Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1266/09.6TBEPS.G1
Relator: HEITOR GONÇALVES
Descritores: SEGURO OBRIGATÓRIO
SEGURO DE GRUPO
INDEMNIZAÇÃO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
ACTIVIDADE DESPORTIVA
DESVALORIZAÇÃO FUNCIONAL
EXCLUSÃO DE COBERTURA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/15/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: JULGADA PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: 1. O regime do Dec-Lei nº. 146/93, de 26.04, estabelece o seguro obrigatório para todos os agentes desportivos inscritos em federações de utilidade pública desportiva (artigo 2º), cobrindo os riscos “de acidente pessoais inerentes à atividade desportiva, incluindo os decorrentes de transportes e viagens em qualquer parte do mundo” (nº 2 do artº 1º) prevendo no seu artigo 4º como coberturas mínimas o pagamento «de um capital por morte ou invalidez permanente, total ou parcial, por acidente decorrente da actividade desportiva» e «de despesas de tratamento, incluindo internamento hospitalar»
2. O normativo do artigo 4º desse diploma legal tem natureza imperativa, cobrindo todas as desvalorizações funcionais, razão por que não pode considerar-se válida a cláusula geral do contrato que exclui a indemnizações referentes a desvalorizações funcionais inferiores a 10%;
3. Decorre dos normativos dos artigos 426º e 427º do Código Comercial que o contrato de seguro é um contrato formal, regendo-se pelas estipulações da respectiva apólice não proibidas por lei, e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições desse código – são aplicáveis essas normas, entretanto revogadas pelo artigo 6º do DL nº72/2008, que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2009. O artigo 2º (aplicação no tempo) prevê a aplicação do novo regime ao conteúdo de contratos de seguro celebrados anteriormente que subsistam à data da sua entrada em vigor, ou seja, como refere Pedro Romano Martinez, nesses casos “a lei nova não se aplica à formação do contrato, mas tão-só ao seu conteúdo, ou seja, a questões relacionadas com a execução do vínculo” (lei do contrato de seguro, 2011, pág. 25). Ora, nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso – nº1 do artigo 238º do Código Civil.
4. O seguros de grupo do ramo «acidentes pessoais» em análise é de cunho indemnizatório – no dizer de José Vasques, serão «seguros de prestação indemnizatória todos aqueles em que a prestação da seguradora consiste num valor a determinar a partir dos danos resultantes do sinistro, e serão seguros de prestação convencionadas todos os restantes (in Contrato de Seguro, 1999, pág. 47)- figurando nos riscos cobertos a invalidez permanente com um capital de €28.000,00 (além das despesas de tratamento e de funeral).
5. Considerando que o nº1 do artigo 36º das condições gerais prevê que a indemnização pela IPP é determinada pela tabela de desvalorização anexa – ou seja, preside um critério puramente aritmético (multiplicação da IPP apurada pelo valor do capital da apólice) e que nos termos do nº10 é excluída a indemnização quando a desvalorização é inferior a 10%, claramente as condições contratuais excluem do risco coberto os danos não patrimoniais, onde o critério prevalecente é a equidade (artigo 496º, nº4, do Código Civil). É essa a nosso ver e à luz do princípio do artigo 236º do Código Civil, a interpretação autorizada pelas cláusulas da apólice do seguro.
Decisão Texto Integral: acordam no tribunal da relação de guimarães

I.Relatório.
AA pediu a condenação da demandada “… Seguros, SA”, no pagamento da indemnização de €40.079,50, e juros desde a citação, como ressarcimento dos danos sofridos numa partida de jogo de futebol, invocando o seguro de acidentes pessoais na prática desportiva que o seu clube celebrou com a ré seguradora.


A Ré impugnou os factos articulados na petição inicial relativos às lesões e excecionou a obrigação de indemnizar face às cláusulas gerais da apólice, as especiais e as articulares, e conclui pela sua absolvição do pedido no que excede €3.320,00.

