Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
243/10.9TBBCL.G1
Relator: ESPINHEIRA BALTAR
Descritores: SOCIEDADE ANÓNIMA
ADMINISTRADOR
CESSÃO DE QUOTA
NEGÓCIO CONSIGO MESMO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/27/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1- A nulidade consignada no artigo 668 n.º 1 al. c) do CPC assenta no facto de haver uma oposição entre os fundamentos e a decisão, que se concretiza no facto desta ser num determinado sentido e concretizar-se em sentido oposto, violando-se as regras da lógica, o que não ocorreu no caso dos autos.
2 – No caso de uma sociedade anónima ter apenas um administrador, o artigo 397 n.º 2 do CSC deve ser interpretado no sentido de que a autorização do negócio entre a sociedade e o administrador deverá ser dada pela sociedade através duma deliberação social, em assembleia geral.
3 – O parecer favorável do órgão fiscal deve ser expresso em documento e fazer parte da escrituração da sociedade para poder ser fiscalizado pela sociedade ou por qualquer sócio, individualmente.
Decisão Texto Integral: Acordam em Conferência na Secção Cível da Relação de Guimarães

U… SA. demandou A… e mulher M… pedindo para:
1 – Serem declaradas nulas as cessões de quotas efectuadas ao Réu marido e à sua mulher a Ré M…, por aplicação directa do disposto no n.º 2 do artigo 397 do CSC.
2 – Ser declarado reduzido o contrato de sociedade da S… à participação da Autora, sendo declarado nula a participação do Réu marido, em ambos os casos por igual violação do disposto no mesmo código e artigo.
3 – Pagarem à Autora a quantia de 21.466€ a título de juros e compensação pela utilização e disponibilidade dos 100 mil euros que, entre Maio de 2008 e Dezembro de 2009, foram por estes desviados da sociedade, e aplicados em depósito cativo de contrato-garantia em negócio da sociedade S….
4 – Pagarem os juros e despesas incorridas e a incorrer em função do financiamento bancário à sociedade Autora, donde saíram os fundos desviados na sua utilização pelos Réus, a determinar em liquidação de sentença.
5 – Ser concedido à Autora o direito a exercer a preferência na aquisição da quota de J…, nas exactas condições em que esta foi realizada.
6 – Serem mandados anular e rectificar todos os registos efectuados na respectiva Conservatória do Registo Comercial que se tornem incompatíveis com os pedidos ora formulados.

Alega, em síntese, que o réu marido, enquanto administrador único da autora, constituiu a sociedade S… Lda., em que 50% do capital ficou para a autora e a outra parte foi dividida em duas quotas em que uma ficou para o réu marido e a outra para um terceiro, que acabou por a vender, mais tarde, ao réu marido, tendo poderes para a criação dessa sociedade, reservando para a autora uma quota de 50%, e assumindo a gerência da mesma.
E, posteriormente, dividiu a quota da autora em duas, uma no valor de 1.000€ e a outra no de 4.000€, tendo adquirido, pelo valor nominal a de 1.000€ e vendido à sua esposa, aqui ré, a de 4.000€, sem ter dado conhecimento à sociedade destes negócios, nem ter parecer favorável do órgão de fiscalização.
E após esta alienação, realizou um negócio através de fundos da autora em proveito da S… Lda. causando àquela prejuízos.

Os réus defenderam-se por excepção dilatória suscitando a ilegitimidade da autora e impugnação.

A final foi julgada improcedente a excepção dilatória e julgada parcialmente procedente a acção, sendo declaradas nulas as cessões de quotas a favor dos RR., no capital social da sociedade comercial por quotas S… Lda., devendo regressar à esfera patrimonial da autora; e ordenada a rectificação, na Conservatória do Registo Comercial, do registo daquela sociedade comercial, no que se refere aos sócios e respectivas quotas; no mais foram os réus absolvidos dos pedidos formulados pela autora.

Inconformados com o decidido, os réus interpuseram recurso de apelação, formulando conclusões.
Não houve contra-alegações.

