/08 na 1ª Unidade Orgânica. Nesta última acção os AA deduziram o mesmo pedido de reconstrução do muro agora contra a AG. Ou seja, em duas acções, os AA formulam o mesmo pedido, numa contra a AG e noutra contra os ora recorrentes. Pelo que, a decisão a proferir nos autos que correm termos no TAFB, a ser, como se espera, uma condenação da AG, tornaria a condenação dos réus nestes autos algo de juridicamente impossível – a condenação de duas pessoas pela prática dos mesmos factos, neste caso duas pessoas singulares e uma pessoa colectiva.

2ª Não se provou que o muro estivesse em estado de degradação.

3ª Não se provou que o muro precisasse de reparação.

4ª Não se provou que, após as obras dos réus, o terreno tivesse ficado inclinado.

5ª Provou-se que ocorreu o rebentamento de uma conduta de água pública que veio a provocar grande pressão no muro dos réus.

6ª Provou-se que foi esse rebentamento da conduta de água pública que originou a derrocada daquele muro.

7ª A sentença faz uma incorrecta aplicação da matéria provada decidindo de forma contrária ao que se provou.

8ª O depoimento das testemunhas, incluindo as indicadas pelos autores, são inequívocas no sentido de apontarem o rebentamento da conduta pública como o facto responsável pela derrocada do muro.

9ª A sentença dá ainda como provado que (ponto 30º): “Em Setembro de 2002 verificou-se a ruptura de uma conduta de água pública situada no passeio público que ladeia, a nascente, o prédio dos réus, as quais acabaram por invadir o terreno dos réus, arrastando enormes quantidades de água e exercendo pressão muito forte sobre o muro, o qual veio a derrocar parcialmente, arrastando enormes quantidades de lama que cobriu parte do logradouro dos autores”.

10ª Porém, de forma errada e contraditória, a sentença vem a condenar os réus no levantamento do muro.

11ª Não se pode dizer, como se faz na sentença, que “ não resulta demonstrado que esta não ocorreu por culpa dos réus ou que, mesmo que estes tivessem usado da diligência devida, a queda se teria verificado na mesma e, com a mesma, os danos inerentes…”, pois quem tinha de provar a culpa dos réus, ou a inércia dos réus na conservação e reparação do muro, eram os autores, e isso nunca o provaram!

12ª A sentença interpretou de forma incorrecta o disposto no art. 1350º do CC..

13ª Diz-se na sentença que nos termos deste artigo caberia aos autores a reparação do muro, por serem eles os donos do mesmo. Cremos no entanto que não é isso que resulta do art. 1350º do CC, pois o que aí se diz é que a reparação deverá ser exigida á pessoa responsável pelos danos. No caso em apreço, a pessoa responsável é uma pessoa colectiva, a AG, dona da conduta de água pública que rebentou e provocou a derrocada do muro”.

Contra-alegaram os Apelados, pugnando pela improcedência do recurso, defendendo a manutenção da decisão recorrida.

*

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

*

II- Do objecto do recurso e questões a decidir.

Sabendo-se que o objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formuladas, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso, as questões decidendas são, no caso, as seguintes:

- Apreciar de contradição eventualmente existente entre a fundamentação de facto e a de direito, bem como de outras contradições que se afigurem existir.

- Apreciar da incorrecta interpretação do artigo 1350, do C. Civil.

III- FUNDAMENTAÇÃO.

Fundamentação de facto.

Na sentença recorrida consideraram-se provados os seguintes factos:

1º Os autores são proprietários e legítimos possuidores do prédio urbano composto por casa de rés-do-chão e andar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Braga com o nº 001…, da freguesia de Lamaçães, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artº 2...

2º Por escritura pública de compra e venda, lavrada no dia 15 de Maio de 1987, no Primeiro Cartório Notarial de Braga, adquiriram à Abimen – Sociedade de Construções, Lda., a parcela de terreno destinada a construção urbana, sita no lugar de Belo Horizonte, freguesia de Lamaçães, concelho de Braga, designada pelo lote nº …, com a área de 380 m2, a confrontar de norte com António, do sul com arruamento, do nascente com Telmo e do poente com a vendedora.

