Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3339/12.9TBGMR.G1
Relator: EDGAR GOUVEIA VALENTE
Descritores: PROCESSO DE REGULAÇÃO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
MONTANTE DA PENSÃO
RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/12/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I – O tribunal não pode abster-se de fixar a prestação de alimentos a cargo de um dos progenitores pela circunstância de não lhe serem conhecidos quaisquer rendimentos, devendo decidir se o descendente tem direito a alimentos e, na afirmativa, atribuir um montante, recorrendo, caso seja necessário, à equidade.
II – A concreta possibilidade do obrigado à prestação de alimentos a cumprir é questão a apurar em execução de sentença, sede em que poderá ser desencadeado o recurso ao Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores.
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

1 – Relatório.
M… intentou contra J… acção de regulação do exercício das responsabilidades parentais atinentes à menor C….
Realizada a conferência de pais a que alude o artº 175º da OTM, não foi obtido o acordo entre os progenitores, por ambos pretenderem a guarda da menor.
Foram notificados os progenitores, nos termos e para os efeitos do disposto no artº 178º OTM; ambos apresentaram alegações, mas sendo que, em momento posterior, fizeram juntar aos autos acordo reportado à regulação do exercício das responsabilidades parentais atinentes à C…, acordo esse homologado no que tange à respectiva guarda e às visitas, mas não homologado no que se refere à prestação de alimentos, porquanto não resultava possível das informações colhidas que a progenitora (progenitor não guardião) pudesse prestar alimentos à sua filha.
Procedeu-se à realização de inquérito sobre a situação socio-economica dos progenitores e dos avós da criança.
Após, foi proferida sentença, decidindo “não condenar a requerida no pagamento de qualquer prestação de alimentos a favor da C…”.
Inconformado com esta decisão, o Ministério Público dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo, findando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:
“1 – A sentença ora recorrida, abstém-se de fixar a prestação de alimentos a cargo da progenitora, uma vez que não são conhecidos quaisquer rendimentos.
2 - Compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens – artigo 1878º, nº 1, do Código Civil.
3 - Os alimentos devem ser proporcionados aos meios daquele que houver de prestá-los e às necessidades daquele que houver de recebê-los, conforme dispõe o artigo 2004º, do Código Civil.
4 - A fixação da prestação de alimentos é uma das três questões essenciais a decidir na sentença que regula o exercício das responsabilidades parentais, não devendo os progenitores ficarem desresponsabilizados do dever de contribuir para o sustento do menor.
5 – Assim, na sentença deverá sempre fixar-se a pensão alimentícia e a forma de a prestar, independentemente da precária situação económica do progenitor a quem o menor não fique confiado.
6 – O dever de alimentos aos filhos menores é um verdadeiro dever fundamental dos progenitores, directamente decorrente do artigo 36º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa, sendo um dos componentes em que se desdobra o dever de assistência dos pais para com os filhos menores.
7 - Verificando-se que a capacidade alimentar dos pais se mostra insuficiente ou relapsa, cabe ao Estado substituir-se-lhes, garantindo aos menores as prestações existenciais que lhe proporcionem as condições essenciais ao seu desenvolvimento e a uma vida digna.
8 – Tanto mais, que a primeira condição para que se possa accionar o mecanismo de acesso ao Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores é a fixação judicial do "quantum" de alimentos devidos a cada menor.
9 - A esta interpretação, de fixar a prestação de alimentos, obriga a defesa do superior interesse da criança, já que nos termos do artigo 3° da Convenção dos Direitos da Criança todas as decisões relativas a crianças terão primacialmente em conta os seus interesses.
10 - Acresce que o artigo 180°, nº 1, da Organização Tutelar de Menores, estabelece que na sentença o exercício das responsabilidades parentais será regulado de harmonia com os interesses do menor.
11 - A assim se entender, a protecção social devida a menores ficaria dependente da sua situação económica do devedor, o que nos parece ser manifestamente contrário à filosofia que esteve na base do regime instituído pela Lei 75/98, de 19 de Novembro, acrescendo a violação do princípio da igualdade (cfr. artigo 13° da Constituição da República Portuguesa).