Terminados os articulados foram elencados os factos assentes e organizada a base instrutória, e prosseguiu-se nos termos do processo até julgamento, que culminou com a prolação da sentença, julgando a ação parcialmente procedente, condenando-se a ré seguradora a pagar ao autor o montante de €4.440, acrescido de juros de mora à taxa legal em vigor, desde a citação até efectivo e integral pagamento, sendo absolvida do demais peticionado pelo autor.
II. O autor interpõe recurso -pretendendo a condenação da ré a pagar-lhe, para além dos valores já fixados na sentença: 1.680€ a título de indemnização por danos patrimoniais; 6.500,00€ a título de indemnização por danos não patrimoniais; em quantia a liquidar com o tratamento de conservação e fixação das coroas cerâmicas (em cada 15 anos de intervalo de tempo), e com a consulta anual para verificação e limpeza (a partir dos 50 anos), à luz do regime inserto no artigo 609 n.º 2 do CPC, e, em síntese, formula as seguintes conclusões:




1. Foi no âmbito da prática do Desporto que se produziu o evento, coberta por um seguro obrigatório nos termos do DL 146/93, de 26/4 e atualmente do DL 10/2009 de 12/01, que cobre os riscos de acidentes pessoais inerentes à respetiva atividade desportiva.
2. Decidiu bem o Juiz a quo que entendeu existir um “fio condutor, uma solução de continuidade, entre as mencionadas Leis de Bases e os respetivos diplomas de desenvolvimento. A mens legislatoris obriga sempre, através da instituição do seguro obrigatório no âmbito da prática desportiva, a que o beneficiário usufrua da cobertura. Há, assim, uma imperatividade mínima relativamente a este tipo de situações e que, a final, se traduz na desconsideração, na ineficácia das regras inscritas no contrato de seguro e que, de alguma forma, contrariem a fruição da cobertura mínima”, considerando como não escrita a cláusula de capital mínimo.
3. Assente que o acidente aqui em causa correspondeu efectivamente a um acidente desportivo, inerente à atividade desportiva do Recorrente enquanto jogador de futebol, e que provocou ao Recorrente uma incapacidade parcial permanente avaliada em 4 pontos, importa valorar as condições concretas do contrato de seguro no que tange a esse tipo de incidência.
4. A prevalência (se quisermos: a integração automática; a eficácia mediata; a sobreposição) do regime imperativo legal opera aqui, portanto, através da “entrada” no clausulado do conteúdo do regime obrigatório, sendo que esta incidência, compaginada com a parte não afectada (subsistente) da cláusula contendo a redução inadmissível da cobertura e o restante conteúdo contratual, significa o pagamento pela Seguradora Recorrida – isto no que aos danos patrimoniais diz respeito – da parte correspondente do capital fixado nas condições particulares constantes da apólice do seguro (que é – e transcrevemos a cláusula das condições particulares – “morte ou invalidez permanente: até €28.000,00”) aqui determinado através da tabela de desvalorização que faz parte integrante das Condições Gerais da Apólice [no caso a “tabela para servir de base ao cálculo de indemnização devidas por invalidez permanente como consequência do acidente” que consta das “Condições Gerais”, no trecho que se refere a “perda total ou quase total dos dentes com possibilidade de prótese” e indica a percentagem de 10%. Assim cifra-se no produto da multiplicação da do valor da tabela pelo valor mínimo do capital (10 x 28.000 : 100 = 2.800€).
5. Refere-se a indemnização acabada de caracterizar, como dissemos, a danos patrimoniais, importando encarar agora a questão dos danos não patrimoniais, igualmente peticionados pelo Recorrente (sendo que o Recorrente os avalia aí em €6.500,00).
6. O que parece evidente no texto do contrato, não é a exclusão da indemnização de danos não patrimoniais, mas, pelo contrário, a não qualificação da natureza do dano indemnizável e, consequentemente a não exclusão de que o dano a cobrir seja de natureza não patrimonial.