3º A parcela de terreno designada pelo lote n° …, com a área de 365 m2, sita no mesmo lugar, a confrontar de Norte com António, do Sul com arruamento, do Nascente com Telmo e do Poente com a firma vendedora.

4º Os autores construíram nessas mesmas parcelas de terreno, a expensas exclusivas suas, o prédio urbano destinado a habitação, composto de casa e rés do chão e andar, com a área coberta de 143,20 m2 e logradouro com 599,80 m2, inscrito na matriz predial urbana sob o artº 2… e descrito na 1ª Conservatória do registo Predial de Braga sob o número 001…Lamaçães.

5º Decorreram mais de vinte anos e os autores procederam à edificação do correspondente prédio urbano, da referida casa de habitação que nessas parcelas de terreno se encontra implantada.

6º Decorrido esse lapso de tempo, os autores, por eles e antepossuidores, no tocante a essa casa de habitação e, antes da sua construção, no tocante às parcelas de terreno que lhe correspondem.

7º As deram de arrendamento, e delas receberam as rendas respectivas e, quando as não arrendaram, utilizaram-nas para os destinos a que estavam afectas, bem como, procederam às obras de conservação de que careceram e pagaram o seu custo.

8º Pagaram as contribuições e demais encargos que lhes eram inerentes e tudo isto tem sido levado a cabo pelos autores e antepossuidores, de dia e de noite sem oposição de ninguém, na frente de toda a gente e na convicção de serem seus únicos e exclusivos donos.

9º Os réus são donos e legítimos possuidores do prédio rústico – parcela de terreno para construção com a área de 2129 m2, designado pelo lote …, Dadim, Sub Veigas ou Sobreveiga, inscrito na matriz predial urbana sob o artº 5…- Nogueiró e descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Braga sob o nº 002….

10º Que confronta do lado poente com o terreno dos autores, descrito no facto 1º.

11º Os réus, por contrato de compra e venda, adquiriram a António, casado com Laurinda, o prédio rústico, denominado “Quinta da …”, sita em Nogueiró, Braga, descrita na Conservatória do Registo Predial respectiva com o nº 002….

12º Tratava-se de um terreno agrícola.

13º Após ter sido emitido o alvará de loteamento n° 2…/94 de 16 de Agosto 1994.

14º Os réus lotearam a acima referida “Quinta de …” e constituíram de 16 lotes de terreno, numerados de 1 a 16, para neles serem construídas outras tantas habitações unifamiliares, isoladas, de dois pisos, para garagens e habitação.

15º Ficando integrado no domínio público municipal uma parcela de terreno com a área total de 2758 m2.

16º Constituída por 1946,75 m2 para arruamentos e por 811,25 m2 para passeios.

17º Fazendo parte deste loteamento a parcela de terreno, o lote …, referido supra, que continua a pertencer aos réus.

18º São decorridos mais de vinte anos que os réus, por eles e antepossuidores, têm cultivado o referido prédio e recebidos os respectivos frutos.

19º Dele retirando todas as utilidades a que se destina e que produz.

20º Quando não o cultivaram directamente deram-no de arrendamento e dele receberam as respectivas rendas, sempre custearam as despesas com a sua conservação, pagaram as contribuições, impostos e demais encargos devidos e a ele inerentes.

21º Tudo isto levado a cabo na frente de toda a gente, de dia e de noite, sem oposição de ninguém e com ânimo de serem exclusivos donos.

22º A maior parte das águas pluviais que caía na anteriormente existente Quinta da …, situada num plano superior relativamente ao prédio dos autores, caia e infiltrava-se no solo da própria quinta.

23º A restante parte dessas águas escoava naturalmente, de forma uniforme pelos terrenos situados no plano inferior, entre os quais se incluía o prédio dos autores.