Cumpre decidir.
Damos como assentes os factos consignados na decisão recorrida que passamos a transcrever:
1.- O teor da certidão de matrícula da Autora, constante de folhas 16 a 19 dos autos que, por brevidade, se dá aqui por integralmente reproduzida (alínea A) da “Matéria Assente”).
2.- Os réus são casados entre si no regime de comunhão de adquiridos (alínea B)).
3.- A sociedade Autora, representada pelo Réu marido, em 07-05-2008, através de escritura notarial, tornou-se sócia da sociedade “S…, Lda.”, que tem a sua sede na Rua …, Vila Nova de Famalicão, com o NIPC 508 542 111, com uma quota de 5.000,00 euros num capital social de 10.000,00 euros (alínea C)).
4.- Sendo restantes sócios o próprio Réu marido, e ainda um terceiro sócio de nome J…, ambos com uma quota de 2.500,00 cada um (alínea D)).
5.- Tem tal sociedade por objecto o comércio a retalho de combustíveis em postos de combustíveis e outros (alínea E)).
6.- O Réu marido foi autorizado pela assembleia-geral de sócios da Autora, a subscrever cinquenta por cento de tal sociedade (alínea F)).
7.- E a fazer-se nomear gerente da mesma (alínea G)).
8.- A sociedade “S…” adquiriu e tem em exploração uma estação de serviço e posto de abastecimento de combustível que se situa no…, Vila Nova de Famalicão (alínea H)).
9.- O posto tem contrato de representação de combustíveis e óleos da “CEPSA”, tem quatro ilhas de combustível comum, uma outra com mangueira de alto débito de gasóleo, outra de abastecimento de combustível agrícola, um túnel de lavagem automática de viaturas com máquina nova topo de gama, uma oficina de lubrificações; uma cafetaria / bar com quiosque de jornais (alínea I)).
10.- O Réu marido não deu conhecimento aos accionistas, nem em consequência foi autorizado, de que ele próprio e pessoalmente iria subscrever quotas na sociedade identificada em 3. (artigo 1º. da base instrutória)
11.- O Réu marido, em acto apresentado a registo em 20/05/2008 e enquanto administrador único da sociedade Autora, decidiu dividir a quota da Autora em tal sociedade, em duas partes, uma no valor nominal de quatro mil euros e outra no valor nominal de mil euros, no mesmo acto tendo "vendido" a si próprio a quota de mil euros (artigo 2º.).
12.- E de seguida, por acto que fez registar em 24 de Setembro de 2008, "vendeu" a quota da Autora no valor de quatro mil euros, à sua mulher, a ora igualmente Ré (artigo 3º.).
13.- Operações que se realizaram pelos valores de € 1.000,00 e € 4.000,00, respectivamente (artigo 4º.).
14.- Os actos referidos em 11., 12., e 13., não foram autorizados pelos accionistas da Autora, nem foram comunicados previamente ao seu fiscal único, nem foram objecto de qualquer parecer por parte deste (artigo 5º.).
15.- Os actos referidos em 11., 12., e 13., constam dos documentos da contabilidade da Autora, aos quais o seu administrador R… teve acesso no ano de 2009 (artigo 6º.).
16.- O Réu A… pediu a M… a quantia de € 250.000 pela venda da estação de serviço de…, referida em 8. (artigo 10º.).
17.- O mesmo Réu pediu àquele M…, ainda, a quantia de € 10.000 pela cessão da posição no contrato de leasing relativo à máquina de lavar automóveis existente naquela estação de serviço, referida em 8. (artigo 11º.).
18.- Na proposta de venda que fez a M… o Réu A… excluía do negócio dois veículos automóveis que a “S… Ldª.” possuía, sendo um “Ford Focus Station” e um “Ford Smax”, referindo que aquele tinha sido comprado a dinheiro e este tinha sido comprado em regime de leasing (artigo 13º.).
19.- O Réu marido não apresentou as contas relativas ao ano de 2008 (artigo 14º.).
20.- O Réu marido, enquanto administrador único da sociedade contraiu financiamento bancário junto do “BCP Banco Millenium”, agência de Lamaçães através da modalidade de Conta Corrente Caucionada, até ao montante de 250 mil euros, dando de hipoteca imóvel que é pertença da sociedade (nos termos do documento de fls. 97 a 99, cujo teor se dá aqui por reproduzido) (artigo 15º.).
21.- Tendo de tal conta corrente levantado e depositado em conta da sociedade, na modalidade de depósito a prazo, no Banco Finibanco, agência de Lamaçães, a quantia de, pelo menos, cem mil euros, para que servisse de contragarantia à prestação de garantia dada por aquele banco à sociedade “CEPSA”, no âmbito do contrato de fornecimento de combustível de que beneficia a “S…, Ldª.” (artigo 16º.).
22.- O valor de cem mil euros referido em 21., já se encontra disponível para a Autora pelo menos desde 03/11/2009 (artigo 17º.)
23.- Nem os Réus, nem outros accionistas seus familiares, foram convocados ou tiveram conhecimento da realização da assembleia-geral, (realizada em 22 de Janeiro de 2009), em cuja acta se diz terem estado presentes todos os accionistas (artigo 20º.).
24.- O actual administrador da Autora, R…, recebeu, pelo menos nos primeiros meses do ano de 2009, cheques da Autora, assinados e emitidos pelo Réu (artigo 21º.).