12 – Deste modo, não se afigura possível a intervenção do Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos aos Menores, uma vez que está depende de o devedor ser judicialmente obrigado a prestar alimentos (cfr. artigo 1º da Lei nº 75/98, de 19 de Novembro).
13 - A douta decisão recorrida não defende o superior interesse da criança, interesse este que deve nortear as decisões proferidas no âmbito dos presentes autos, pelo que, dúvidas não se suscitam de que essa defesa impõe que seja fixada prestação de alimentos a cargo da mãe.
14 – Assim, não poderão ser accionados outros obrigados a prestar alimentos à menor, conforme disposto no artigo 2009º, do Código Civil, enquanto não for fixada a prestação de alimentos a cargo da principal obrigada – neste caso a mãe – e a mesma não cumprir tal obrigação. Entretanto, não poderá a criança ficar desprotegida pelo facto de não ser fixada tal prestação de alimentos a cargo da mãe e, dessa forma, impedir-se o accionamento do FGADM.
15 - A decisão recorrida violou o disposto nos artigos 3º da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças, 13º, 36º e 69º, da Constituição da República Portuguesa, 1878º, nº 1, 1905º, 1909º, 2004º, 2006º do Código Civil e 180º da Organização Tutelar de Menores.
16 - A Sentença recorrida deve ser revogada na parte em que se abstém de fixar a prestação de alimentos a cargo da requerida, substituindo-a por outra, que fixe tal prestação em montante não inferior a 100 € (cem euros) mensais, actualizável anualmente de acordo com o índice da taxa de inflação, publicada pelo I.N.E.”
Conclui, pugnado pela concessão de provimento ao recurso, com a revogação da sentença na parte em que se abstém de fixar a prestação de alimentos a cargo da progenitora, e substituindo-a por outra, que fixe tal prestação em montante não inferior a 100 € (cem euros) mensais, actualizável anualmente de acordo com o índice da taxa de inflação, publicada pelo I.N.E.
Não foram oferecidas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
São os seguintes os factos dados como provados na 1ª instância (transcrição):
“a - A C… nasceu em 08.12.2003 e é filha da requerente e do requerido (CAN a fls. 10);
b - A progenitora encontra-se desempregada, a aguardar decisão de concessão do RSI (relatório a fls. 80 ss);
c - A progenitora reside em apartamento arrendado de tipologia T2, pagando mensalmente a título de renda a quantia de €125 (relatório a fls. 80ss);
d - A menor reside com o progenitor numa casa arrendada, de tipologia T2, pela qual é paga mensalmente a quantia de €140 a título de renda (relatório a fls. 84ss);
e - O progenitor é motorista, auferindo mensalmente €746 (relatório a fls. 84 ss).”
2 – Objecto do recurso.
Questão a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações, nos termos do artigo 684º, nº 3 CPC, por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil: consiste em saber se a requerente deve ser condenada a suportar alimentos para a sua filha C… e, em caso afirmativo, qual é o respectivo montante.
3 - Análise do recurso.
O dever de alimentos está englobado no conjunto dos deveres inerentes ao poder paternal, nomeadamente o artº 1878º do CC, ao referir que “compete a ambos os pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros e administrar os seus bens”.
E, estatui o artº 2004º, nº 1 do CC: os alimentos devem ser proporcionados aos meios daquele que houver que prestá-los e à necessidade daquele que houver que recebê-los.
Por outro lado, o artº 2003º do mesmo diploma refere que “1. Por alimentos entende-se tudo o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário; 2. Os alimentos compreendem também a instrução e educação do alimentado no caso de este ser menor”.