24º Sem nunca ter causado quaisquer danos.

25º A realização das obras de loteamento da referida Quinta da … pelos réus envolveu movimentação de terras e alteração do relevo.

26º Com a alteração do relevo, a construção dos passeios em betão, de arruamentos asfaltados, parte das aguais pluviais deixou de se infiltrar no solo como anteriormente.

27º A parcela de terreno referida nos factos 9º e 10º é delimitada, pelo seu lado poente, ou seja, pelo lado que confina com o terreno dos autores descrito no facto 1º, por um muro de suporte existente desde há mais de cem anos.

28º Uma vez que se trata de parte do muro que delimitava a anteriormente existente Quinta da ….

29º Muro esse de sustentação de terras, de pedra solta, com cerca de quatro metros de altura.

30º Em Setembro de 2002 verificou-se a ruptura de uma conduta de água pública situada no passeio público que ladeia, a nascente, o prédio dos réus, as quais acabaram por invadir o terreno dos réus, arrastando enormes quantidades de água e exercendo pressão muito forte sobre o muro, o qual veio a derrocar parcialmente, arrastando enormes quantidades de lama que cobriu parte do logradouro dos autores.

31º Os autores por diversas vezes interpelaram os réus a procederem à reconstituição do muro.

32º Os réus recusaram-se a aceder a essas solicitações dos autores, declinando qualquer responsabilidade pelos danos causados aos autores.

33º As obras do loteamento, movimentação de terras e construção de passeios ocorreram até cerca do ano de 1993.

34º Aquando da realização das obras de loteamento os réus e os autores celebraram um acordo para que estes autorizassem a passagem pelo seu prédio de colectores de saneamento de águas pluviais.

35º Tendo os réus despendido uma quantia em dinheiro por essa autorização, em obras que realizaram no prédio dos autores.

36º Aquando da realização do loteamento os réus construíram e implantaram condutas de escoamento de águas pluviais e de saneamento.

37º A conduta referida no facto 30º não é propriedade dos réus.

38º Após o rebentamento da conduta referida no facto 30º, a sua reparação foi efectuada pela AG, a quem cabe a respectiva manutenção.

39º O loteamento efectuado pelos réus foi objecto de recepção definitiva.

40º Em Setembro de 2002, na altura em que rebentou a dita conduta pública, houve chuvas muito intensas em todo o país e também na zona de Braga, onde se situam os prédios em questão, que provocaram o arrastamento de água e lama por vários prédios, incluindo o dos réus, originando o rebentamento de algumas condutas e enxurradas.

Fundamentação de direito.
É em face desta materialidade que cumpre apreciar e decidir tendo sempre em vista as questões suscitadas pelos recorrentes, que, como resulta do supra exposto, se subsumem, no essencial, a duas:

- Apreciar de contradição eventualmente existente entre a fundamentação de facto e a de direito, bem como de outras contradições que se afigurem existir.

- Apreciar da incorrecta interpretação do artigo 1350, do C. Civil.

E, porque entendemos que ambas as questões se encontram interligadas entre si, consistindo a sua abordagem na análise da mesma factualidade e na efectuação de um mesmo enquadramento jurídico, procederemos ao seu tratamento de um modo conjunto.    

Ora, como resulta da materialidade supra exposta, na presente acção está em causa o ressarcimento de danos materiais (através de restauração natural ou de compensação material), provocados por águas emergentes de um conduta de águas públicas que entrou em ruptura, e que invadiram o terreno dos réus, arrastando enormes quantidades de água e exercendo pressão muito forte sobre o muro aí existente, o qual veio a derrocar parcialmente, arrastando enormes quantidades de lama que cobriu parte do logradouro dos autores.
Das conclusões do recurso interposto, ressaltam como evidentes as razões da discordância dos recorrentes para com a decisão proferida nos autos, e que, conforme aí vem referido, são as seguintes:

-“ Provou-se que foi esse rebentamento da conduta de água pública que originou a derrocada daquele muro e, por isso, a sentença faz uma incorrecta aplicação da matéria provada decidindo de forma contrária ao que se provou.