7. Visar o seguro aqui em causa uma cobertura referida ao risco –trata-se de um seguro de pessoas referido aos riscos relativos à integridade física dos praticantes desportivos – não exclui que se indemnizem danos não patrimoniais, desde que estes, como refere o trecho final do nº 1 do artigo 496º do CC “[…]pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”.
8. A questão deve ser equacionada em paralelo relativamente ao regime legal obrigatória deste seguro) estabelecido(a) no DL 10/2009 e ao regime convencional decorrente do texto do contrato. O regime legal decorre aqui, fundamentalmente do texto da alínea a) do nº 2 do artigo 5, que fala, como “cobertura mínima”, no “pagamento de um capital por morte ou invalidez permanente, total ou parcial, por acidente decorrente da actividade desportiva”.
9. Ver aqui (neste texto) uma exclusão da cobertura de danos não patrimoniais, traduz uma restrição do sentido (amplo) da cláusula legal, consistente na introdução de uma distinção onde ela não existe (ubi lex non distinguit, nec interpres distinguere debet).
10. Trata-se, pois, de uma leitura restritiva sem fundamento interpretativo. É certo que uma invalidez é essencialmente uma incapacidade funcional e esta expressa-se, primordialmente, num dano patrimonial, associado desde logo a uma incapacidade para o trabalho.
11. Mas a disposição legal não é exactamente a qualificação do tipo de dano o que faz: fala de um “capital” “pagamento de um capital […]”) que cubra a “morte ou invalidez”. Isto inclui todos os tipos de danos – rectius, não exclui os danos não patrimoniais.
12. E as coisas não se colocam num plano distinto deste quando encaramos o contrato em si mesmo, à luz da ausência do elemento textual traduzido na exclusão de indemnizações referidas a danos não patrimoniais [v. as condições particulares (Coberturas e Capitais –Futebolistas Amadores) do contrato de seguro].
13. Também aqui não se deve distinguir aquilo que o contrato não distingue, valendo, por isso, a regra própria da interpretação de um contrato de seguro, in úbio contra stipulatorum, conforme à qual uma ambiguidade do texto contratual deve ser entendida, no sentido de interpretada, como abrangendo o conteúdo indemnizatório mais amplo, aqui correspondente à não exclusão da cobertura dos danos não patrimoniais. – v. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 08/09/2009 (Dr. Teles Pereira), Processo n.º165/06.8TBGVA.C1 n.º JTRC.
14. Vale isto, enfim, pela afirmação – que apresentará consequências decisórias na presente acção – de que o seguro aqui em causa não exclui, contrariamente ao que pretende a Seguradora, a indemnização por danos não patrimoniais (“danos morais”), sendo que os aqui detectados, pela sua gravidade objectiva (dores, desgosto, tristeza e constrangimento, afectação da auto-imagem física de um jovem, enquanto valor positivo da sua afirmação pessoal) merecem, indubitavelmente, a cobertura do direito.
15. Haverá, pois, que os fixar – que também os fixar –, sendo que, no quadro de uma avaliação equitativa estabelecido no artigo 496º, nº 4 do CC, valorando as incidências deste tipo de dano no quadro das circunstâncias em que o mesmo se verificou, pelo que será adequada uma quantificação em €6.500,00.
16. O Meritíssimo Juiz deu como provado na alínea s) e t) que o recorrente terá que efetuar
tratamento de conservação e fixação das coroas cerâmicas em cada 15 anos de intervalo de
tempo, e uma consulta anual para verificação e limpeza a partir dos 50 anos.
17. Sendo que a sentença é completamente omissa quanto à não condenação da Ré nestas quantias. Assim, sempre teria o Tribunal a quo que condenar a Ré a pagar ao Autor, ora recorrente, a quantia que se viesse a liquidar com o tratamento de conservação e fixação das coroas cerâmicas (em cada 15 anos de intervalo de tempo), e com a consulta anual para verificação e limpeza (a partir dos 50 anos), à luz do regime inserto no artigo 609 n.º 2 do CPC.