Das alegações ressaltam as seguintes questões, a saber:
1 – Se a decisão recorrida está ferida da nulidade prevista no n.º 1 da al. c) do artigo 668 do CPC, consubstanciada na oposição existente entre o decidido e os fundamentos.
2 – Se o réu marido, enquanto administrador único da autora não tinha que comunicar, previamente, a intenção do negócio de cessão das quotas da autora para si e sua esposa, ao abrigo do disposto no artigo 397 n.º 2 do CSC.
3 – Se houve, tacitamente, um parecer favorável do fiscal único à operação de cessão de quotas que o réu marido levou a cabo e se este é suficiente para os termos do artigo 397 n.º 2 do CSC.

Iremos conhecer das questões enunciadas.
1 –Os réus suscitam a nulidade da sentença prevista no artigo 668 n.º1 al. c) do CPC, por existir oposição entre os fundamentos e a decisão no que tange à cessão das quotas da autora.
A nulidade consignada no artigo 668 n.º 1 al. c) do CPC assenta no facto de haver uma oposição entre os fundamentos e a decisão, que se concretiza no facto desta ser num determinado sentido e concretizar-se em sentido oposto, violando-se as regras da lógica.
Analisando a sentença nesta parte, constata-se que o julgador enunciou as regras jurídicas que considerou aplicáveis ao caso, interpretou-as e aplicou-as ao caso concreto, subsumindo os factos ao direito. Em todo este processo está patente um raciocínio lógico, em que os fundamentos invocados tanto no plano fáctico como no jurídico levam à decisão concretizada. O julgador não se desviou da decisão expectável. Pelo contrário, conduziu a fundamentação para a decisão que tomou. Poderá haver um erro de julgamento na interpretação e aplicação ao caso do artigo 397 n.º 2 do CPC. Mas isto é uma questão diferente do vício intrínseco da decisão consubstanciado na violação das regras da lógica.