Sobre a questão em discussão nos presentes autos, duas posições jurisprudenciais se perfilam:
Assim, “por um lado, há os que defendem que a fixação da pensão de alimentos não é obrigatória nas decisões que regulam o poder paternal, sempre que o obrigado não tiver quaisquer meios para cumprir esse dever de prestar alimentos. Entendendo, que não é possível a fixação da prestação de alimentos, com o argumento de que, cabendo ao autor o ónus de provar os elementos constitutivos do seu direito e não se provando o modo de vida do réu, o tribunal encontra-se impossibilitado de apreciar, por forma a dar cumprimento ao critério da proporcionalidade consagrado no nº 1, do artº 2004, devendo abster-se de fixar qualquer pensão de alimentos, ver entre outros neste sentido Acs RL de 18.1.2007, de 4.12.2008 e de 17.09.2009 e Ac.RP de 25.3.2010, todos in www.dgsi.pt.[1]
Outra corrente jurisprudencial, tem afirmado a primazia dos princípios constitucionais consagrados nos artigos 35º, nº 5 e 69º da CRP, que impõem o dever dos pais de sustentar os filhos e o direito das crianças ao seu desenvolvimento, do que resulta que o dever dos progenitores de prestar alimentos aos filhos menores, previsto nos artigos 1874º e 1878º do CC, só é afastado pela total impossibilidade física de providenciarem tal sustento.” [2]
Em Acórdão proferido na sequência de interposição de recurso de revista excepcional [3], o STJ pronunciou-se, nos termos do artº 721º-A, nº 1, alínea c) do CPC, precisamente sobre a contradição entre os Acórdãos deste TR acima referidos nas notas 1) e 2) sobre a mesma questão fundamental de direito, que é exactamente a que se coloca nos presentes autos.
Sobre tal questão, o STJ decidiu que o “tribunal deve, tal como lhe é pedido, definir se o menor tem direito a alimentos e de acordo com as respectivas necessidades, atribuir um montante, tendo em consideração, com ponderação e recurso a critérios de equidade. Se o obrigado à prestação tem ou não possibilidade de proceder à prestação alimentar fixada é questão a apurar em execução de sentença e que poderá depois desencadear o recurso ao Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores.”[4]
Não se atribuindo aos recursos de revista excepcional, de forma tão vincada, o escopo de uniformização de jurisprudência que a lei defere aos recursos a isso exclusivamente destinados (artº 763º do CPC), nem por isso tal fim está ausente daqueles recursos [5].
Assim, muito embora o acórdão proferido em recurso de revista excepcional (tal como o acórdão uniformizador de jurisprudência, como é entendimento pacífico) não tenha um valor vinculativo para os tribunais, entendemos não poderá deixar de se lhe assinalar uma força persuasiva indiscutível.
Assim, atentos não só os argumentos fundamentadores do decidido no citado ASTJ (para os quais, com a devida vénia, se remete), como também ao conteúdo dos ASTJ no mesmo mencionados (de 08.05.2008, de 05.11.2009 - www.dgsi.pt - de 28.10.2010, proferido no processo 272/06.7TBMTR.P1.S1 - www.dgsi.pt - de 12.07.2011, de 27.09.2011, de 22.05.2012, proferido no processo 5168/08.5TBAMD.L1.S1, de 15.05.2012, proferido no processo 2792/08.0TBAMD.L1.S1 e de 08.05.2013- www.dgsi.pt), que dão corpo a uma corrente não só uniforme como, ao que sabemos, unânime, no sentido decidido, é de adoptar tal entendimento, o que determina a procedência do recurso e a consequente revogação da decisão recorrida.
4 - Dispositivo.
Pelo exposto, os juízes da segunda secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto, revogando-se, consequentemente, a sentença recorrida e determinando-se que o tribunal a quo defina a necessidade de alimentos a prestar por M… à sua filha C…, fixando o respectivo montante.
Sem custas.
Guimarães, 12 de Novembro de 2013
Edgar Gouveia Valente
Paulo Duarte Barreto
Filipe Caroço
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[1] No mesmo sentido, vide também o Acórdão da Relação de Guimarães de 20.11.2012 proferido no processo 2485/10.8TBGMR.G1 (www.dgsi.pt) em que o ora Relator foi adjunto.
[2] Acórdão da Relação de Guimarães de 19.01.2012 proferido no processo 1208/11.9TBGMR.G1 (www.dgsi.pt).
[3] E não, como, certamente por lapso, refere o recorrente (na página 9 da sua alegação – fls. 132 dos presentes autos) em acórdão uniformizador de jurisprudência – regulado no artº 763º e ss do CPC.
[4] Acórdão do STJ (ASTJ) de 22.05.2013 proferido no processo 2485/10.8TBGMR.G1.S1 (www.dgsi.pt).
[5] Neste sentido, vide António Santos Abrantes Geraldes in Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 3ª edição, Almedina, 2010, página 411.