A ré seguradora pugna pela manutenção do julgado e em síntese conclui:
1. Não assiste razão ao recorrente de que a incapacidade permanente de 4 pontos atribuída na perícia efetuada pelo INML deve ser equiparada à perda total ou quase total dos dentes prevista na tabela de desvalorizações da apólice e à qual são atribuídos 10%.
2. Reclama também o Recorrente o pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais que fixa em 6.500,00 €. Também neste ponto é manifesta a falta de razão do Recorrente. Não só o contrato de seguro não prevê esta cobertura como não o impõe o DL n" 146/93. Aliás, a atribuição de danos não patrimoniais está na dependência da verificação de uma conduta culposa de outrem.
3. Ora, o intuito da lei foi dar cobertura aos acidentes sofridos pelos praticantes independentemente da existência de conduta culposa de outrem.
4. No que respeita às despesas futuras com tratamentos, e enquadrando¬se tais despesas na cobertura de "Despesas de Tratamento" que tem um capital na apólice de 5.000,00 €, deve ser tida em conta a condenação da Ré no pagamento das despesas já tidas pelo Autor no montante de 3.320,00 €, pelo que o capital disponível para esta cobertura é somente de 1.680,00 €.
III. Matéria de facto que a 1ª instância considerou provada:
a) O Autor foi jogador amador do Palmeiras Futebol Clube, na época de 2008/2009.
b) Em 14 de Dezembro de 2008, pelas 15h e 30m, na freguesia de Vila Chã, Esposende, no decurso do jogo de futebol entre o Palmeiras Futebol Clube e o Desportivo de Vila Chã, o Autor, em disputa com um jogador adversário, levou uma cotovelada na boca, que lhe causou ferimentos.
c)A Ré … Seguros, S.A., celebrou com o Palmeiras Futebol Clube, um contrato de seguro titulado pela apólice nº 0023-10-006075, seguro do ramo “acidentes pessoais–colectivo”, nos termos das disposições constantes das condições gerais, especiais e particulares juntas a fls. 9 e 35-58 dos autos e cujo teor aqui se dá por reproduzido.
d) O Palmeiras Futebol Clube participou o acidente à Ré no dia 16.12.2008.
e) Por carta datada de 09.02.2009 a Ré foi interpelada pela mandatária do Autor nos seguintes termos: “Exmos. Senhores. Na qualidade de advogada de AA, pela presente exponho o seguinte: - O m/ constituinte é jogador de futebol no Palmeiras F.C.. - O referido clube de Futebol celebrou com V/ Exas. um contrato de seguro de acidentes pessoais com a apólice supra referenciada. -No passado dia 14-12-2008 pelas 15h e 30m, na freguesia de Vila Chã, no concelho de Esposende, o m/ cliente sofreu um acidente ficando com os dois dentes superiores frontais partidos. -Segundo o Palmeira F.C. informou já enviou a participação do acidente, no passado dia 16-12-2008. -Pelo exposto, solicito a V. Exas. me informem se pretendem realizar algum exame médico no m/ constituinte, pois o mesmo sente uma profunda vergonha e humilhação em andar em tal estado, pretendendo com a máxima urgência submeter-se às intervenções necessárias para a sua reposição. Aguardando uma resposta, Atentamente, A advogada (..)” (documento junto a fls. 12 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
f) A Ré respondeu à missiva mencionada em F) dos factos assentes por e-mail, datado de 17 de Março de 2009, nos seguintes termos: “No seguimento da V/ carta de 09/02/09, informamos V. Exa. que o acidente sofrido em 14/12/08 pelo Sr. AA está aceite pelos nossos serviços. Face ao exposto, aguardamos o envio dos comprovativos das despesas médicas para posterior análise e reembolso. Desde já grata pela Vossa atenção. Cumprimentos” (documento junto a fls. 14 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
g) As despesas com consultas, tratamentos e demais actos médicos a que o A. foi sujeito até à entrada em juízo desta acção ascenderam a €3.320,00, valor por ele já despendido.
h) A Ré sempre assumiu o pagamento das despesas aludidas em H) dos factos assentes.
i) Como consequência directa e necessária do acidente descrito em B) e C) dos factos assentes o Autor sofreu traumatismo facial, com perda dos dentes incisivos superiores, o que lhe causou dores e mau estado geral.
j) E sofreu hematomas e feridas nos lábios superior e inferior.
j) As raízes dos dentes anteriores ficaram inflamadas.
l) O Autor teve que efectuar limpeza e assepsia das feridas e foi medicado com antibióticos, anti-inflamatórios, analgésicos e gelo.
m) O Autor, devido a dificuldades mastigatórias, teve que realizar uma dieta mole durante os primeiros quinze dias.
n) Em 22 de Dezembro de 2008 colocou coroas fixas para a reabilitação dos quatro incisivos.
o) No dia 5 de Janeiro de 2009, o Autor realizou restaurações provisórias dos quatro dentes incisivos, para diminuir o dano estético e para não continuarem a ferir os lábios.
p) No mesmo dia referido em 7º da base instrutória foram feitos modelos para a futura colocação das coroas cerâmicas.
q) O Autor terá que efectuar tratamento de conservação e fixação das coroas cerâmicas a cada 15 anos de intervalo de tempo.
r) O A. terá que efectuar uma consulta anual para verificação e limpeza a partir dos 50 anos.
s) O Autor ficou durante um mês sem os seus dentes.
t) O Autor ficou com uma I.P.P. de 4 pontos.
u) Com o acidente e durante o período em que teve de se sujeitar aos tratamentos médicos, medicamentosos e hospitalares, o Autor sofreu dores violentas.