2 – Esta questão incide sobre a necessidade ou não do administrador único ter de comunicar, previamente, à sociedade o projecto de negócio, em que ele seja um dos interessados e o outro a sociedade.
O artigo 397 n.º 2 do CSC prevê apenas a situação em que haja mais que um administrador, ao referir-se ao conselho de administração. Este normativo, ao cominar com a nulidade a falta de autorização prévia do conselho de administração e a omissão de parecer favorável do órgão fiscal a um negócio entre o administrador e a sociedade, pretende criar as condições de transparência e de defesa dos interesses da sociedade, prevenindo a fraude ou a tentação do administrador em defender mais os seus interesses do que os da sociedade que gere. Visa, essencialmente, sanar os potenciais conflitos de interesses existentes nesses negócios, através dum controlo de dois órgãos sociais.
Mas será que no caso de administração singular não é exigível o controlo da sociedade para se atingir o mesmo fim? Julgamos que é, porque se assim não fosse, o administrador único teria todo o poder executivo concentrado em si, sem qualquer controlo, quando é mais exigível esse controlo, nos casos de negócios entre o administrador e a sociedade. E esse controlo deverá ser realizado pela sociedade, não através do conselho de administração por inexistente, mas pelos sócios em geral, enquanto detentores do capital social, através duma deliberação social. Daí que o artigo 397 n.º 2 do CSC deva ser interpretado, no sentido de abarcar as situações de administrador único com a ressalva de que a autorização deve ser dada não por um conselho inexistente mas pela assembleia-geral, órgão máximo da sociedade. Julgamos que esta interpretação é a que melhor se coaduna com a teleologia da norma, que é rigorosa no controlo destes negócios. E é a que consta da decisão recorrida, quando aponta como factos provados “ aqueles actos não foram autorizados pelos accionistas da autora.” e os subsume ao artigo 397 n.º 2 do CSC.

3 – Os réus colocam a questão do parecer favorável tácito do fiscal único, que não cumpriu o seu dever de vigilância, de fiscalização, que não emitiu o seu parecer de forma expressa através de documento por mera incúria sua, pelo que o seu comportamento omissivo se traduz numa aceitação tácita, ou seja, num parecer favorável tácito.
É uma questão nova que não foi suscitada nem nos articulados, nem durante o processo, não tendo sido objecto de decisão por parte do tribunal recorrido. E isto está patente na contestação, mais concretamente nos artigos 13 e 14, onde os réus afirmam, de forma categórica, que contactaram todos os sócios e obtiveram acordo sobre a proposta de cessão das quotas e o fiscal único deu seu parecer favorável. Isto é a expressão da impugnação motivada ao peticionado pela autora sobre este ponto.
Como questão nova que é, a Relação não pode conhecer, porque só se deve debruçar sobre as questões suscitadas ao longo dos autos, até à decisão.
Mesmo num entendimento contrário, o artigo 397 n.º 2 do CSC exige um parecer favorável do órgão fiscal, que deve ser expresso num documento, para fazer parte da escrituração da sociedade, com vista a poder ser alvo de fiscalização por parte dos sócios individualmente ou em assembleia geral. Pois trata-se de matéria muito melindrosa em que o primeiro controlo é feito através do órgão fiscal, mas para apuramento de eventuais responsabilidades no parecer, é indispensável que este esteja transcrito, faça parte da escrita da sociedade. Daí as exigências previstas no n.º 4 do mesmo artigo. O que quer dizer que não é permitido o parecer tácito, como os réus pretendem fazer crer.
Assim sendo é de concluir que não foi cumprida a formalidade prescrita no artigo 397 n.º 2 do CSC, pelo que se verificam os pressupostos da nulidade, como foi decidido na primeira instância.

Concluindo: 1- A nulidade consignada no artigo 668 n.º 1 al. c) do CPC assenta no facto de haver uma oposição entre os fundamentos e a decisão, que se concretiza no facto desta ser num determinado sentido e concretizar-se em sentido oposto, violando-se as regras da lógica, o que não ocorreu no caso dos autos.
2 – No caso de uma sociedade anónima ter apenas um administrador, o artigo 397 n.º 2 do CSC deve ser interpretado no sentido de que a autorização do negócio entre a sociedade e o administrador deverá ser dada pela sociedade através duma deliberação social, em assembleia geral.
3 – O parecer favorável do órgão fiscal deve ser expresso em documento e fazer parte da escrituração da sociedade para poder ser fiscalizado pela sociedade ou por qualquer sócio, individualmente.

Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da Relação em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmam a decisão recorrida.
Custas a cargo dos apelantes.
Guimarães, 27 de Fevereiro de 2012