- A sentença dá ainda como provado que (ponto 30º): “Em Setembro de 2002 verificou-se a ruptura de uma conduta de água pública situada no passeio público que ladeia, a nascente, o prédio dos réus, as quais acabaram por invadir o terreno dos réus, arrastando enormes quantidades de água e exercendo pressão muito forte sobre o muro, o qual veio a derrocar parcialmente, arrastando enormes quantidades de lama que cobriu parte do logradouro dos autores”.

- Não se pode dizer, como se faz na sentença, que “não resulta demonstrado que esta não ocorreu por culpa dos réus ou que, mesmo que estes tivessem usado da diligência devida, a queda se teria verificado na mesma e, com a mesma, os danos inerentes…”, pois quem tinha de provar a culpa dos réus, ou a inércia dos réus na conservação e reparação do muro, eram os autores, e isso nunca o provaram!

- A sentença interpretou de forma incorrecta o disposto no art. 1350º do CC..

- Diz-se na sentença que nos termos deste artigo caberia aos autores a reparação do muro, por serem eles os donos do mesmo. Cremos no entanto que não é isso que resulta do art. 1350º do CC, pois o que aí se diz é que a reparação deverá ser exigida á pessoa responsável pelos danos. No caso em apreço, a pessoa responsável é uma pessoa colectiva, a AG, dona da conduta de água pública que rebentou e provocou a derrocada do muro”.
Ora, de harmonia com o disposto no artigo 1350, do Código Civil, “se qualquer edifício ou obra oferecer perigo de ruir, no todo ou em parte, e do desmoronamento puderem resultar danos no prédio vizinho, é lícito ao dono deste exigir da pessoa responsável pelos danos, nos termos do artigo 492, as providências necessárias para eliminar o perigo.”   

Como referem P. de Lima e A. Varela[1], “as ameaças devem provir de um edifício ou outra obra. Pode tratar-se de uma casa, mas também pode tratar-se de um muro, de uma fonte, de um aqueduto, de um pilar, de uma antena, de um pára-raios, de uma piscina que pela sua ruína possa provocar infiltrações nocivas ao prédio vizinho”, (…) e “o receio do proprietário tem de ser fundado, e, para isso, devem ser analisados factos objectivos”, (…) havendo as providências de ser “pedidas a quem for responsável pelos prejuízos, nos termos do artigo 492”, sendo que, são responsáveis pelos prejuízos o proprietário ou possuidor, ou a pessoa obrigada, por lei ou negócio jurídico, a conservar ao edifício ou obra, se a ameaça de ruína resultar exclusivamente de defeitos de conservação.”         

Em conformidade com o disposto no artigo 492, nº 1, do Código Civil, “o proprietário ou possuidor de edifício ou outra obra que ruir, no todo ou em parte, por vício de construção ou defeito de conservação, responde pelos danos causados, salvo se provar que não houve culpa sua parte ou que, mesmo com a diligência devida, se não teriam evitado os danos.”   

A propósito deste último normativo escrevem P. de Lima e A. Varela[2] que se estabelece “neste artigo, como no anterior e no seguinte, uma mera presunção de culpa, e não uma responsabilidade objectiva do proprietário ou possuidor. Estes podem fazer a prova de que não tiveram culpa ou de que, mesmo com a diligência devida, se não teriam evitado os danos.

        Tecidos estes breves considerandos passemos agora á análise da situação em apreço.

Da materialidade supra descrita resulta que a maior parte das águas pluviais que caía na anteriormente existente Quinta da …, situada num plano superior relativamente ao prédio dos autores, caia e infiltrava-se no solo da própria quinta, e a parte restante dessas águas escoava naturalmente, de forma uniforme pelos terrenos situados no plano inferior, entre os quais se incluía o prédio dos autores, sem nunca ter causado quaisquer danos.