IV. Colhidos os vistos, cumpre decidir:
As concretas questões colocadas pelo recorrente nas conclusões de recurso podem ser enunciadas nos seguintes termos:
1ª Qual a percentagem da desvalorização a ter em conta na indemnização a fixar pela incapacidade permanente: os 4 pontos atendidos na sentença, ou os 10% reclamados pelo apelante?
2ª Nos danos patrimoniais devem incluir-se as despesas nos pontos q) e r) dos factos provados - o Autor terá que efectuar tratamento de conservação e fixação das coroas cerâmicas a cada 15 anos de intervalo de tempo, e terá que efectuar uma consulta anual para verificação e limpeza a partir dos 50 anos, condenando-se a demandada na indemnização que se vier a liquidar?
3º A apólice do seguro contempla a atribuição de indemnização a título de danos não patrimoniais?; na afirmativa, qual o seu valor justo e equitativo?
1.Indemnização pela Incapacidade permanente parcial (IPP):
O autor era beneficiário do seguro de grupo desportivo do ramo «acidentes pessoais» que a sua Associação de Futebol de Braga (tomadora do seguro) tinha celebrado com a ré seguradora, quando em 14/12/2008 sofreu o acidente reportado nos autos - no decurso duma partida de futebol entre o Palmeiras Futebol Clube e o Desportivo de Vila Chã, em disputa com um jogador adversário, levou uma cotovelada na boca, que lhe causou ferimentos, e da perda dos dentes incisivos ficou a padecer duma IPP de 4 pontos percentuais.
E a apólice, nº.0023.10.006075, cobria com efeito os riscos que poderiam advir para o autor enquanto praticante amador daquela modalidade desportiva, designadamente a invalidez permanente até €28.000,00, bem como despesas de tratamento até €5.000,00. Porém, a ré seguradora recusou liquidar o risco relativamente à I.P.P., apoiada na cláusula 36ª, nº10, das condições gerais, a qual só contempla as desvalorizações iguais ou superiores a 10% e a sofrida pelo autor era efectivamente inferior.


A data da celebração do contrato vigorava o regime do DL 146/93, de 26.04, segundo o qual era obrigatório o seguro desportivo para todos os agentes desportivos inscritos em federações de utilidade pública desportiva (artigo 2º), cobrindo os riscos “de acidente pessoais inerentes à atividade desportiva, incluindo os decorrentes de transportes e viagens em qualquer parte do mundo” (nº 2 do artº 1º) prevendo no seu artigo 4º como coberturas mínimas o pagamento «de um capital por morte ou invalidez permanente, total ou parcial, por acidente decorrente da actividade desportiva» e «de despesas de tratamento, incluindo internamento hospitalar…».


Considerou a sentença recorrida como não escrita a franquia estabelecida nas condições gerais da apólice relativamente à incapacidade permanente por representar a violação da imperatividade mínima e acarretar uma fruição abaixo da cobertura. Acolhemos esta solução, aliás não impugnada pela ré, devendo concluir-se que a seguradora assumiu no contrato de seguro a obrigação de indemnizar toda a incapacidade permanente parcial (inferior, igual ou superior a 10%). No caso em apreço, em função da tabela anexa, foi correctamente encontrada a IPP de 4 pontos percentuais, e não os 10% que o recorrente reclama, apenas prevista para uma perda total ou quase dotal dos dentes.
2. Relativamente às despesas de tratamento, o tribunal deu atendibilidade ao valor de €3.320,00 despendido pelo autor.
O apelante sustenta que não foram consideradas as “despesas referentes ao tratamento de conservação e fixação das coroas cerâmicas a cada 15 anos de intervalo de tempo, e a uma consulta anual para verificação e limpeza a partir dos 50 anos”, pelo que se impõe a condenação da ré na indemnização que se vier a liquidar. Contrapõe a recorrida que não poderá a condenação exceder €1.680,00, diferença entre o capital disponível e o montante que a sentença condenatória fixou a título de despesas despendidas.

Segundo o nº2 do artigo 564º do Código Civil “na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros desde que sejam previsíveis; se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior”, e sobre essa matéria ensina Vaz Serra que a certeza ou a previsibilidade do dano futuro pode derivar de ele ser o desenvolvimento seguro de um dano actual, mesmo que seja incerto o seu montante, por exemplo, no caso de dano resultante de lesões corporais a um trabalhador (RLJ. ano 108, 314).



No caso os factos relatam a certeza do Autor ter de efectuar tratamento de conservação e fixação das coroas cerâmicas a cada 15 anos de intervalo de tempo e consulta anual para verificação e limpeza a partir dos 50 anos, ou seja, provou-se que terá de suportar despesas com as coroas colocadas no lugar dos dentes incisivos perdidos, só não foi possível apurar o quantum que irá despender. Assim, nos termos do artigo 609º, nº2, do CPC, justifica-se a reclamada condenação da seguradora no que se vier a liquidar, dentro dos limites do capital previsto na apólice.

3. Quanto aos danos não patrimoniais.
A sentença recorrida entendeu que a obrigação de indemnização por dano não patrimonial no âmbito da responsabilidade contratual só ocorre na medida em que fique apurada uma conduta culposa, e fora desses casos vale o princípio da autonomia das partes, e no contrato em apreço esse risco não está expressamente previsto. O apelante diz que essa posição traduz uma leitura restritiva das cláusulas da apólice, pois se é certo que a incapacidade funcional se expressa primordialmente num dano patrimonial, não exclui os danos não patrimoniais, não se podendo distinguir aquilo que o contrato não distingue, valendo, por isso, a regra própria da interpretação de um contrato de seguro, in úbio contra stipulatorum, e em abono da sua posição invoca o Acórdão da Relação de Coimbra de 08/09/2009 ( Processo n.º165/06.8TBGVA.C1 n.º JTRC)
Estamos por isso no domínio da interpretação dos contratos.
Decorre dos normativos dos artigos 426º e 427º do Código Comercial que o contrato de seguro é um contrato formal, regendo-se pelas estipulações da respectiva apólice não proibidas por lei, e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições desse código – são aplicáveis essas normas, entretanto revogadas pelo artigo 6º do DL nº72/2008, que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2009. O artigo 2º (aplicação no tempo) prevê a aplicação do novo regime ao conteúdo de contratos de seguro celebrados anteriormente que subsistam à data da sua entrada em vigor, ou seja, como refere Pedro Romano Martinez, nesses casos “a lei nova não se aplica à formação do contrato, mas tão-só ao seu conteúdo, ou seja, a questões relacionadas com a execução do vínculo” (lei do contrato de seguro, 2011, pág. 25). Ora, nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso – nº1 do artigo 238º do Código Civil.
Segundo José A. Engrácia Antunes, o risco “consubstancia-se num evento danoso, «rectius», em factos cuja ocorrência seja susceptível de provocar perdas ou ter um impacto patrimonial do segurado: desta forma, excluídos parecem estar os seguros de riscos especulativos e os seguros de danos morais Sublinhado nosso.(in direito dos contratos comerciais, pág. 706/707).
O seguro de grupo do ramo «acidentes pessoais» em análise tem um cunho indemnizatório – no dizer de José Vasques, serão «seguros de prestação indemnizatória todos aqueles em que a prestação da seguradora consiste num valor a determinar a partir dos danos resultantes do sinistro, e serão seguros de prestação convencionadas todos os restantes (in Contrato de Seguro, 1999, pág. 47)- figurando nos riscos cobertos a invalidez permanente com um capital de €28.000,00 (além das despesas de tratamento e de funeral). Nos termos do artigo 36º, nº1, das condições gerais, a indemnização é determinada pela tabela de desvalorização anexa, e o critério é puramente aritmético – multiplicação da IPP apurada pelo valor do capital da apólice- e nos termos do seu nº10 a indemnização é excluída quando a desvalorização é inferior a 10%, ou seja, as condições contratuais pré-estabelecidas, às quais aderiu o tomador de seguro, não contemplam no risco da IPP coberto os danos não patrimoniais, onde o critério prevalecente é a equidade (artigo 496º, nº4, do Código Civil). É essa a nosso ver e à luz do princípio do artigo 236º do Código Civil, a interpretação autorizada pelas cláusulas da apólice do seguro.