A realização das obras de loteamento da referida Quinta da … pelos réus envolveu movimentação de terras e alteração do relevo e, com a alteração do relevo, a construção dos passeios em betão, de arruamentos asfaltados, parte das aguais pluviais deixou de se infiltrar no solo como anteriormente.

Mais se apurou que a parcela de terreno referida nos factos 9º e 10º é delimitada, pelo seu lado poente, ou seja, pelo lado que confina com o terreno dos autores descrito no facto 1º, por um muro de sustentação de terras, de pedra solta, com cerca de quatro metros de altura.

Em Setembro de 2002 verificou-se a ruptura de uma conduta de água pública situada no passeio público que ladeia, a nascente, o prédio dos réus, as quais acabaram por invadir o terreno dos réus, arrastando enormes quantidades de água e exercendo pressão muito forte sobre o muro, o qual veio a derrocar parcialmente, arrastando enormes quantidades de lama que cobriu parte do logradouro dos autores.

Nessa mesma data, na altura em que rebentou a dita conduta pública, houve chuvas muito intensas em todo o país e também na zona de Braga, onde se situam os prédios em questão, que provocaram o arrastamento de água e lama por vários prédios, incluindo o dos réus, originando o rebentamento de algumas condutas e enxurradas.

Apurou-se ainda que os autores, por diversas vezes, interpelaram os réus a procederem à reconstituição do muro, os quais, contudo, sempre se recusaram a aceder a essas solicitações, declinando qualquer responsabilidade pelos danos causados aos autores.

Após o rebentamento da conduta referida no facto 30º, a sua reparação foi efectuada pela AG, a quem cabe a respectiva manutenção.

Ora, como é consabido, a responsabilidade civil pressupõe culpa e, no caso de situação extracontratual, o lesado tem ónus de prova de factualidade que demonstre culpa do alegado lesante: artigos 487 nº 1 e 483 nº 1 do Código Civil.

E, assim sendo, dúvidas não restam de que, perante a demonstração de um vício de construção ou defeito de conservação da obra, é sobre aquele impende o dever de proceder à sua conservação que recai a obrigação de indemnizar os danos, a não ser que demonstre que não houve culpa da sua parte ou que, mesmo que tivesse utilizado de toda a diligência devida, os danos se produziriam de igual modo.  

Esta situação (prevista no artigo 492) configura uma daquelas em que o lesado beneficia de uma presunção de culpa do lesante, ou seja, é sobre este último que impende o ónus de afastar essa mesma presunção, constituindo substrato da previsão contida neste artigo, a existência de uma perigosidade da anomalia como, por natureza, será o ruir do edifício ou outra obra.

Todavia, a presunção de culpa do alegado lesante, de modo algum pode ignorar ou afastar os pressupostos contidos nessa mesma disposição legal e, designadamente, os pressupostos da própria presunção de culpa do alegado lesante (no caso, os RR.), cujo ónus da respectiva prova recai sobre o lesado (no caso, os AA.), recaindo sobre aquele o ónus da prova da ausência de culpa.

Assim, e como se refere no acórdão do S.T.J. de 17/3/77[3], o art. 492º, nº 1, do Cód. Civil, estabelece uma presunção de culpa do proprietário ou possuidor de edifício ou outra obra que ruir, no todo ou em parte, por vício de construção ou defeito de conservação, para o efeito de o fazer responder pelos danos causados, sendo necessária, para haver tal presunção de culpa, a prova de que a ruína foi devida a um vício de construção ou a falta de manutenção, incumbindo ao autor esta prova, uma vez que incide sobre factos constitutivos do seu direito de indemnização - art. 342º do Cód. Civil.

Ora, analisada a materialidade supra descrita, constata-se que não foi efectuada qualquer prova e, consequentemente, também não logrou demonstração, que a ruína do muro resultou de um vício de construção ou de falta ou deficiente manutenção, ou sequer, a simples existência de qualquer destes vícios ou defeitos, ainda que sem qualquer nexo estabelecido com essa mesma ruína do muro.

E assim sendo, e salvo o muito e devido respeito, desde logo, a presente acção não poderia ter sido julgada procedente.

Mas não apenas por este motivo a presente acção está votada ao insucesso.

Na verdade, como (e mais uma vez, referem Pires de Lima e A. Varela[4] “a responsabilidade prevista neste artigo (492, do C. Civil) não exclui a responsabilidade que derive dos princípios gerais, pois aquela tem o fim de aumentar, e não de diminuir as garantias dos lesados.

Por conseguinte, se alguém, embora não seja o proprietário ou possuidor do edifício ou obra, tiver ilicitamente e com culpa causado o dano, é responsável por este, nos termos gerais.”  

Ora, na presente situação, e como supra se referiu, a ruína do muro resultou da ruptura de uma conduta de águas públicas situada no passeio público que ladeia, a nascente, o prédio dos réus, as quais acabaram por invadir o terreno dos réus, arrastando enormes quantidades de água e exercendo pressão muito forte sobre o muro, o qual veio a derrocar parcialmente.

Ruptura essa que, como resultou também demonstrado, se ficou a dever a chuvas muito intensas caída também na zona de Braga, onde se situam os prédios em questão, que provocaram o arrastamento de água e lama por vários prédios, incluindo o dos réus, originando o rebentamento de algumas condutas e enxurradas, e designadamente, da acabada de referir.

Destarte, e pelas razões acabadas de expender, o recurso interposto haverá de proceder, com a consequente revogação da decisão recorrida.

Sumariando o acórdão, nos termos do art. 713º, nº 7 do C.P.C.:

I- A responsabilidade civil pressupõe culpa e, no caso de situação extracontratual, sobre o lesado impende o ónus de prova de factualidade que demonstre culpa do alegado lesante: artigos 487 nº 1 e 483 nº 1 do Código Civil.

II- A situação prevista no artigo 492, do Código Civil configura uma daquelas em que o lesado beneficia de uma presunção de culpa do lesante, sendo, assim, sobre este último, que impende o ónus de afastar essa mesma presunção, resultante da existência de uma perigosidade da anomalia como, por natureza, será o ruir do edifício ou outra obra.

III- No entanto, a presunção de culpa do lesante, não pode ignorar ou afastar os pressupostos contidos nessa mesma disposição legal e, designadamente, os pressupostos da própria presunção de culpa do lesante, cujo ónus da respectiva prova recai sobre os lesado.

IV- Assim, para que exista uma presunção de culpa do proprietário ou possuidor de edifício ou outra obra que ruir, no todo ou em parte, necessário se revela que o lesado demonstre a existência de um vício de construção ou defeito de conservação, ou seja, que o lesado demonstre que a ruína foi devida a um vício de construção ou a falta de manutenção, uma vez que sobre ele incide o ónus da prova dos factos constitutivos do seu direito de indemnização - art. 342º do Cód. Civil.

V- A responsabilidade prevista neste artigo 492, do C. Civil, não exclui a responsabilidade que derive dos princípios gerais, uma vez que aquela tem o fim de aumentar, e não de diminuir as garantias dos lesados.

IV- DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os juízes desta secção cível em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar, na íntegra, a decisão recorrida, absolvendo-se os RR. do pedido.

Custas pelos Apelados.

Guimarães, 16/ 02/2012.

Jorge Teixeira,

Manuel Bargado

Helena Melo


[1] Cfr. Código Civil Anotado, 2ª edição, Vol. III, pg. 189, 
[2] Cfr. Ob. cit., 3ª ed., pg. 467.
[3] Cfr. Ac. Do S.T.J., in BMJ, vol. 265º, pg. 223, e ainda, entre muitos outros, os acórdãos do S.T.J. de 28/4/77, in BMJ, vol. 266, pag. 161, e de 6/2/96, CJ/STJ, Ano 1996, vol. 1º, pg. 77.
[4] Cfr. Ob. Cit., vol. I, pgs. 467 e 468.