Sumário:
1. O regime do Dec-Lei nº. 146/93, de 26.04, estabelece o seguro obrigatório para todos os agentes desportivos inscritos em federações de utilidade pública desportiva (artigo 2º), cobrindo os riscos “de acidente pessoais inerentes à atividade desportiva, incluindo os decorrentes de transportes e viagens em qualquer parte do mundo” (nº 2 do artº 1º) prevendo no seu artigo 4º como coberturas mínimas o pagamento «de um capital por morte ou invalidez permanente, total ou parcial, por acidente decorrente da actividade desportiva» e «de despesas de tratamento, incluindo internamento hospitalar»
2. O normativo do artigo 4º desse diploma legal tem natureza imperativa, cobrindo todas as desvalorizações funcionais, razão por que não pode considerar-se válida a cláusula geral do contrato que exclui a indemnizações referentes a desvalorizações funcionais inferiores a 10%;
3. Decorre dos normativos dos artigos 426º e 427º do Código Comercial que o contrato de seguro é um contrato formal, regendo-se pelas estipulações da respectiva apólice não proibidas por lei, e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições desse código – são aplicáveis essas normas, entretanto revogadas pelo artigo 6º do DL nº72/2008, que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2009. O artigo 2º (aplicação no tempo) prevê a aplicação do novo regime ao conteúdo de contratos de seguro celebrados anteriormente que subsistam à data da sua entrada em vigor, ou seja, como refere Pedro Romano Martinez, nesses casos “a lei nova não se aplica à formação do contrato, mas tão-só ao seu conteúdo, ou seja, a questões relacionadas com a execução do vínculo” (lei do contrato de seguro, 2011, pág. 25). Ora, nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso – nº1 do artigo 238º do Código Civil.
4. O seguros de grupo do ramo «acidentes pessoais» em análise é de cunho indemnizatório – no dizer de José Vasques, serão «seguros de prestação indemnizatória todos aqueles em que a prestação da seguradora consiste num valor a determinar a partir dos danos resultantes do sinistro, e serão seguros de prestação convencionadas todos os restantes (in Contrato de Seguro, 1999, pág. 47)- figurando nos riscos cobertos a invalidez permanente com um capital de €28.000,00 (além das despesas de tratamento e de funeral).
5. Considerando que o nº1 do artigo 36º das condições gerais prevê que a indemnização pela IPP é determinada pela tabela de desvalorização anexa – ou seja, preside um critério puramente aritmético (multiplicação da IPP apurada pelo valor do capital da apólice) e que nos termos do nº10 é excluída a indemnização quando a desvalorização é inferior a 10%, claramente as condições contratuais excluem do risco coberto os danos não patrimoniais, onde o critério prevalecente é a equidade (artigo 496º, nº4, do Código Civil). É essa a nosso ver e à luz do princípio do artigo 236º do Código Civil, a interpretação autorizada pelas cláusulas da apólice do seguro.

V. Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e, consequentemente, condena-se a ré seguradora a pagar ao autor a título das despesas aludidas nos pontos q) e r) dos elencados factos provados a indemnização que se vier a liquidar, dentro dos limites do capital previsto na apólice.
No demais, mantém-se o decidido em 1ª instância.
Custas por A. e ré na proporção de 4/5 e 1/5, respectivamente.

T.R.G., 15.01.2015

(Heitor Gonçalves)

(Amílcar Andrade)

(Carvalho Guerra)